A Bíblia, nosso manual catequético

A Bíblia, nosso manual catequético


Índice

1) A graça da Palavra
2) O Deus da Revelação
3) O homem no plano de Deus
4) O plano de Deus para o homem
5) O Jesus da Revelação (I)
6) O Jesus da Revelação (II)
7) O Espírito Santo nas Escrituras
8) Ssma. Trindade
9) Escatologia
10) O Reino (I)
11) O Reino (II)


1) A graça da Palavra


                                                                                              
            A bíblia, nosso manual catequético, se abre com esta expressão: “Pela Palavra, o nosso Deus deu origem a todas as coisas” (Gn 1,1) (Trata-se de uma leitura sugerida por exegetas que reconhecem no termo ‘Princípio’ o termo com que é chamada a Sabedoria em Pv 8,22: “Deus desposou-me, Princípio da criação”). Acompanha-a o Espírito que “paira sobre as águas”. A linguagem é antropomórfica. Vemos, contudo, que João, no prólogo do seu evangelho, se serve da abertura da Escritura para falar de Jesus, que descreve na condição de Sabedoria “que sempre está com Deus”, porque é Palavra criadora (Jo 1,1-3). Toda e cada coisa chega a existir em virtude da sua ação: “nada do que existe, existe sem Ela” (ibid.).
            Pela relação que João estabelece entre a ação de Deus, apresentada através da linguagem figurativa que descreve a sua palavra saindo da sua boca, e a ação pessoal de Jesus que “sendo de condição divina,... humilhou-se, assumindo a condição de criatura obediente” (Fl 2,6), nota-se uma longa caminhada, ao longo da qual é possível constatar uma riqueza de “verdade e de graça” sempre mais abundante, diretamente proporcional à intensidade segundo a qual Deus se manifesta. Graça e Verdade alcançam o máximo da sua intensidade quando a Palavra se faz carne. Ela vem “cheia de graça e de verdade” (Jo 1,14), “pois de sua plenitude todos nós recebemos graça por graça” (v.16).
                                    Embora seja empolgante a graça que a Revelação nos concede através da beleza das criaturas, que de Deus nos cantam, também, o poder, a sabedoria e a bondade, a partir da criação da luz, ela é insignificante enquanto não passa de uma efusão sua inicial. De fato ela atingirá o infinito no seu limiar com a Encarnação e entronização no céu de Jesus. Para fazer uma comparação, podemos dizer que ela proporciona uma compreensão de Deus comparável à compreensão que os antigos tinham da luz, tendo como fonte de inspiração a luz do sol, à compreensão que nós temos da mesma pelas informações que a astronomia nos fornece. Esta última nos oferece uma compreensão capaz de provocar em nós uma profunda intuição da natureza divina, quando tomamos conhecimento da luz que se apresenta com o nascimento de uma estrela. Fruto de reações ainda desconhecidas, infinitamente superior à luz que emana do sol, que já é fruto de reações nucleares, nos leva até o limiar da compreensão da divindade, em virtude da sua perfeição e beleza infinitas.
            Diante do canto da criação, Paulo constata que o homem não é capaz de chegar a conhecer a Deus e que, em lugar de prestar glória ao Criador, presta o seu culto de adoração às criaturas: às aves, aos répteis, aos quadrúpedes e aos homens (Rm 1,18-23). Contudo, se isto pode ser permitido ao homem da antiguidade, é um fato estranho ver como ainda há cientistas incapazes de reconhecer na luminosidade de reações sempre mais surpreendentes a assinatura do Criador, quando a astronomia, depois de séculos de estudo chegou a estabelecer que somente é possível dizer se uma estrela é mais distante de nós do que outras pela cor da sua luz que chega até nós depois de milhares ou, até, de milhões de anos-luz.
            É através dos profetas que falam em nome de Deus que a graça consegue atingir os homens de maneira eficaz. Infelizmente isto não acontece quando ainda seria possível evitar uma longa e dolorosa experiência de purificação, bastando a conversão e a volta à fidelidade à aliança com Deus (Dn 9,1-7). É tão forte, contudo, a eficiência da graça pela palavra dos profetas que ela consegue, através da reflexão sapiencial dos mestres de Israel, a apresentar os quadros da criação e, por eles, a motivar os fiéis, reunidos em assembleia, a prestar culto a Deus enquanto o celebram segundo os seus atributos de onipotente, bom, cheio de esplendor e sábio. Fato importante porque é pelo culto ao Criador que começa o processo de crescimento da criatura, pela obediência e o serviço.
            Como acontece no caso da Palavra que realiza uma manifestação de graça através da obra da criação para chegar ao seu máximo de realização quando, na condição de Vida e Verdade eclode como uma luz para chegar ao máximo da sua glorificação no Céu, agora volta a se repetir o mesmo processo, no que diz respeito à Palavra enquanto revela o Mistério. Parte de um primeiro grau de intensidade, qual é o momento de explicar qual é a condição da criatura diante do Criador e o caminho da sua realização, para passar a mostrar à qual profundidade chega a Sabedoria de Deus quando anuncia a realização do homem através de um Plano de Redenção. Aquela Sabedoria que já se revelava na ordem cósmica e no reino vegetal e animal, distinguindo o homem por uma peculiar vocação, atinge o auge da sua manifestação quando apresenta uma condição de redenção dos homens através de um deles, um nascido de mulher: verdade que somente se tornaria compreensível quando o homem chegasse a conhecer a condição divina do irmão capaz de remi-lo.
            A essa altura, a profecia e a reflexão sapiencial se juntam. Resultado: o conteúdo de uma Revelação profética de indescritível valor, cuja grandeza é selada e, ao mesmo tempo, superada pela atuação de Jesus.
            A profecia acontece num contexto de falta de fé. Deus toma a iniciativa de anunciar um acontecimento surpreendente. O Filho que nascerá da “jovem mãe” levará o nome de Emanuel. A LXX, por causa disso, chama a mãe do Emanuel de “virgem”. Os termos desta profecia somente serão explicados pelos acontecimentos testemunhados pelos evangelistas, seja quanto ao nascimento como quanto à divindade de Jesus. A reflexão sapiencial utiliza Is 7,14 para ilustrar, no prefácio de toda a bíblia (Gen. 1-11), a maneira segundo a qual se realizará a salvação da humanidade que em Adão pecou (Rm 5,12). A graça da verdade vai, então, se apresentando intensa e clara, permitindo a plena compreensão de uma linha teológica que Deus quer revelar pela ação do seu Espírito. A história de Israel se torna paradigmática, enquanto, a partir de Gn 12, é apresentado como o povo de escolha, chamado para a missão de anunciar o Deus verdadeiro a todos os povos da terra.
            A eclosão da revelação profética acontece quando a Palavra se torna a própria graça pela qual o Criador quer tornar as criaturas participantes da sua vida. É o momento em que a Bondade, para isso, realiza a nossa adoção filial num contesto de redenção. Jesus Cristo, na condição de “Filho que o Pai consagrou e enviou ao mundo” (Jo 10,36), ele mesmo sendo “Vida e Verdade” (14,6), em espírito de submissão, se oferece como vítima de expiação, em favor dos seus irmãos. Nele, a profecia torna-se revelação, numa espetacular refração de luzes, qual somente pode ser oferecida pela infinita variação da virtualidade da divindade. É aquilo que Mateus quer exprimir quando apresenta Jesus no início do seu ministério messiânico: “Uma grande luz resplandeceu nas trevas....” (Mt 4,16). Está citando o Isaias do Livro do Emanuel. João é ainda mais explícito. Depois de ter definido Jesus com o termo “Palavra da Vida”, declara ser ele “Luz do mundo”, a “Palavra que se fez carne”. É a mesma coisa que dizer que Jesus é a “Vida” que assumiu a condição humana para iluminar, na condição de Verdadeiro, “os que jazem nas trevas e na sombra da morte” (Lc 1,79).
            Pode-se notar como as imagens da linguagem figurativa da profecia se tornam, para os evangelistas, a linguagem da sua reflexão sapiencial. Por causa disso, é importante ter presente que os escritos do NT dão continuidade à tradição da linguagem sapiencial do AT e que, por eles é possível descobrir o sentido dos termos que a Escritura utiliza. Em segundo lugar, é importante constatar que a linguagem figurativa do NT supera a do AT porque apresenta o Mistério profetizado na sua realização, enquanto explora os conteúdos expostos pelos autores antigos. As duas leituras da Liturgia do Natal que citam a Carta a Tito ilustram perfeitamente o princípio de análise que acaba de ser apresentado: “A Graça de Deus se manifestou para a salvação de todos os homens” (Tt 2,11); “A bondade e o amor de Deus, nosso Salvador se manifestaram... por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador” (v. 6).
            A possibilidade de inverter os termos, a ponto de considerar graça o próprio Jesus, permite constatar como as suas afirmações se referem a uma realidade que está nele e que opera de forma singular. Quando Jesus se dirige a interlocutores que resistem em acatar os seus ensinamentos, ele não duvida em afirmar ser a Palavra que sai da boca de Deus, mas que a ele não volta sem antes ter dado o alimento ao agricultor (Is 55,10), porque ele é o único que desce do Céu e porque “as suas palavras têm o Espírito sem medida” (Jo 3,34); as suas palavras “são espírito e vida” (6,63). A graça da Palavra, além de ser tudo aquilo que chega ao homem pela ação profética, pela reflexão sapiencial, e pelos ensinamentos do próprio Jesus; além de ser o próprio Jesus, a Luz que dá a vida ao mundo, em última análise, é a comunicação daquilo que é o próprio Deus: Espírito. É aquilo que Jesus promete na iminência da sua Páscoa (Jo 14,17): o Espírito do Verdadeiro que, com os seus dons, leva a toda Verdade. Este é o Espírito do qual fala “Aquele que esteve morto mas, agora, vive” (Ap 1,17): “Quem tem ouvido, ouça o que o Espírito diz às Igrejas” (Ap 2,7).
            Chegamos a uma identificação da graça da Palavra: é a Vida do Santo que é comunicada aos homens pela ação da Palavra da Vida, que mereceu o Espírito pela sua Morte de Cruz. Realiza-se o pedido de Jesus: “Pai santo, guarda-os em teu nome, o nome que me deste, para que sejam um como nós” (17,11b). “Santifica-os na Verdade” (v. 17): “Por eles, a mim mesmo me santifico para que sejam santificados na Verdade” (v.19).


2) O Deus da Revelação                                                             
          Quando tomamos conhecimento da história da antiguidade, notamos que, entre todos os povos, destaca-se o povo de Israel que, embora compartilhe a mesma condição de idolatria dos outros povos, ao longo do tempo, chega a ser um povo monoteísta. Quando os seus historiadores refletem sobre este fenômeno e descobrem o seu surpreendente processo, apercebem-se que ele foi fruto de uma ação pedagógica daquele El pelo qual Israel acabou, gradativamente, optando, até chegar a reconhecê-lo, por graça, como único Deus existente. Isto significa que Israel foi beneficiado, por ter sido amado com amor de predileção por parte do Criador antes mesmo que dele tomasse consciência. Esta primeira característica do verdadeiro Deus, já nos permite constatar que ele age no intuito de favorecer o homem. Não é um ser que se prevalece do seu poder. O seu aspecto benevolente torna-se ainda mais evidente a partir do momento no qual o vemos agir de tal maneira que  a Israel é dado concluir ainda mais intensamente que ele existe, pela ação dos profetas que ele envia: atitude de Deus caracterizada pelos profetas como se fosse um ciúme que ele sente por Israel; o que acaba revelando o seu profundo amor em relação ao povo que ele escolheu. Os sentimentos de Deus assumem características ainda mais específicas, que o ilustram ainda mais no que diz respeito à sua natureza, quando a reflexão sapiencial dos escribas, em Israel, comenta a ação de Deus, que reconhece ser uma ação que visa uma salvação universal. Isto se torna possível, mais uma vez, por causa da atitude benevolente e amorosa de Deus. Os seus profetas, enquanto anunciam a sua vontade, para motivar a sua aceitação, falam dele e proclamam, sem titubeação, que ele é o Criador de todas as coisas, o Senhor da História, o Santo de poder irresistível. É o anúncio profético, que se caracteriza pela inspiração, que dá segurança ao pensamento dos sábios, em Israel
            A narrativa catequética em que se constitui Gn 1, que, originariamente, visava promover a prática do repouso sabático, é uma proclamação da obra da criação. Colocada na abertura do Prefácio de toda a Bíblia (Gn 1-11), acaba se tornando uma peça literária capaz de sintetizar os atributos fundamentais de Deus. A sua natureza é a Bondade. Através da criação, agindo com sabedoria, manifesta o seu poder e a sua glória.
            Contudo, a primeira narrativa catequética da Bíblia, embora já nos fale da natureza de Deus, especificando que ele é a Bondade, e das suas características fundamentais, não chega a apresentar a Glória de Deus em todo o seu esplendor. Isto pode ser percebido claramente quando a narrativa da queda do homem por causa da sua rebeldia revela em Deus uma atitude de misericórdia. Ao homem perdido, sem rumo e despojado da sua dignidade, Deus anuncia uma redenção. Nós, que a conhecemos atuada, temos a condição de avaliar a qual cume de perfeição chega a Bondade, porque Deus demonstrou o seu extremado amor “entregando o seu próprio Filho” (Jo 3,16). É necessário notar nesta afirmação de Jesus toda a grandeza da obra de Deus porque o Filho tem em comum com Deus a condição de ser Vida e Verdade (Jo 14,6), segundo a qual ele pode afirmar que, se pela Encarnação ele é o “Filho que o Pai consagrou e enviou ao mundo” (Jo 10,36), em virtude da sua condição divina pode, também, dizer que veio por si mesmo “para que todos tenham vida” (Jo 10,10). O mistério da Vida Trinitária, do qual tomamos conhecimento em virtude da revelação que Jesus dele nos fez, explica a possibilidade da dupla abordagem, extremamente elucidativa, quanto à compreensão do Deus da revelação.
           O Deus que realizou a sua obra redentora revela ainda mais algo do esplendor da sua Glória quando nos apercebemos que explorando a condição que ela criou, ele pode chegar a atuar segundo a sua Bondade em toda plenitude. Isto acontece quando escutamos a Catequese Apostólica nos anunciando que Deus, “por livre determinação da sua vontade, nos predestinou a sermos seus filhos adotivos em Jesus Cristo, no qual temos a redenção e o perdão dos pecados”. A essa altura, é o cântico espiritual de Paulo, Ef 1,3-14, que, único, é capaz de celebrar toda a riqueza do amor misericordioso do “Deus de Israel que a seu povo visitou e fez surgir um poderoso Salvador, na casa de Israel seu servidor” (Lc 1,68-69).
            Impressiona-nos ver com que perspicácia os autores sagrados souberam falar de Deus, a ponto de podermos, dele, formular uma clara imagem, através dos textos da Escritura, indo além da já profunda definição do filósofo Fílon de Alexandria, que dizia ser Deus “o Desconhecido”. Deus pode ainda continuar a ser “o Desconhecido” pra o homem que se encontra, sem nem mesmo o saber, em uma condição de miséria moral, na qual acaba sempre mais envolvido com o passar dos anos de sua vida. Já não o é, a princípio, a partir do momento em que Deus dá início ao seu Plano de salvação, determinado em tornar o homem seu filho adotivo em Jesus Cristo (Ef 1,5). O sucesso da sua ação pode ser constatado nos santos que suscitou antes da Encarnação de seu Filho e continua a suscitar depois. Hb 11 sintetiza esta realidade ao elencar os santos que alcançaram o Reino pela perseverança no testemunho da fé.
                      Gn 1 quer descrever Deus segundo a perfeição das suas virtualidades quais se apresentam na obra da criação. As intuições que a luz, sua primeira criatura, suscita no judeu compenetrado diante da santidade do seu Deus, qual sugerida pelas palavras de Is 6, quando da sua visão da Glória, nos familiarizam com a perfeição do seu Ser que o nosso Credo professa ser Luz da Luz. Dele podemos formular a riqueza quando pensamos nos benefícios e no conforto que a luz do sol nos propicia, ela que é fruto de milhões de reações nucleares que se tornaram possíveis pelo nascimento de um universo, momento em que se apresentou uma luz ainda mais brilhante, fruto de uma reação cuja natureza nos é desconhecida. As sequências das origens das luzes no mundo criado nos levam a pensar, por analogia e sublimação naquilo que poderia ser a Luz de Deus, infinita na força da sua perfeição, da qual emanam benefícios de toda ordem. O esplendor e o poder do Ser perfeitíssimo, para o autor de Gn 1, volta a se repetir em cada dia da narrativa da criação, lembrados pelo refrão, depois de cada proclamação das obras criadas: “Eis uma tarde, eis uma manhã”: uma alusão a Ex 16, onde se diz que, pelo prodígio das codornizes e do maná, Deus “revelou o seu Poder e manifestou a sua Glória” (v.6.12).
            A luz, por si, torna mais sugestiva a prerrogativa da beleza da Glória de Deus. São as condições das águas vistas colocadas acima do céu ou contidas pelas margens da terra que recordam a sensação do poder imenso da Divindade. A variedade das espécies da vegetação e das estrelas do céu ajuda a compreender o esplendor da Gloria de Deus, enquanto a vida animal faz pensar na sua sabedoria. É no homem, contudo, que o autor encontra a inspiração para pensar na grandeza de Deus, porque ele tem em si as condições de ser o espelho das prerrogativas divinas, porque criado “à sua imagem e semelhança” (Gn 1,26).
           É importante ter sempre presente a imagem de Deus, apresentada em Gn 1, porque é sobre ela que devem ser sobrepostas as outras características que irão se apresentando gradativamente, enquanto, ao longo da Bíblia é narrado o progressivo relacionamento que se estabelece entre Deus e o homem. De fato, em Gn 2 vemos que Deus chama o homem a estabelecer uma relação pessoal com ele, condição para que cada homem desenvolva o seu crescimento. É importante, também, tomar conhecimento do estilo literário do autor, que é o da linguagem figurativa e de como, cada ensinamento deve ser considerado individualmente. Segundo este princípio é possível ver claramente qual é o ensinamento de cada reflexão catequética e distingui-lo dos elementos da linguagem figurativa utilizados pelo seu autor.
            Quando empreendemos a leitura de Gn 3, entramos na problemática da relação entre Deus e o homem que, pela rebeldia, rompe com o seu Criador. A narrativa catequética deste capítulo da Escritura nos permite dizer que esta pode ser definida uma ‘Antropologia revelada’. Não fosse pela ação decisiva com que Deus realiza o seu Plano, poderíamos até pensar que o homem é o protagonista principal da História da salvação que a Bíblia nos apresenta. O “Homem Cristo Jesus que se deu em redenção para todos” (1Tm 2,5) é o elemento que estabelece, quanto à importância dos protagonistas, a forma correta para definir a natureza da relação entre Deus e o homem. Deus é importante porque é aquele que salva, o homem é importante porque é a criatura que deve ser salva.
           Com surpreendente longanimidade, Deus, que pela obra da criação revelou ser, por natureza, a Bondade, fiel a si mesmo, revela ser um Deus misericordioso, resultando a culpa do homem a condição para que o seu Nome seja glorificado. A forma segundo a qual Deus irá resgatar o homem da escravidão do Mal revelará, no seu auge e, ao mesmo tempo, no seu âmago, a largura e a extensão do seu amor. Dessa forma, na Escritura, se apresenta um Deus pessoal que se relaciona com o homem com equanimidade, embora mostre claramente a sua condição de Senhor, Aquele que Jesus descreverá com maestria, numa das suas parábolas, como “um rei que resolveu acertar contas com os seus servos” (Mt 18,23).
            A Bíblia desenvolve a figura de Deus apresentada na criação e no momento da rebeldia do homem através do Livro do Êxodo. Vemos nele o mesmo Deus que visitou o homem, que estava nu, que, do alto céu, se inclina para ver a condição em que se encontra o seu povo. Movido pela compaixão, decide tirá-lo da escravidão. Para isso, envia Aquele que o tirará do Egito. A Páscoa será o Memorial perpétuo daquilo que Deus realizou “com mão estendida e grandes julgamentos” (Ex 6,6). Atravessado o mar, ao longo da peregrinação no deserto, Deus alimentará o seu povo com o maná e marcará a sua presença no meio dele com a sua Tenda. 
‘          A história de Israel, episodicamente descrita pelos manuais catequéticos dos livros do Êxodo e dos Números e relembrada pelo Deuteronômio, para que seja continuamente meditada, é o enredo histórico utilizado pela Catequese Apostólica, como pode ser constatado nos escritos dos Evangelistas. Deus realiza o seu Plano de salvação enviando o seu Filho, o Profeta que deverá ser escutado. Jesus é o Novo Moisés que institui a Nova Páscoa. O seu povo se alimentará da carne do Cordeiro imolado, o verdadeiro pão descido do céu, a Palavra da Vida que colocou a sua tenda entre nós (Jo 1,14), enquanto caminha rumo à Pátria definitiva.
Os escritos dos evangelistas se concentram na Pessoa divina de Jesus. São as Cartas dos Apóstolos que, sem deixar de valorizar à altura a condição divina e a importância da atuação do Senhor, equilibram as atuações das Pessoas da Ssma. Trindade. A presença do Pai, que é particularmente acentuada nos evangelhos no momento do Batismo de Jesus no Rio Jordão, na Transfiguração e na Paixão, é lembrada constantemente por Paulo, particularmente nas saudações iniciais das suas cartas, enquanto destaca a condição subordinada de Jesus, na condição de Filho. É evidente que esta condição se dá por causa de uma aniquilação voluntariamente assumida, em vista da realização de uma redenção. Deus, assim apresentado, acaba aparecendo com todas as qualificações que a revelação entende nos transmitir. A condição de Vida Trinitária da qual Jesus, o “Unigênito Deus” (Jo 1,18), nos deu a explicação, é a coroação de tudo o que, pedagogicamente, o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim, o Todo-poderoso (Ap 1,8) esteve manifestando a partir do momento em que “Aquele que é, que era e que vem” (v.4) pôs em ato o seu desígnio de “recapitular tudo em Cristo” (Ef 1,10), com quem, os que tiverem coroado a sua fé com a virtude da esperança, reinarão, após ter vivido a purificação na condição de povo por ele conquistado, após ter sido a ele configurados pelo Espírito, pelo caráter.


3) O homem no plano de Deus


Não obstante o fato de que o homem seja o habitante de um grão de poeira, como é o planeta Terra no universo, e que, portanto, fisicamente, seja de uma grandeza insignificante, vemos que, pelo que nos atesta a Revelação, ele é importante aos olhos do Criador. O autor de Gn 1, quando dele chega o momento da criação, adota um tom enfático e mostra Deus falando de forma solene para que captemos toda a importância que cada homem tem diante do Criador: “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança e que eles dominem...” (Gn 1,26). O Senhor da criação eleva o homem a senhor de tudo aquilo que criou. Nada mais majestoso do que céu com as suas aves, do que mar com os seus peixes e do que a terra com as suas criaturas.
O autor de Gen 1 lembra, também, que Deus, na sua bondade, se preocupa em ditar ao homem o caminho da sua realização, convidando-o a sempre reconhecer a sua condição de dependência do seu Criador através da observância dos seus mandamentos. Mas, enquanto Deus se preocupa com a felicidade do homem pela instituição do matrimônio, estabelecendo uma relação de companheirismo entre o homem e a mulher, para serem, um para o outro, consolo, ao longo das suas vidas sobre a terra, o homem, logo, na sua insensatez, envereda o caminho da idolatria. Ele se exalta a ponto de pensar que pode ignorar a sua condição de dependência de Deus e ditar para si as regras da sua realização. Esta é a causa da situação desastrosa em que se encontra a humanidade: uma situação de desgraça da qual o homem não consegue sair, até porque, não fosse por revelação divina, ele nunca saberia, em qual condição, de fato, se encontra, uma vez que “foi concebido em pecado”, isto é, pertence a uma estirpe de mente frágil, sujeita ao erro: “Tímidos são os pensamentos dos mortais, e incertas as nossas concepções” (Sb 9,14). A ira de Deus está sobre a sua cabeça como uma espada pronta a transfixá-lo porque retém a verdade prisioneira da injustiça (Rm 1,18). Tendo-se afastado do seu Criador, tendo-se tornado incapaz até de reconhecer os sinais da sua presença na criação, não sabe nem sequer reconhecer que tudo tem a sua origem nele e por ele. Tão pouco sabe o porquê da desordem moral que está nele, tendo dela uma percepção mínima da sua gravidade. Dominam-no e o embrutecem a estupidez da idolatria, o ateísmo, a cupidez do ouro, a desordem das concupiscências da carne, a violência, a ambição, a malícia, a maldade, a falsidade, o egoísmo, etc.
Nada como a Revelação, portanto, nos permite chegar ao conhecimento do homem. Também, nada melhor do que a Revelação para entendermos quanto o homem é incapaz de se conhecer. É a Revelação que o informa sobre a sua origem, lhe explica as condições de deterioração em que se encontra e, quanto a isso, lhe apresenta os meios para dela sair e o caminho para se realizar. O homem, em Deus, tem um Pai que o criou, uma Mãe que o gerou, alguém que o teceu em cada fibra do seu ser (Sl 139,13) e o plasmou com dedos de artista.
A Escritura, após ter apresentado em Gn 1-2 as condições ideais de realização do homem, com Gn 3 logo explica de que maneira ele chegou à condição desastrada, que a sua história registra. Esquecido do seu Deus e dos benefícios dele recebidos, enveredou o caminho dos seus vãos arrazoados. Longe do seu Deus, a quem já não presta o culto dos seus lábios motivado pela contemplação das obras da criação, acaba presa dos vícios que o levam à prática do mal. Dominado pela perversão e tendo-se tornado iníquo, diz Paulo, pratica a injustiça e, até, aplaude os que fazem o mesmo (Rm 1,28-32).
A Escritura revela que, por ser o Deus criador a própria Bondade, ele não abandona o homem ao seu destino de autodestruição. No seu amor, vem em seu socorro. Pedro fala de um Cordeiro imolado que Deus contempla desde antes a criação do mundo (1Pd 1,19-20). É a Descendência da Mulher, da qual fala Gn 3,15, o próprio Cristo, que se apresenta na história do homem “chegada a plenitude dos tempos” (Gl 4,4): o Filho que o Pai “consagrou e enviou ao mundo” (Jo 10,36) para salvar o homem. A regeneração do homem acontece por graça, em virtude de uma clara intervenção divina. A história de Israel mostra como Deus prepara a manifestação do seu poder e da sua glória em Jesus de Nazaré, o filho de Maria, para que fique claro que, se dependesse do homem, nunca seria possível uma redenção. Paulo disto fala claramente na Carta aos Romanos. A prova cabal de tudo isso é a própria rejeição do Cristo do Senhor por parte do povo judaico, quando ele deveria ter sido o primeiro a lhe dar a sua adesão de fé. A Igreja Apostólica, nos seus escritos, não se cansa de repetir esta verdade. Paulo, em Rm 11-13, a explica, exatamente dizendo que a rejeição de Israel é fruto da incapacidade do homem. Deus permite que o povo da revelação, da Glória, da Lei, do culto e dos Patriarcas, ao qual pertence, segundo a carne, o próprio Cristo, renegue Jesus, não obstante o fato de que a ele, por primeiro, fosse dirigida a pregação dos Apóstolos, para que o anúncio da salvação chegue, por meio dele, aos gentios. Dessa forma, fica provado que todos estão sob o jugo do pecado e precisam da graça de Deus (Rm 11,32).
Os fiéis chegam a reconhecer totalmente o dom divino quando tomam conhecimento da realidade divina que se manifestou na história de Israel que, como lembra Dt...., era o único destinatário do verdadeiro Deus do qual recebeu leis sábias e escutou a voz dos seus profetas. É, sobretudo, a Pessoa divina de Jesus que prova como o homem somente conhece o caminho da sua realização quando é a Divindade que, por ele, o conduz. O autor da Carta aos Hebreus é muito claro a esse respeito quando afirma: “Aprouve a Deus esmagar o Filho no sofrimento para que entrasse na Glória e, dessa forma, se tornasse causa de salvação para os seus irmãos” (cf. Hb 2,10).
Na Carta aos Romanos, Paulo afirma veementemente a gratuidade da salvação e da regeneração do homem. Para isso chega até a descrever a situação deprimente em que se encontra o homem, incluído o judeu (Rm 1,18-2,1). Apresenta, então, em seguida, a figura de Abraão, para mostrar qual é a maneira verdadeira de agradar a Deus que, em Jesus Cristo, manifesta toda a sua benevolência (Rm 4). De Rm 5 até Rm 8, apresenta, então, qual deve ser a resposta do homem à iniciativa de Deus. Grandiosa é a ação de Deus que nos justifica. O fiel, contudo, deve corresponder com o testemunho, perseverando nas tribulações até fazer desabrochar, pela constância, a virtude da esperança que, nele, coroe a sua caridade. Para isto, deve encontrar a sua motivação considerando Jesus que, pela sua imolação, em virtude da sua condição divina, mereceu a efusão da graça sobre todos os homens. Com o Batismo, somos sepultados na sua morte para ressurgirmos para uma vida nova. Se o judeu, não obstante a santidade da Lei,
constatou que, por causa dessa mesma Lei, suas culpas somente se multiplicaram, agora, juntamente com o gentios, pode se realegrar porque, pelo Espírito, pode se libertar do “corpo de morte”. O jugo da Lei mosaica multiplicava as culpas. Agora, sob o jugo da lei do Espírito, o homem encontra a liberdade dos filhos de Deus (Rm 8).
Se seguimos passo a passo os ensinamentos de Paulo nas suas cartas, a partir da 1Ts, é possível traçar o código de leis do fiel. Abandonando o culto prestado aos ídolos, ele deve praticar a adoração do verdadeiro Deus, vivendo na esperança de estar definitivamente com o Senhor (conceito relembrado em Cl 1,11-12). Deve alimentar a sua fé pelo Evangelho para se encher da ciência do Cristo crucificado “Poder de Deus e Sabedoria de Deus” (1Cor 1,24). Não entristece o Espírito que leva o homem perfeito à compreensão das profundidades de Deus (2,10). Vive neste mundo sem ser deste mundo (7,31). O elemento propulsor da sua vida é a celebração da Eucaristia, pela qual alimenta-se do Corpo e do Sangue de Cristo (10,16). A vida de caridade é a coisa principal na vida do fiel (13,13). Por isso, todos os outros dons devem ser considerados condições para promovê-la. O termo último da ascética cristã é chegar a estar com Cristo que nos anuncia a nossa condição definitiva com a sua ressurreição dos mortos.
Em 2Cor, em relação à vida do fiel, Paulo ressalta a ação do Espírito com uma colocação singular e preciosa quando em 3,18 afirma que somos santificados pelo “Senhor que é Espírito”. É algo que acaba altamente valorizado quando lemos, na Carta aos Efésios, que Deus, por Cristo fez de dois povos um só povo que é a Igreja que, tendo o Senhor como Pedra angular “se edifica, no Espírito, em templo de Deus” (Ef 2,22).
Em Cl 1,11, a ação do Espírito é descrita como Poder que permite realizar, em tudo, as boas obras às quais os fiéis são chamados. É um conceito que Paulo já expressa, também, em Fl 2,13.
Se tomarmos como lema da vida cristã aquilo que Paulo escreve aos Gálatas: “Já não sou mais eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. Minha vida na carne eu a vivo na fé do Filho de Deus que me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20), temos toda a motivação para viver o programa ascético de 2Pd 1,3-10, vendo nele o caminho ideal para levar à perfeição a nossa configuração a Cristo Sacerdote, Profeta e Rei, atuada em nós no momento do nosso Batismo pelo sinal indelével com o qual o Espírito nos marcou (Ef 1,13).
Todos estes valores que a Catequese Apostólica nos apresenta são a motivação para vivermos os compromissos morais que a mesma nos lembra, segundo a mensagem que o Senhor nos deixou (1Jo 2,3b), vendo neles não mais uma odiosa imposição, mas uma condição de plena realização. Eles se resumem em dois compromissos: 1º) o da purificação, como quando a Carta aos Colossenses diz: “Se ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas do alto.... Vós vos desvestistes do homem velho... e vos revestistes do novo, que se renova” (Cl 3,1.9.10). 2º) o da caridade, como exorta Ef 6,14-17 : “Cingi vossos rins com a justiça, revesti-vos com a couraça da fé, calçai a sandálias do Evangelho de Deus. Abraçai o escudo da verdade contra os dardos inflamados do maligno, colocai o capacete e empunhai a Espada do Espírito que é a Palavra de Deus”.

O homem novo é o homem que Deus é capaz de levar à perfeição. Embora a sua criatura esteja a tal ponto destroçada pelas concupiscências, pela maldade e pela injustiça que chega a se tornar iníqua e perversa, Deus nos mostra que está agindo com sabedoria, quando quer levá-la a termo através do Filho, que esmaga no sofrimento. 
. É a sua atitude misericordiosa que acaba sendo a condição de obter da criação toda a glória devida ao seu Nome, porque, então, é dado ao homem ver claramente a sua condição de impotência diante do Plano de Deus de dignificá-lo e, assim, manifestar toda a sua gratidão pelas maravilhas que Deus nele opera.
O que dificulta, por parte do homem, o reconhecimento do Desígnio de Deus, como é apresentado de forma grandiosa pela Revelação é a forma narcisista com que ele se contempla. Interagindo com a sua história ele se encanta com as manifestações das suas habilidades que as civilizações apresentam. A elegia que nos é apresentada por Ap 18 lamenta a destruição, “numa hora”, dos esplendores da Cidade a Grande. O pensamento filosófico, contudo, nos prova que a admiração que o homem sente por tudo aquilo que realiza, é um equívoco, fruto da sua ingenuidade. O homem constrói a compreensão do mundo através de conceitos que são fruto de uma interação aleatória com o mesmo. Ainda não entende que está longe de dominar as leis do universo, da física, da biologia e de compreender a natureza de sua vida e, sobretudo da vida do Criador.

O homem é aquele que crê que dá passos gigantescos, embora permaneça nele a limitação da compreensão da criação. É pela fé que sabe com precisão qual é a sua origem, quais são as regras que devem reger a sua relação com o Criador, na condição de criatura. Sabe, sobretudo, que Deus o chama à participação da sua vida, numa condição de glória e de eternidade. Da vida de Deus, a princípio, não conhece a natureza. Dela, contudo, compreende a grandiosidade, por tudo o que Deus manifestou pela criação, pela história da redenção, pela pessoa de Jesus de Nazaré e pela história da sua Igreja, na qual temos manifestações sobrenaturais que revelam ser o Deus da fé o mesmo Deus da criação. Não há como contestar os milagres que vão acontecendo ao longo da história da Igreja. Por eles o autor das leis do universo, da física e da biologia revela, em Lourdes e em Guadalupe, ser aquele que as manipula de forma soberana.



4) O Plano de Deus para o homem                                                                     

 Indescritível o grandioso Plano de Deus sobre o homem! No momento em que é chamado à existência não dá para suspeitar qual é o termo último da ação do seu Criador. Somente quando, afinal, lhe é revelada a sua condição gloriosa, aquela de filho de Deus em Jesus Cristo, é-lhe dado compreender a natureza da ação daquele que, por essência, é a Bondade. Uma vez que esta, em Deus, é perfeita, na sua onipotência realiza um gesto de amor impensável, que é o de recuperar a criatura da condição de pecado em que cai, através de uma obra de redenção que tem lugar pela Encarnação.


Esta obra torna-se mais maravilhosa quando consideramos que aquele que é “Verdade e Vida” assume a natureza humana na condição de Filho “que o Pai consagrou e mandou ao mundo”  (Jo 10,36). Este acontecimento nos leva a entender qual é, de fato, o grau de glorificação que Deus reserva ao homem. Estamos aqui diante de um mistério. Uma das três hipóstases da Ssma. Trindade, sendo cada uma delas “Verdade e Vida” e comungando cada uma delas da mesma essência do SER, “entra no mundo para que tenhamos todos a vida, e a tenhamos em abundância” (Gv 10,10), segundo a adoção filial.

Finalmente, pelo caminho da imolação fica patenteado de que forma a criatura chega, de fato, à sua perfeição, porque é por ele que nela se realiza a sua vocação: pelo reconhecimento da sua dependência do Criador e compreendendo que a manifestação última da sua adoração acontece com o sacrifício de sua vida.

Deus, então, para quem nada é impossível, lha doa novamente num corpo ressuscitado.

Este programa é deste modo sintetizado por Paulo: “Eu vos exorto, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, a oferecerdes vossos corpos em sacrifício vivo, santo, agradável a Deus: é este o vosso culto espiritual” (Rm 12,1).

Nesta perspectiva vemos que há um único processo de realização do homem, uma vez que a encarnação do Filho devia necessariamente ocorrer para que o homem alcançasse a condição da filiação divina, devido à condição de fragilidade que conduz o homem ao erro. A redenção redunda, contudo, em manifestação ainda maior da Glória de Deus, em virtude da sua ação misericordiosa e de uma divinização; condição de salvação que vai muito além da simples reconciliação.

Uma vez que o Plano de Deus deve acontecer no tempo, a condição de culpa na qual inexoravelmente acaba se encontrando cada homem, é, na Escritura, catequeticamente, apresentada no contexto da criação, até porque é o momento mais adequado para apresentar a condição ideal em que o homem teria podido permanecer, não fosse a rebeldia para a qual os vãos arrazoados da criatura arrastam todo homem, quando se deixa iludir pelo fascínio que a beleza de cada criatura exerce sobre ele.

A condição do homem descrita nos primeiros dois capítulos do Gênesis é uma idealização apresentada no intuito de definir, por contraste, a condição em que ele se encontra, da qual Deus decidiu resgatá-lo pelos méritos do Cordeiro imolado que ele contempla desde antes da criação do mundo (1Pd 1,19-20). A sua ação misericordiosa, desde sempre, faz parte do seu Desígnio e será por ela que resplandecerá toda a sua Glória. Tudo isso transparece no Evangelho de João, a partir da narrativa das Bodas de Caná, momento em que Jesus realiza o primeiro sinal da sua manifestação: “Este foi o primeiro dos sinais...” (Jo 2,11).
  
A Glória do Pai e do Filho, segundo as próprias palavras de Jesus, se manifesta, em toda a sua plenitude, com a Morte de Cruz: “Agora o Filho do Homem foi glorificado e Deus foi glorificado nele” (Jo 13,31).

O primeiro gesto de Deus para atuar o seu plano, é a escolha de um povo para que se torne, entre todos os povos, o seu arauto. Quando os sábios de Israel refletem sobre esta escolha detectam a forma gradativa e sapiente com que o El de Israel a realizou: “Quando ainda não era um povo, o protegeu com amor maternal, tendo-o encontrado num lugar solitário” (Is 63,9b). No manual catequético, que é a Bíblia, tudo isto é celebrado através da narrativa da conquista da Palestina, a terra prometida.

A ligação estrita entre a Descendência da Mulher, prometida por Deus em vista da salvação universal da humanidade, e o povo escolhido, é apresentada através da descendência genealógica de Abraão, filho de Taré, descendente de Sem, filho de Noé, o último da descendência dos patriarcas, descendentes de Set, que Deus concedeu a Eva em lugar de Abel que Caim matou.

Abraão está ligado à descendência que desde sempre invoca o Nome de Iahweh.
           
O segundo grande gesto é a extensa  atividade pedagógica que Deus leva em frente para preparar a obra da redenção que acontecerá da forma mais inesperada e surpreendente com a Encarnação. A escolha, de fato, apresentada de forma idealizada, se deu através do chamado de um povo idólatra entre povos idólatras, que somente, por graça, chegaria a conhecer o único Deus. Foi preciso que interviessem os profetas para afastar o povo de Israel da idolatria. Tornaram-se necessários os castigos da deportação para que ficasse somente um Resto purificado, um povo bem disposto para servir o seu Deus. Viu-se, contudo, quanto o homem estava inclinado para o mal porque o seu espírito se corrompeu reduzindo a Lei de Deus a preceitos humanos, como chegou a advertir Jesus diante da hipocrisia dos escribas e dos fariseus.

 Em compensação, vemos surgir uma literatura sapiencial que desenvolve profundos conceitos sobre o Deus único de Israel.
            
Com a vinda de Jesus, o Plano de Deus sobre o homem chega ao seu momento final. Pela sua atuação ficarão bem claras, de um lado, as características da fragilidade do homem e da sua inclinação para o mal, enquanto, de outro lado, resplandecerá a Sabedoria e a Glória de Deus que, com Poder, realiza os desígnios da sua Bondade.

O primeiro gesto de Deus é o anúncio à Virgem de que se tornará a mãe do Emanuel (Is 7,14). A ela fala “o Senhor que vem ao seu templo, o Anjo da Aliança” (Ml 3,1) e tudo lhe explica pela intuição sobrenatural que Maria recebe. Extremamente profunda é a reflexão sapiencial da Igreja Apostólica que chega a construir o quadro da Anunciação que temos em Lc 1,26-38. Trata-se de algo que somente podia ser formulado à luz do Mistério plenamente revelado pela ressurreição do Senhor. 

Num segundo momento da ação de Deus que vai realizando o seu plano,  vemos a Luz do Emanuel que vem para visitar o seu povo (Lc 1,78-79).

João Batista declara ser Ele “Aquele que é e que era”, que vem na potência do Espírito. Volta a atuar o Deus da criação pela Palavra que expira da sua boca para levar a termo o seu Desígnio. Pela ação do “Unigênito Deus” (Jo 1,18), a Palavra “que se fez carne”, que se tornou, pela sua imolação, o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (1,29), os homens são reconciliados.

Do seu lado direito, transpassado pela lança, saiu o Espírito que configura  a Cristo Jesus aqueles que dão a sua adesão de fé a Iahweh elevado da terra, o Filho do Homem, para que, como povo de sua conquista, receba a herança dos santos, depois de ter vivido , na perseverança,a purificação dos pecados (Ef 1,13-14).

Em Jesus está contida a Revelação, o Mistério que os profetas pré-evangelizaram e que, depois de atuado por Cristo, os Apóstolos anunciaram, “acompanhando o Espírito com muitos sinais”, tão grande salvação (Hb 2,3-4).

Em Jesus temos o modelo da nossa realização, o Mestre divino que nos fala com toda sabedoria. Portanto, devemos andar pondo em prática os ensinamentos do Modelo. Um peso leve, porque o seu verdadeiro peso está no seu valor, uma vez que nos colocam em condições de nos desvencilharmos das concupiscências do mundo, da sensualidade, da cupidez e das ambições desmedidas, que nos privam da vida de caridade, própria de Deus.

As instituições fundamentais que ele entrega à sua igreja para que dê continuidade à sua obra, delas ele mesmo garantindo a eficácia, são o anúncio da Boa Nova, o batismo e a Eucaristia. Destes três sacramentos deriva a graça do Espírito que se manifesta, também, nos outros sacramentos: o perdão dos pecados, a crisma, a ordem sacerdotal, o matrimônio e a unção dos enfermos.

Com Cristo, o Reino profetizado foi anunciado e instituído. À Igreja foi entregue a tarefa de anunciá-lo e dele oferecer a cada geração toda a sua riqueza.

Os que nela são os primeiros a usufruir das suas riquezas têm que se esmerar na compreensão das suas verdades para anunciá-las com dignidade e ser modelos na vivência daquilo que anunciam. São as condições da eficácia do seu ministério. Se neles não se realiza o Reino, não haverá condição para a Igreja, “sacramento de salvação universal”, da qual eles são membros escolhidos para a função de anunciar e santificar, de ser instrumento de salvação.

Foi aquilo que Jesus lembrou a Pedro quando explicava a função daqueles que são prepostos no governo da casa de Deus.
  
A excelência do anúncio da salvação está no fato que é revelada a natureza da vida em Deus salvador que implica outro admirável mistério que é o da condição divina do homem Cristo Jesus.

Também, é preciso notar que este realiza a profecia na condição de “Filho que o Pai ungiu e enviou” e que diz a Felipe: “Quem vê a mim, vê o Pai. Não crês que estou no Pai e o Pai está em mim?”. “As palavras que vos digo não são minhas, mas do Pai que me enviou” (Jo 14,9-10). À natureza divina e à condição divina de Jesus deve ser agregado o valor redentor do sacrifício da cruz, que traz consigo o Espírito merecido, o Poder criador em Deus que opera na Igreja, santificando os fiéis e que converte pela Palavra anunciada ao mundo.

A revelação plena supera o impasse da morte, uma vez que fica claro qual é o destino último do homem segundo o Plano de Deus. Trata-se de um destino glorioso porque visa à participação da gloriosa em Deus, alcançada pela ressurreição corporal: “Desfeito este corpo mortal, nos é dado nos céus um corpo imperecível” (2Cor 5,1).

Nada mais esclarecedor, quanto à natureza da vida após a morte, do que diz Jesus na sua oração sacerdotal, no fim da última ceia: “Pai, quero que aqueles que me deste estejam comigo para que vejam a minha Glória, a Gloria que determinaste me dar desde antes a criação do mundo” (Jo 17,24).

Desta Glória participa a humanidade de Cristo. Em virtude da sua redenção, nos é dado participar da santificação que ele alcançou para si. A única condição é aquela de viver o dom da fé recebido no momento em que fomos chamados a participar da vida em Deus. De fato não é ela o princípio da nossa justificação? Se não estivermos vivendo a nossa fé, não estará em nós a justificação porque “manifesta-se a justiça de Deus da fé para a fé” (Rm 1,17).
                                                                                                                                    

(5) O Jesus da revelação (I)


No contexto da obra da nossa redenção, a primeira figura que se apresenta é aquela da “Descendência da mulher” (Gn 3,15) com uma atribuição que o próprio Deus nela reconhece, qual é aquela de estar em condições de esmagar a cabeça da Serpente. Estamos diante de uma profecia cujo sentido se tornará claro somente depois que ela se tiver realizado em Jesus. Sabemos que ela é fruto de uma reflexão sapiencial que tem a sua inspiração em Is 7,14, texto contido no Livro do Emanuel (Is 6-12). Contudo, enquanto a profecia de Isaias, ao anunciar o sinal que Deus se compromete realizar para que os homens cheguem, afinal, a ter confiança nele, somente descreve a sua característica qual é aquela de ser o Filho da Virgem, de condição divina, porque “chamar-se-á Emanuel”, Gn 3,15, dele apresenta uma específica ação: ele resgatará a estirpe humana do domínio do mal. Neste caso, a figura da Descendência traz consigo um mistério que pode ser formulado com uma pergunta: ‘Como pode um membro da estirpe humana ser o redentor dos seus irmãos se ele, por ser membro da mesma estirpe, a rigor, precisa ser redimido’? O sábio, na verdade, intui que por trás das palavras da profecia de Isaias há um mistério e o faz seu, mais tarde, pela tradução da LXX, que dará ao termo “almah” (= jovem moça para marido) o significado de “virgem”, embora esteja ainda longe de captar a sua significação final.





 Nós que estamos de posse do sentido pleno do termo porque conhecemos que o Emanuel é Jesus, como claramente nos ensina Mt 1,18-23, e que a condição virginal de Maria é o sinal que indica como realmente Jesus é de condição divina, e isto será provado de forma cabal pela sua ressurreição que o constituirá abertamente Senhor com poder, tornado de alma vivente Espírito vivificante, somos, como diz Jesus, “felizes porque nossos olhos veem” (Mt 13,16). Na condição de quem tudo compreende, conseguimos avaliar a riqueza de doutrina que estas primeiras informações, que a Escritura nos fornece acerca da pessoa do Senhor, contêm.
  A figura de Noé, o justo que encontra graça aos olhos de Deus e que se torna o princípio de uma humanidade nova, salvando os membros da sua família da destruição do dilúvio, vem a definir a condição do homem Cristo Jesus que Paulo declarará “único mediador entre Deus e os homens” (1Tm 2,5). Diante do sacrifício que ele lhe oferece, Deus tanto se agrada que, de forma solene, estabelece uma aliança definitiva com a humanidade, reconhecendo no arco-íris o seu sinal (Gn 9,12-16; Ap 4,3).
   Ao longo da história da salvação, se apresenta a figura de Isaac, o filho que assume a condição de vítima do sacrifício, enquanto carrega a lenha do holocausto. Ele é uma figura importante para entender de que forma Jesus agradou a Deus com a sua morte no madeiro: pela obediência “até a morte e morte de cruz” (Fl 2,8), condição que o Filho somente podia atuar enquanto se tornasse um de nós. Dessa forma, Jesus resulta ser o adão que, único, realiza em si as condições que agradam o Criador, condições de glorificação. Ao tomarmos conhecimento da sua condição divina, que a sua ressurreição revela, chegamos à plena compreensão da glorificação, sua e nossa, da qual o Emanuel é capaz.
    Estamos vendo quanto as figuras do AT relacionadas a Jesus Cristo ilustram o mistério da sua pessoa divina. Este deve ter sido o conteúdo da catequese de Jesus ditada aos discípulos de Emaús e que culminou com o “seu coração ardendo”, particularmente no momento em que Jesus celebrou a “fração do Pão”, sentado à mesa com eles, e seus olhos se abriram (Lc 24,13-33).
     É a própria catequese apostólica que nos ensina a descobrir as figuras proféticas contidas na Escritura. Quando acompanhamos Mateus no seu evangelho, vemos que o Emanuel volta a ser lembrado como uma grande luz que brilha para os que jazem na sombra da morte. É aquele que Isaías descreve na condição de quem tem a sua dignidade régia definida pelos títulos de Grande, Conselheiro admirável, Pai eterno, Príncipe da Paz (Is 9,5). É aquele sobre quem repousa o Espírito do Senhor, de sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade, temor de Deus (Is 11,2). As prerrogativas que a profecia lembra nos ajudam a diversificar os conteúdos dos títulos divino- messiânicos de Jesus, potenciados pela sua condição divina, característica que, certamente, escapava à própria visão profética. Quanto mais somos esclarecidos pelo conteúdo de cada título, enriquecido pela novidade que a Encarnação acarreta, tanto mais tomamos consciência da grandeza da condição divina de Jesus. Aquilo que é atribuído a Jesus vai sempre mais nos tornando conscientes da sua divindade, muitas vezes ofuscada pela sua humanidade por causa do nosso despreparo em saber reconhecer na ‘kenosis’ pela qual a Divindade optou (Fl 2,7), a forma mais conveniente para se revelar.
     O título divino-messiânico que melhor sintetiza as prerrogativas de Jesus e que o próprio Jesus se atribui de forma aberta, é aquele de “Filho do Homem”. Nos sinópticos se apresenta de forma insistente a partir da profissão de fé de Pedro que o declara ser o “Messias, o Filho de Deus”. É bom logo notar que o que Pedro professa nos encaminha para a revelação última que Jesus nos fará da sua condição na Vida trinitária, porque no momento da sua profissão de fé, os termos de “Messias” e “Filho de Deus” são sinônimos. Vemos, de fato, que é em João que Jesus, por sua iniciativa, anuncia a sua condição divina de Filho, à qual nunca poderiam chegar os Apóstolos por virtude própria. Em João, o título de Filho do Homem representa em si, desde o início, as condições divinas do messias, a Glória de Iahweh de Ezequiel. Mais ainda, ele é o tema de toda a catequese do evangelho do Apóstolo.
      O prólogo do evangelho de João, depois de tudo aquilo que nos disseram as figuras citadas do AT, sob a orientação da catequese apostólica, se torna o ponto de partida para uma descrição abrangente de Jesus segundo tudo o que a revelação nos diz. Na vida Trinitária, com o Pai e o Espírito participa da natureza do Verdadeiro, o Deus único existente. A ele é atribuída a obra da criação, enquanto, segundo uma linguagem antropomórfica, como nos ensina o prólogo do evangelho de João, ele é a Palavra que estava com Deus e que era Deus, pela qual tudo foi feito do que existe. Na condição de “Palavra da Vida, Vida, Vida eterna” (1Jo 1,1-2), ao assumir a condição humana, ele se torna a grande Luz que “ilumina todo homem que vem no mundo”, uma condição que é ilustrada por uma metáfora da qual João muito oportunamente se aproveita, que se encontra na narrativa da obra que o Criador realiza no primeiro dia da criação (Gn 1,3-5). Jesus é um filho de homem porque é o Emanuel, o Filho que Deus Pai envia, chegada a plenitude dos tempos, aquele que a ressurreição revelará grande, aquele que “de alma vivente, se tornou Espírito vivificante” (1Cor 15,45), em quem deve ser reconhecido o “Filho do Homem”, aquele que, único, pode subir ao céu, porque, único, desceu do céu, único capaz de nos falar do Pai. Segundo a sua condição divina, quer realizar com a sua Igreja, aquela que ele vai reunir na condição de Bom Pastor que dá a vida pelas suas ovelhas, as núpcias eternas, já profetizadas por Oseias: “Eu te desposarei a mim na fidelidade e conhecerás a Iahweh” (Os 2,22). A narrativa alegórica das Bodas de Caná (Jo 2,1-12) é a sua mais bela apresentação, quando oportunamente associada ao quadro da Morte de Cristo, onde “a mãe de Jesus estava lá” (Jo 19,25), tendo chegado a “hora” da manifestação da Glória. Segundo a sua condição divina, aquele que se apresenta em tudo igual a nós, exceto no pecado, o filho de homem perdoa os pecados (Mc 2,10). De fato, explica Jesus a Nicodemos que ele realiza em si a figura da serpente que Moisés levantou para que todos aqueles que olhassem para ela fossem curados, “porque Deus tanto amou o mundo que enviou o seu Filho para que todos os que cressem nele rivessem a vida eterna” (Jo 3,16).
  A condição de Jesus que se apresenta segundo a figura de Iahweh que volta a desposar a sua amada que de "amada" tinha se tornado a “não mais amada” (Os 2,25); que no Éden mostra toda a sua misericórdia anunciando a “Descendência da Mulher” que esmagará a cabeça da serpente, nos revela quão é importante associar os ensinamentos da catequese apostólica com as figuras que ela vem nos apresentando, tiradas dos livros proféticos, oportunamente analisadas.
   A Carta aos Hebreus, enquanto, na sua abertura nos apresenta Jesus a partir do seu aspecto visível, chamando-o de filho herdeiro, imediatamente associa a esse título divino-messiânico dois títulos divinos: “Resplendor da Glória de Deus, Imagem do seu Ser” (Hb 1,3; Sb 7,26), para nos apresentar Jesus na condição do Filho que, “realizada a purificação dos pecados, sentou-se à direita da Majestade” (ibid.). É aquele que o Apocalipse apresenta recebendo a mesma adoração pela corte celeste, sentado à direita de Deus. Por estas figuras da redenção e da glorificação de Jesus, vemos sintetizada a forma pela qual a Divindade quis se tornar conhecida aos homens. Trata-se de uma forma sapientíssima cuja significação, como já vimos, vai gradativamente sendo composta pelas imagens da linguagem figurativa da Bíblia, nosso manual catequético.
   A familiaridade que chegamos a ter com a Catequese apostólica, apresentada pelos evangelhos e os outros escritos do Novo Testamento, devido às suas inúmeras informações acerca da pessoa de Jesus, acaba nos transmitindo, quase que automaticamente, a percepção da sua condição divina. Por ele somos introduzidos na Vida trinitária da qual, embora continuemos na mais absoluta impossibilidade de definir a natureza, já podemos dizer que, da mesma, chegamos ao conhecimento de uma riqueza incomensurável. Disso tudo, o que mais nos consola é que a Ssma. Trindade quis efundi-la sobre nós pela ação do Espírito Santo.
   Uma ação trinitária, portanto, e esta é a surpreendente conclusão, age em favor de todo e cada homem, sendo-nos dada a condição de potenciá-la na medida em que, na condição de criaturas, correspondemos à ação daquele que quer nos moldar. Infelizmente a sua obra amorosa e sapientíssima, muitas vezes é frustrada pela massa que se rebela e questiona o próprio oleiro (Is 29,16).
    As palavras de Jesus, quando ele fala da sua pessoa, não podem deixar de repercutir fundo na nossa alma, para que o nosso espírito encontre em nós a disposição de nos abrirmos mais à ação da graça. Ele á a Vida-Verdade, portanto uma das hipóstases do “Eu sou”, que se fez carne e colocou a sua tenda entre nós. Ele é aquele que na condição de Filho “que o Pai consagrou e enviou ao mundo”, dele recebeu o poder de ressuscitar, porque diz ele: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10), uma vez que “Eu e o Pai somos um” (v.30). O memorial da sua Morte é a sua “carne dada para a vida do mundo”. Ele é aquele que ressuscitado, no momento da sua ascensão, enquanto, como lembra a Carta aos Hebreus, entra, uma vez por todas, com o seu sangue no templo do Céu, anuncia que “todo poder lhe foi dado, no céu e na terra” (Mt 28,18).

   Jesus é a Sabedoria que foi justificada pelas suas obras (Mt 11,19).  “Mais bela que o sol” (Sb 7,29), “alcança com vigor de um extremo ao outro e governa o universo retamente” (8,1).



 (6) O Jesus da revelação (II)

Cl 1,17 não hesita em atribuir a Jesus uma condição divina: “Ele é antes de tudo e tudo nele subsiste”, condição ilustrada por Jo 1,1-18; 8,58; 10,30; 14,10, textos que estão em paralelo com 1Jo 5,20.
A condição divina é implícita e, ao mesmo tempo, é o fundamento da condição de Jesus todas as vezes em que, no NT, é proclamado Senhor, título que traduz o termo pelo qual os autores do AT falavam de Deus, o El de Israel, enquanto se manifestava: Iahweh. Hb 1,2 explica esta condição de Jesus, o Herdeiro, citando Sb 7,26: Jesus é o Filho, “Resplendor da Glória de Deus, Imagem do seu Ser”. Esta sua condição é abertamente manifestada com a sua ressurreição dos mortos, tornado Senhor da Igreja “com poder, em espírito de santidade” (Rm 1,4). Para chegar a esta condição, o Unigênito Deus conduziu a humanidade assumida pela encarnação à perfeição, pela obediência até a morte e morte de Cruz (Fl 2,8).
A condição divina, que está nele, é por Jesus apresentada com o título de Filho do Homem que, de um lado, dele fala como simples homem, um “filho de homem”, mas que a sua ressurreição, por outro lado, mostra ser a própria Glória da Divindade, aquela que Ezequiel contemplava vindo como um electro no meio do fogo, no núcleo de uma nuvem tempestuosa (Ez 1,4): “como de um filho de homem, fogo dos quadris para baixo e dos quadris para cima, sentado sobre um trono de safira, acima da abóbada celeste” (1,26-28).
Os Apóstolos que estiveram com Jesus, enquanto se realizava a sua missão messiânica, falando com ele, escutando-o, vendo-o agir e até contemplando-o “no alto monte”, segundo esse título dele dão testemunho, porque chegaram a ver na sua morte a realização da obra da nossa redenção pela sua imolação e, na sua ressurreição, o selo da concretização do Plano do Pai. Ensinados pelo próprio Jesus que, ao longo da sua vida messiânica já  justificava a sua morte e ressurreição, nas suas liturgias dominicais  exploraram intensamente a sua doutrina, reconhecendo na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos (Lc 24,44) tudo o que o Espírito pré-evangelizara acerca do “Cristo que devia sofrer para entrar na Glória” (v.26).
A esse respeito, é bom lembrar de que forma surgiu a catequese apostólica que apresenta claras características de unidade temática e doutrinal. Lemos, nos Atos dos Apóstolos, que, desde o início, eram costumeiras as liturgias eucarísticas (cf. At 2,42). Os Apóstolos que permaneceram por muitos anos reunidos em Jerusalém, antes de se espalharem pelo mundo inteiro, tiveram muito tempo para estruturar a sua catequese (6,4).
Nota-se, contudo, que foi Paulo que aprofundou os conceitos, devido à sua preparação como rabino e fariseu. Vemos, também, que o Senhor suscitou na sua Igreja profetas, evangelistas e doutores (Ef 4,11), que sintetizaram nos seus evangelhos a pregação dos Apóstolos e até criaram escritos de grande peso sapiencial, quais os Atos dos Apóstolos, a Carta aos Efésios, a Carta aos Hebreus, o Apocalipse e o Evangelho de São João. As redações dos textos resultam serem elaborações que resumem uma pregação vasta e de grande profundidade doutrinária.
Mateus começa o seu Evangelho apresentando uma genealogia que tinha uma significação peculiar para os cristãos de origem judaica: Israel é o povo escolhido, a partir da vocação de Abraão, ao qual pertence, “segundo a carne, o próprio Cristo” (Rm 9,5). Nela se encontra resumida, através de nomes de uma descendência, a história do povo que conheceu vicissitudes nem sempre honrosas, devido a crimes praticados por seus membros, que Deus, todavia, permitiu que dessem continuidade ao povo ao qual tinha jurado ser fiel, nos seu amor misericordioso. Israel conhece, então, a presença do seu Deus no filho de Maria. Realiza-se a profecia de Gn 3,15, da forma mais surpreendente. É o Espírito que suscita em Maria, antes que coabite com o seu esposo da casa de Davi, o Emanuel. As informações que o evangelista nos repassa são uma evidente síntese de uma apresentação solene da pregação apostólica sobre o Israel de Deus e sobre o Emmanuel de Is 6-12: a Pedra que se desprende, que aniquila os reinos destinados a perecer e que, em seguida, se ergue num alto monte que nada poderá abalar; o menino cujos títulos são: Deus grande, Conselheiro admirável, Pai eterno, Príncipe da paz; o rebento da cepa de Jessé sobre o qual repousa o Espírito com os seus sete dons; o filho que excede em grandeza todo e qualquer descendente da estirpe de Abraão, porque nasce da Virgem.
Os Apóstolos tinham consciência da profundidade da doutrina que ensinavam porque era ditada a partir do testemunho que eles estavam dando de Jesus, que Deus constituiu Senhor. Iluminados pelo Espírito Santo estavam de posse da mais profunda compreensão do valor redentor da sua Paixão e Morte de Cruz. A Ressurreição e a Morte redentora permitiam apresentar todo o sentido profético dos ensinamentos de Jesus, dos seus sinais e das suas instituições, o sentido escatológico da vida da Igreja, o sentido do Reino que ele explicara com as suas parábolas, fundara com a sua Morte e no qual a Igreja, agora, esperava na sua manifestação gloriosa.
A reflexão sapiencial da catequese apostólica, enquanto orientada a ver nas manifestações da vida de Jesus os valores espirituais que acabamos de lembrar, nos é claramente provada pela narrativa midrashica da visita dos magos. Por ela, tenta-se ilustrar, enquanto é considerada manifestação divina na pessoa de Jesus, o filho da Virgem, portanto o Emanuel, a sua condição de Rei universal, a partir da sua origem hebraica: o rei dos judeus que devia nascer em Belém de Éfrata (Mq 5,1). A fuga até o Egito quer comentar a condição de fragilidade em que desponta a realização do Plano de Deus que vai se firmando porque Deus o protege, não obstante a terrível ameaça do mundo. Quando a cidade de Nazaré se torna a cidade onde Jesus estabelece a sua residência, a reflexão sapiencial explora o seu nome porque reconhece em Jesus o germe do Resto que Deus reservou para si, em Israel. Nesse sentido, os quadros midrashicos de Mt 2 podem ser considerados uma valiosa contribuição da reflexão sapiencial, acrescentada à síntese da exposição da pregação apostólica.
O fato de que o evangelho de Mateus foi escrito em hebraico e pregado em aramaico, ao longo da quarta década do primeiro século, nos permite dizer que ele está nos transmitindo os conteúdos da catequese apostólica. De fato, sabemos, pelos Atos dos Apóstolos, que os Apóstolos, não obstante as perseguições dos judeus, permaneceram unidos em Jerusalém. Isto explica a dependência de Marcos, da pregação dos Apóstolos na Igreja jerosolimitana, como, também, a dependência da mesma do trabalho mistagôgico do evangelho de Lucas e do evangelho de João (cf. a relação da narrativa, em João 6, da multiplicação dos pães com aquela de Mt 14,14-33).
A percepção da pregação apostólica, atrás da inteligente síntese das redações dos evangelistas e doutores, nos permite captar de que forma Jesus agiu.  Através de Lc 4 e 24 podemos deduzir que ele se apresentou e foi considerado como um “profeta”. Tudo pode ser sintetizado na exclamação do povo, lembrada pelo evangelho: “Um grande profeta surgiu entre nós e Deus visitou o seu povo” (Lc 7,16). Pela forma segundo a qual os evangelistas nos falam de Jesus, este resulta ser, e, de fato, assim devia ser, aquele descrito pela pregação dos Apóstolos às suas comunidades: um homem de Deus. Temos essa expressão resumida nas palavras de Nicodemos: “Certamente tu vens de Deus, porque ninguém realiza as obras que tu fazes a não ser que venha de Deus” (Jo 3,2).
Jesus resulta ser um judeu esclarecido, quanto à compreensão das Escrituras; uma condição que é amplamente explorada pela pregação apostólica, diante da ressurreição. Os ensinamentos são, então, relembrados, a eles atribuindo uma autoridade divina: “Foi dito aos antigos, mas Eu vos digo...” (Mt 5). Quando Jesus explica a sua condição de Messias, mostra ter pleno conhecimento do Plano de Deus e da maneira correta de ser realizado: “Jesus começou a mostrar aos seus discípulos que era necessário que fosse a Jerusalém e sofresse muito dos anciãos, dos chefes dos sacerdotes e dos escribas, e que fosse morto e ressurgisse ao terceiro dia” (Mt 16,21). Na condição de Pessoa divina, certamente deve ter surpreendido os seus discípulos quando declarava ser o Filho do Homem que único pode subir ao céu porque somente ele desceu do céu; e quando exclamou: “Eu te louvo ó Pai... Ninguém conhece o Pai a não ser o Filho...” (Mt.11,25-27).
Diante das prerrogativas de santidade e sabedoria divina, já não deveria ser tão difícil admitir a possibilidade de ele ter realizado os sinais da sua messianidade. Com Jesus estava acontecendo aquilo que a visita de um rei a uma cidade podia significar. Os benefícios que a divindade trazia superavam, e muito, o que a riqueza de um simples rei da terra podia oferecer, sobretudo porque os seus milagres queriam ser sinais de graças ainda maiores, quais a da libertação do maligno, de curas espirituais, da comunicação da luz da verdade, do alimento para o espírito, da santificação pela remissão dos pecados, do entendimento das Escrituras. É evidente que, para os Apóstolos, aquilo que nós, enfaticamente, chamamos de milagres e consideramos, muitas vezes, o máximo da manifestação do poder divino de Jesus, eram simples sinais, quando citados na sua pregação. Talvez até os narrassem por causa da sua relação com figuras do AT [cf BJ Mt 14,13, nota de rodapé n)]. Para eles era importante ilustrar a realidade que Jesus tinha apresentado através do seu poder divino.
Pedro , ao falar de Jesus, proclama que ele é o Cordeiro imolado que o Pai conheceu desde antes a criação do mundo (1Pd 1,19-20). Trata-se de algo que apresenta, de forma inequívoca, a universalidade da salvação que somente pode ser merecida por um homem de condição divina, porque somente uma Pessoa divina pode merecer em favor de outros seres, tornados seus irmãos segundo a natureza humana, uma condição de vida perdida pela rebeldia ao seu Criador.
No momento do Batismo de Jesus, no Rio Jordão, ouve-se a voz do Pai proclamando: “Eis o meu Filho no qual me comprazo” (Mt 3,17). Trata-se de uma complacência merecida por alguém que vive sempre fazendo a vontade do Pai. É por isto que Jesus chega a dizer: “O Pai me ama porque a sua vontade faço sempre” (Jo 8,29). Hb 10 apresenta Jesus nesta atitude desde o momento em que entra no mundo, citando o Sl 40: “Ofertas e sacrifícios não foram do teu agrado. Eis-me aqui, ó Pai, para fazer a tua vontade”, revelando possuir uma santidade plena que, contudo cresce em grau ao longo do seu processo de glorificação. Quando este chega ao seu termo, produz o Adão verdadeiro, na sua perfeição, princípio de santificação para todos aqueles que se tornam seus irmãos pela sua adesão de fé.

À luz da Revelação Plena, pela qual nos é dado saber que Jesus de Nazaré, o filho do carpinteiro e de Maria, é Pessoa divina, nos é possível falar dele, embora numa linguagem antropomórfica, utilizando aquilo que a narrativa da criação nos diz no início da Bíblia. Nisto, o evangelista João é nosso guia quando, querendo apresentar a Pessoa divina de Jesus no prólogo do seu evangelho diz: “No princípio era a Palavra e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus” (Jo 1,1). Encontramos a sua elucidação em 1Jo 1,1-2: “O que era desde o princípio da Palavra da Vida, que é Vida, Vida eterna, nós vo-lo anunciamos”. Jesus, segundo a sua condição divina, é Vida, na qual está o poder de criar, que existe desde sempre. Ao assumir a nossa condição humana pela encarnação, pode ser comparado à Luz, princípio de vida para todo e qualquer ser, segundo a sua condição. Em relação aos homens, nela está o poder de resgatá-los das trevas do pecado, reconciliando-os com Deus, contra quem se rebelaram, tornando-se, dessa forma, merecedores de autodestruição. Pela sua obra redentora e santificadora, Jesus, na condição de Filho Unigênito, glorifica o Pai. Este é o significado dos termos que Hb 1,1 utiliza quando fala de Jesus dizendo ser ele: “Resplendor da Glória de Deus, Imagem do seu Ser”. A glória divina resplandece por aquilo que realiza em favor dos homens, tornados seus irmãos, ao tornar-se fonte de “graça e verdade” pela sua imolação, em virtude de ser “Um com o Pai” (Jo 10,30), porque ele está no Pai e o Pai está nele (Jo 14,10).
O Precursor apresenta Jesus exatamente com os termos de Pedro, acima citados (1Pe 1,19-20): “Eis o Cordeiro que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29). Os seus discípulos logo compreendem que encontrarão a sua ilustração na Lei e nos Profetas (1,45). A síntese de toda a verdade está no título divino-messiânico que Jesus atribui a si mesmo: o “Filho do Homem” que os próprios anjos servem (1,51).
Pela condição divina do Filho do Homem, resulta claro que a obra que ele realizará pela sua imolação, certamente alcançará o que Deus profetizou ao amaldiçoar a Serpente, no Éden: “A Descendência da Mulher te esmagará a cabeça” (Gn 3,15). Esta estrita relação da Pessoa divina de Jesus, nos permite entender todo o significado das figuras proféticas que falam do Filho do Homem . A primeira dela é o Adão que o próprio Paulo define como “tipo”. Ela permite entender de que forma Jesus comunica a graça, enquanto suscita para si uma descendência. Noé resulta ser, como explica Cl 1,18 o Primogênito dos mortos. É bom advertir que Cl 1,15 sublinha a condição divina que o permite: o Filho é o “Primogênito de toda a criação”. Ao longo do texto que fala da “origem” de Israel, o povo de escolha para ser, entre todos os povos, aquele que anunciará o Deus Único existente, está a figura de Isaac, o amado que, na obediência, aceita a imolação, que torna possível que a bênção divina se estenda a todos os povos.
A reflexão sapiencial da Igreja Apostólica chega a apontar figuras que ilustram a ação divina de Jesus em realidades que não são necessariamente figuras humanas. Em Ex 12 temos a figura do Cordeiro pascal, que João lembra quando quer ilustrar o sentido da morte de Jesus sobre a Cruz (19,34). Jesus é a nossa Páscoa. Por isso, o memorial da sua “Carne dada para a vida do mundo” (6,51) perpetuará a condição de libertação do povo que ele conquistou. Isto será possível em virtude do caráter pelo qual o Espírito por ele merecido nos marcou. De fato, é pelo Espírito, através do exercício dos seus dons que possibilitará a purificação dos pecados, o caminho ascético que Pedro nos dita em 1Pd 1,3-11, que será possível alcançar o Reino dos Céus. Em Ex 16 temos o maná que o próprio Jesus sinaliza como sua figura, o Verdadeiro que desce do céu e “dá a vida ao mundo” (Jo 6,..). A comunidade cristã compreende de tal forma o ensinamento de Jesus que exclama, dirigindo-se Àquele que já conhece como Cristo, Filho de Deus, de quem espera ter a vida em virtude do seu Nome: “Senhor, dá-nos sempre deste Pão”! Em Ex 40 .. temos a figura da tenda da Presença que João aplicará à Encarnação do Unigênito Deus (Jo 1,14). O seu significado se torna mais claro quando advertimos que a descrição da tenda foi redigida tendo presentes as medidas da Templo de Salomão que tinha sido destruído por Nabucodonosor em 587 a.C. A este lugar, “Casa de Deus e Porta do Céu” refere-se Jesus quando lança o desafio aos anciãos do templo, dizendo: “Destruí este Templo e Eu em três dias o reedificarei” (Jo 3,..). O Filho do Homem, Glória de Iahweh, de fato, se apresentará, ressuscitado, aos Apóstolos, no Cenáculo, como o Novo Templo, com o seu lado direito aberto para fazer jorrar a Água do Espírito, para realizar, em seguida, a sua Ascensão ao Céu no topo do Monte das Oliveiras, o monte que, segundo a profecia de Ezequiel, a Glória de Iahweh escolheu ao abandonar a cidade de Jerusalém (Ez 10).


7) O Espírito Santo nas Escrituras


A existência do Espírito Santo nos é revelada paulatinamente pelas Escrituras. Dele temos a sua primeira informação na narrativa da criação em Gn 1. O autor, em linguagem antropomórfica, nos fala de Deus enquanto age pela sua palavra e pelo seu espírito. A idéia de uma tríplice existência de Pessoas divinas é sugerida pelo fato que o autor intui que o homem, no qual se inspira para falar de Deus, é criatura de Deus, feito à sua imagem e semelhança. A partir, portanto, do fato que o homem recebeu de Deus o ser, o entender e o poder de realizar, por analogia, atribui a Deus as mesmas prerrogativas, sublimando-as e, segundo as mesmas, o vê agir. À luz da revelação plena, aquilo que parece ser mera linguagem antropomórfica acerca do único Deus existente que age na criação, resulta ser linguagem figurativa profética acerca da própria vida em Deus. O quadro da criação é um válido vocábulo teológico que ilustra a Vida Trinitária. Em Deus, o Existir é a sua essência. Por isso é Perfeição infinita, que tudo sabe, e Poder infinito que tudo realiza. Essa última prerrogativa de Deus nos ajuda a entender o que é o Espírito, do qual nos é revelada a existência, em condição de hipóstase, por Jesus Cristo. O Espírito é o Poder de Deus que suscita as coisas do nada e que as renova. O termo hebraico que o caracteriza, desde o início da Bíblia é ruah. (Nota 1).
            Notamos que a doutrina acerca da condição trinitária em Deus é um fruto da reflexão sapiencial da Igreja apostólica, à semelhança da reflexão dos sábios hebreus que, na base da sua reflexão sobre a história de Israel, chegaram a intuir que o Deus da história do seu povo era o verdadeiro Deus. O Espírito é Pessoa divina porque Jesus assim o anunciou. A expressão mais clara da fé da igreja apostólica são as palavras de Jesus, constituído Senhor pela sua ressurreição, no momento da sua ascensão: “Todo poder me foi dado... ide, pois, e batizai em nome do Pai e do Filho e do Espírito santo” (Mt 28,18s). De que forma a Igreja apostólica chegou a esta doutrina? De que forma ela pode ser ilustrada? Quanto à sua origem, temos o discurso de Jesus em Jo 14-17, discurso que resume a doutrina sobre o Espírito Santo (Nota 2), espalhada ao longo do próprio evangelho de João e nos outros evangelhos; temos as cartas de São Paulo, sobretudo a Carta aos Romanos (Rm 8) (Nota 3). Quanto à sua ilustração temos toda a Escritura. Basta reconhecer na Profecia, naquilo que é atribuído ao espírito de Deus, uma descrição da ação d´Aquele que, agora, conhecemos ser Pessoa divina. Os teólogos costumam descrever a ação do Espírito enquanto o veem agir distintamente sobre juizes, profetas e reis; em seguida observam como esta ação do Espírito é, por si, figura, da sua ação sobre o Servo de Iahweh, enquanto este reúne em si as características de Guia, Profeta e Rei, que se realizam, contudo, de uma forma nova, isto é, mediante uma humilhação e expiação vicária. A partir da Encarnação do Verbo, Jesus, realizador da Profecia, se torna o lugar privilegiado do Espírito.
            Quando pensamos que é só por atribuição que distinguimos as ações de cada Pessoa da Ssma. Trindade, feita exceção da obra da redenção, em virtude da Encarnação do Filho, querendo falar do Espírito Santo, podemos dizer que, de Deus, ele é a expressão mais pura, porque Deus é espírito. Contudo, dessa vida transcendente de Deus nada podemos dizer a não ser que o Pai, o Filho e o Espírito participam da mesma Natureza e que as Pessoas divinas, entre elas, se distinguem meramente, pela forma pela qual se relacionam. É na obra da criação e, particularmente, na história da salvação que temos a oportunidade de falar de Deus com a riqueza que a sua ação “ad extra” nos permite até enquanto, por exemplo, atribuímos ao Pai a criação, ao Filho a redenção e ao Espírito a santificação.
            O Espírito, na condição de santificador, é o Poder de Deus que renova a face da terra. Esta é a sua precípua característica que se manifesta em poder criador, qual é descrito de forma rápida em Gn 1,2: “o Espírito de Deus pairava sobre as águas”. Quando investe homens chamados para uma específica missão, o Espírito Santo é espírito de conselho. Figura clássica dessa intervenção do Espírito é Moisés que se torna juiz do seu povo. A ele o Espírito une outros setenta homens. É oportuno notar, desde já, que a ação do Espírito sempre visa a santificação de todo o povo, último termo de toda a ação de Deus. Por isso, é bom lembrar a presença do Espírito em favor do povo de Deus caracterizada pela nuvem que o protegia na fuga do Egito: nuvem luminosa durante a noite, nuvem contra o calor do sol durante o dia. Ela se tornou até manifestação da força de Deus enquanto se deslocou da posição de frente para a posição de trás para separar e defender os hebreus da investida do exército de faraó. Quando Isaias fala desta ação protetora do Espírito de Deus em favor de Israel, lhe dá uma conotação de Pessoa (Is 63,14). Mais uma vez estamos encontrando elementos que nos legitimam utilizar a Profecia para ilustrar a condição pessoal do Espírito, qual Cristo no-la revelou, ainda mais que isto acontece, também, quanto à Sabedoria divina, quando é apresentada por Sb 7,22-8,1. Os juizes, com a sua atuação, nos revelam que o Espírito Santo, além de ser espírito de conselho, é espírito de fortaleza. Eles se tornam irresistíveis na sua ação quando o Espírito está sobre eles. Aos profetas, o Espírito comunica o entendimento juntamente com o testemunho que se apresenta nele e que lhes dá a certeza de que estão falando exatamente o que Deus quer transmitir ao seu povo. Eis mais uma manifestação de que o último termo da ação de Deus é o povo que ele quer santificar. Mediante a sua ação sobre os profetas o Espírito acaba produzindo uma prova objetiva que o Deus de Israel é um Deus existente, seja porque o profeta sente em si o testemunho de Deus e seja porque Deus acaba realizando o que anuncia. Quando, a partir de Saul, o Espírito unge os reis de Israel, se revela espírito de conselho para governar e implantar o direito e a justiça. Constitui o rei no poder para lidar o seu povo na luta da guerra e no culto no templo.
            Todas as características que o Espírito manifestou nos juizes, profetas e reis se apresentam de novo, de forma sublimada, na figura do Servo de Iahweh. Por esta figura podemos ver qual será a ação do Espírito sobre Jesus, uma vez que ela é clara figura profética de Jesus Cristo. Aqui, também, cabe a observação que tudo se atua em vista do bem do povo de Deus, até porque, ao destino do Servo de Iahweh, está estritamente ligado o destino do povo de Deus e de todas as tribos da terra.
            A ação do Espírito sobre Jesus, qual é anunciada pela Profecia em relação ao Servo de Iahweh, deve ser integrada com o que Isaias I diz do Rebento da raiz de Jessé, enquanto o apresenta como rei de um reino escatológico, e com o que Isaias III diz do Messias (Is 61,1-3), enquanto o apresenta na sua ação profética.
            Quando, completados os tempos, o Filho diz ao Pai: “...eis-me aqui para fazer para fazer a tua vontade” (Hb 10,5), a ação do Espírito se torna única e singular sobre o Adão verdadeiro, o único que vai desenvolver a imagem e semelhança com o seu Criador, que está nele. Cristo se torna o lugar privilegiado do Espírito e a realidade que transcende a Profecia. Revela toda a profundidade da ação do Espírito, enquanto a Profecia é para a Igreja apostólica a condição adequada para a sua ilustração.
            É pela ação do Espírito que se atua a profecia do Emanuel, da forma que no-la ilustram Mt 1,18-23 e Lc 1,26-38. (Nota 4)
            A partir do seu Batismo ao Rio Jordão, momento em que o Espírito o santifica para a imolação pela qual realizará o Reino como descendente da Casa de Davi, Jesus, impelido pelo Espírito, vai para o deserto, inicia, depois, a sua pregação escatologica anunciando o Reino que está perto, se revela grande profeta que fala com autoridade (Mc 1,27), começa a sua caminhada para Jerusalém (9,51) até o triunfo definitivo sobre o Mal. No sábado (o primeiro dia da semana) expulsa o demônio (Mc 1,21) e no dia da “Hora”, que é o sexto dia, o exclui definitivamente (Jo 12,31).
            Na sinagoga de Nazaré Jesus interpreta Is 61,1-3  e o atribui a si . Mas, enquanto se realiza a profecia, está atuando-se nele uma ação eminentemente trinitária por meio da humanidade que o Filho assumiu. Ungida pelo Espírito que procede do Pai e do Filho, opera ações divinas. A sua morte, a do Filho, as resume em si. A ação do Filho sob o impulso do Espírito é tão eficaz que se torna fonte do Espírito (Jo 7,37-39). (Nota 5).
            Na vida da Igreja, o Espírito é o Espírito do Senhor ressuscitado. Por ele a pregação dos apóstolos provoca a conversão. Em At 2 constatamos o fato, em 1Tss 1,5 temos a interpretação de Paulo. O Espírito torna irresistível a ação da Igreja [Estevão diante dos seus adversários (At 7), Felipe que é arrebatado pelo Espírito(8,39)] e a assiste nas suas decisões [escolha de Matias (1,26), Concílio de Jerusalém (15,28)].


                                                                                O Espírito na vida do cristão

Mantidas as observações acima expostas acerca das específicas atribuições de cada Pessoa da Ssma. Trindade, dizemos que é pelo Espírito que a vida divina nos é comunicada seja porque quando falamos de Deus dizemos, antes de tudo, que ele é Espírito, e seja porque o próprio Jesus, ao se despedir, no Cenáculo, diz aos Apóstolos que enviará o Espírito que seria para eles Espírito da Verdade que os conduziria ao Verdadeiro, que seria um Espírito santificador, e que é a seiva que faz com que os que observam os seus mandamentos permaneçam nele, a Videira, e produzam muitos frutos. O Espírito é, portanto, a vida do cristão, enquanto Espírito do Verbo que se fez carne e de alma vivente, tornado Espírito vivificante, pela sua Ressurreição, se tornou Cabeça da igreja que é o seu Corpo. Disso resulta que existe uma identidade de vida divina no Verbo e no Espírito, enquanto o modo pelo qual seja o Verbo como o Espírito a comunicam aos fiéis da Igreja é próprio de cada Pessoa: o Verbo pela Encarnação, Morte e Ressurreição; o Espírito como santificador.
Ambos, o Verbo e o Espírito agem em Nome do Pai que, quanto aos fiéis, é aquele que envia o Filho e, pelo Filho, doa o Espírito. A ação trinitária, “ad extra”, em virtude das específicas atribuições de cada Pessoa divina, permite ver qual é a específica ação do Espírito: ele vem como Potência divina. O Verbo vem mais como Sabedoria, Luz. O Pai envia para que, pelo Verbo e o Espírito, toda a sua Bondade se manifeste nos seus máximos gestos de amor quais se realizaram ao levar a termo o seu Plano de divinização do homem.
Em relação, agora, à ação específica do Espírito, para que seja entendida a sua natureza, enquanto age sobre o fiel, é preciso lembrar as formas segundo as quais se manifestou na criação, na História de Israel, nos juizes, nos profetas e nos reis de Israel.
Na criação o Espírito se manifesta como uma ave que paira sobre o caos das águas do oceano (o theóm), para gerar a vida e que se torna espírito de vida para os seres animados e “imagem e semelhança de Deus” no homem, quando Iahweh sopra nas narinas do ser tirado do barro (o adamah). Esse quadro da criação do homem já indica a estrita dependência do mesmo do Espírito. O Espírito, para o homem, não é somente princípio de vida animada. É, também, condição de ser imagem de Deus, glória de Deus. Considerando que o homem assim o recebe no momento da criação, enquanto terá que viver a sua existência progredindo pela louvação e obediência ao Criador, intuímos que o Espírito é, para o homem a providência que o sustenta e conduz na sua existência. Considerando que o último termo do homem, segundo o Plano do Pai, é a sua divinização, devemos dizer também, como afirma São Paulo, que o Espírito é aquele que conduz o fiel ao pleno conhecimento do Verdadeiro (1 Cor 2,7-13).
A Potência do Espírito que se manifesta na criação volta a manifestar-se na força extraordinária dos juizes que se tornaram os libertadores de Israel. Repete-se neles aquilo que deve ser atribuído a Iahweh quando, por meios de Moisés, libertou Israel da escravidão dos egípcios. A potência extraordinária do Espírito que se manifesta seja na criação como no História de Israel, é a característica que ilustra com que poder o mesmo age quando liberta “o Santo do Hades” (At 2,24.27.31) para que não conheça a corrupção e, tornado o seu Espírito, chama à nova vida os ossos ressequidos (Ez 37) dos que jaziam nas trevas e na sombra da Morte (Lc 1,79).
Mas o Espírito é também espírito de entendimento nos profetas e espírito de conselho nos reis e, enquanto o Messias é anunciado pela figura do Servo de Iahweh, o vemos anunciado com unção que consagra para a missão sacerdotal que terá a sua máxima atuação na imolação de Cristo Jesus na Cruz. Todas essas ações serão repetidas pelo Espírito no fiel para que se torne outro Cristo, configurado a Jesus Sacerdote, Profeta e Rei.
Diante dessa apresentação sumária do Espírito, enquanto se manifesta no A.T., intuímos que a máxima operação que ele atua sobre o homem é a da divinização no momento do Batismo. É a criação do mundo que se renova, agora, a um nível mais profundo em que toda a Potência da Divindade atua para fazer nascer do caos do pecado a nova criatura, realmente imagem e semelhança de Deus, depois de ter plasmado, como seu Modelo, o homem novo, até torná-lo Senhor e Espírito, ressuscitando-o dos mortos.
A partir do Batismo, enquanto desenvolve a vida divina pelos dons do entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus, até chegar à sabedoria, o Espírito conduz o fiel até à sua glorificação, à semelhança da maneira com que conduziu a Humanidade de Cristo. São Paulo descreve a ação do Espírito que, contudo não dispensa a resposta do homem, quando expõe aos colossenses como deve ser a sua vida. Uma vez que receberam o Espírito Santo, em virtude da pregação apostólica e completaram a sua conversão aceitando ser batizados no Nome de Jesus Cristo, os fiéis devem cultivar a sua fé desenvolvendo os dons do Espírito. O primeiro, que é o espírito de entendimento, deve explorar a Palavra para que Cristo habite neles ricamente (Cl 3,16). Nesse ponto deve-se considerar o termo Palavra de forma abrangente: é Cristo, Revelação e Sacramento da Graça. Revelação, enquanto as Escrituras inspiradas pelo Espírito Santo ( 2Pe 1,21 ), falam dele como Princípio e Fonte da Vida (Jo 5,39); Sacramento da Graça, enquanto Verbo que se fez carne, se imolou como vítima sacrifical e nos deu sua carne a comer e seu sangue a beber, “verdadeira comida...verdadeira bebida”. O dom do conselho implementa o que pelo entendimento foi ensinado, pela Palavra, ao fiel. Um dom importante que evita que o fiel se conduza por autoconvicções, pelo contrário, atendo-se a uma sólida doutrina, enquanto até acata a autoridade    dos Apóstolos (1Jo 4,13s). Pelo dom da fortaleza o fiel persevera em tudo aquilo que o espírito de entendimento e de conselho aprendeu da Palavra e da autoridade apostólica, dando testemunho enquanto resiste às provações (Ap 2,10b-11). O entendimento, o conselho e o espírito de fortaleza possibilitam tornar a vida cristã uma eucaristia: o fiel vive a sua imolação na fidelidade enquanto eleva a sua louvação ao Deus no qual confia. Por essa atitude desenvolve-se nele o espírito de piedade. A ciência é a forma de entendimento possuída por aquele que desenvolveu os dons do Espírito lembrados até aqui, pela qual o fiel vive o conhecimento de Deus, no sentido bíblico: vê as coisas “sub lumine Dei”. O dom da Sabedoria é fundamental para que a virtude teologal da caridade seja coroada por uma “esperança que não será confundida” (Rm 5,5). É um dom que São Paulo pede em favor dos cristãos, juntamente com o espírito de revelação. A sabedoria, portanto, é um dom necessário para que o fiel dê testemunho de Jesus Cristo particularmente em tempo de perseguições. Possibilita discernir qual é a verdade no meio do turbilhão da calúnia, do sofrimento e da ameaça de ser morto. O espírito de revelação está intimamente ligado à sabedoria porque permite ver claramente “qual é a riqueza da glória da herança entre os santos”(Ef 1,18). A revelação está ligada à sabedoria exatamente porque é pela iluminação do Espírito que o fiel se torna sábio. É o dom que Daniel recebe quando precisa ser confortado pelas Escrituras para poder interpretar o sentido da perseguição de Antíoco Epífanes. É o dom que João exorta os fiéis a obter mediante a reflexão sobre a sua profecia para serem fortes nas perseguições (Ap 22,7;1,3).
O cultivo dos dons do Espírito leva os fiéis a possuir os frutos do Espírito. O amor, que brota da vivência cristã pela observância dos mandamentos de Cristo (1Jo 2,3.10). A alegria que é a experiência de Deus por parte de quem lhe é fiel na tribulação. Paz, que é a plenitude da vida divina que Cristo alcançou com a sua imolação e que o cristão alcança na proporção em que progride na sua imolação de cada dia. Benignidade, bondade e longanimidade são os frutos que a humanidade de Cristo experimentou na sua docilidade ao Espírito enquanto era conduzido à imolação de Cruz. No cristão são condições do seu espírito que brotam enquanto a sua vida passa de uma condição inicial para uma condição adulta. Ele vive com os sentimentos que a Humanidade de Cristo Jesus foi desenvolvendo na sua piedade. Fidelidade é a atitude de quem nada poderá separar do amor de Cristo (Rm 8,35). Pelos dons do Espírito, o fiel entendeu a grandiosidade do Plano de Deus. O próprio Espírito intercedeu por ele (Rm 8,27) de forma que se rejubila diante do desígnio de Deus que “os que de antemão ele conheceu, esses também predestinou a serem conformes à imagem do seu Filho, a fim de ser o primogênito entre muitos irmãos. E os que predestinou, também os chamou; e os que chamou, também os justificou, e os que justificou, também os glorificou”(vv. 29-30). Mansidão, é a condição a vítima que é conduzida ao sacrifício e “não abre a boca”. Cristo Jesus viveu na sua plenitude esse fruto do Espírito. Quando é vivido pelo cristão, a sua vida de imolação assume toda a sua significação. O autodomínio é a condição pela qual tudo o que o cristão faz é aceito por Deus. Sobe a Montanha do Senhor somente quem tem puro o coração (Sl 24,3s); “Aquele que comete o pecado é do demônio. Nisto se revelam os filhos de Deus e os filhos do demônio: todo o que não pratica a justiça não é de Deus, nem aquele que não ama o seu irmão” (1Jo 3, 8.10).
Na base de todo esse conhecimento, São Paulo fala do Espírito na vida cristã em princípios. O Espírito é a vida divina que permite a própria implementação da Lei. Enquanto pela Aliança fundamentada numa Lei promulgada, as culpas se multiplicaram, agora, pelo Espírito, a graça é multiplicada. É na força do Espírito que o cristão vive e é capaz de agradar a Deus, porque foi justificado pela Morte de Cristo e pelo Cristo ressuscitado recebeu o Espírito que o conduz de graça em graça. Aliás, o Espírito se torna nele até penhor de ressurreição na carne. O Espírito é então condição de filiação divina que, até, torna o cristão herdeiro da vida eterna.
Sob o aspecto moral, o Espírito é visto por São Paulo em condições de socorrer a nossa fraqueza a ponto de interceder por nós enquanto “Aquele que perscruta o coração sabe qual o desejo do Espírito; pois é segundo Deus que ele intercede pelos santos (Rm 8,26s). É fundamental, portanto, não entristecer o Espírito. Pelo contrário, o cristão deve se engajar no combate contra a carne: “Já que o Espírito é nossa vida, que o Espírito nos faça também agir” (Gl 5,25).
As motivações morais que devem levar o cristão a corresponder aos impulsos do Espirito são: 1a) a libertação do pecado e da morte que o Espírito propicia, não esquecendo que a sua fonte foi a Morte de Cristo (Rm 8,2); 2a) a possibilidade de alcançar as coisas do Espírito: a vida e a paz (v.6). Quando éramos escravos das paixões era impossível pensar de alcançar os valores do Espírito sem que fôssemos salvos. 3a) O fato que agora pertencemos a Cristo, que nos comunica, em plenitude, o seu Espírito, nos tornando participantes da vida de Deus. 4a) A condição de glorificação de todo o nosso ser que o Espírito do Senhor ressuscitado nos propicia.
Surgem, contudo, os imperativos
 morais: 1o) Não somos mais devedores à carne para vivermos segundo a carne. Pelo contrário, pelo Espírito devemos fazer morrer as obrar do corpo para viver (vv. 12-13). 2o) Devemos buscar a plenitude do Espírito (Ef 5,18). Tendo recebido o Espírito que vem de Deus, somos chamados a conhecer “os dons da graça de Deus” (1Cor 2,12). Trata-se do processo de desenvolvimento da vida cristã que parte da conversão e progride desenvolvendo a graça do Batismo que é a vida em Cristo, a ponto de possuir a “sabedoria de Deus, misteriosa e oculta que Deus, antes dos séculos, de antemão destinou para a nossa glória” (1Cor 2,7).
Nas cartas de São Paulo constata-se que o Apóstolo teve uma experiência única do Espírito que o levou ao âmago dos mistérios de Deus. Isto se deu porque Paulo, a partir do momento da sua conversão, considerou tudo uma perda para conquistar a Cristo. Isto implica que na vida cristã o conhecimento é uma combinação de entendimento e de vida. É pela implementação das verdades que é possível um aprofundamento das mesmas. De fato, vida cristã é vida no Espírito, o que possibilita chegar até os mistérios de Deus que só o Espírito de Deus conhece e dos quais somente Ele participa plenamente.
Quando São Paulo trata da utilidade dos carismas na Igreja aponta para a ação que o Espírito desenvolve em cada cristão em vista da edificação da Igreja. Isso indica que a vida cristã que o Espírito suscita, a partir da conversão, deve ser desenvolvida em vista do bem de todo o corpo. Já contribui grandemente para a edificação da Igreja o fiel que cuida da sua santificação. Contudo, enquanto procura a verdadeira santificação, descobre necessariamente que a sua vida tem plena significação se ele atua na igreja segundo o ministério ao qual foi chamado. São Paulo apresenta uma hierarquia de ministérios, a partir dos Apóstolos, mas, quando fala dos carismas, insiste sobre o dom da profecia que considera extremamente útil para a edificação da Igreja. Nisto identifica o carisma como uma condição necessária para desenvolver a vida cristã, a partir do seu primeiro passo. De fato não é possível progredir na vida cristã se o fiel não utiliza as Escrituras. A profecia não é uma manifestação extraordinária do Espírito e sim, o  fruto do entendimento da Palavra de Deus revelada. A profecia torna-se o elo de     ligação entre o empenho da santificação pessoal e a necessária caridade que cada  fiel deve exercer em favor da Igreja, segundo o específico ministério ao qual foi chamado. 
Por tudo o que foi exposto resulta que o Espírito é o próprio Deus que,  quando se manifesta na criação é Potência criadora e vivificante. Na obra da Redenção explicita todo o seu Poder e revela toda a Sabedoria de Deus ao suscitar, no seio de Maria, a Humanidade para o Verbo, do qual se torna dom para a Igreja quando Jesus oferece o sacrifício de sua vida sobre a Cruz. Na Igreja, o Espírito é, portanto, vivificante a partir da renovação que opera no Batismo quando tange, com o seu símbolo, que é a água, o homem. Ao longo de toda a vida do fiel atua um processo de desenvolvimento que leva de um estado embrional a uma estatura adulta, em vista de uma participação plena do homem à vida de Céus. O indivíduo, contudo, é conduzido dentro de uma ação do Espírito que visa a edificação da Igreja como um corpo bem estruturado que se fundamenta sobre Cristo Cabeça. Enquanto o fiel corresponde à ação do Espírito, seja se santificando, seja agindo segundo o seu específico ministério, com o Espírito, edifica a Igreja. Grande é a dignidade do homem dentro do Plano de Deus. Embora a sua ação seja instrumental, contudo, é chamado como pessoa a agir com Deus. A sua grandeza resulta ainda mais quando considera que recebeu essa dignidade através de uma Redenção que lhe proporcionou uma condição bem mais superior àquela que possuía no início da atuação do Plano de Deus. Enquanto era resgatado da culpa, era divinizado pela direta comunicação do Espírito de Deus que o Senhor Jesus Cristo lhe infundiu na condição gloriosa de Ressuscitado.


Nota 1 - O sentido do termo Ruah em Gn 1,2      
Gn 1,2: Vê ruah’ elohim merahefet  (e o espírito de Deus pairando...)                                                                   Dt 32,11: que nescer iair quennó al gozalav ieraquef  (como águia incita o seu ninho, sobre os seus filhotes paira).
É importante estabelecer o sentido da palavra Ruah que se encontra em Gn 1,2 para poder estabelecer se a imagem que ele representa no momento da criação pode ser utilizada para descrever a vida em Deus.
O verbo (rahaf) que encontramos em Gn 1,2, e que descreve a ação da Ruah’, pela comparação com Dt 32,11, sugere uma ação assistencial. Se o termo Ruah’ simplesmente significasse, em Gn 1,2, vento, haveria outro verbo indicando a função do seu sopro.
            Considerando o teor de Gn 1, que é uma celebração da bondade de Deus, a tradução de Ruah’ com a palavra “espírito” é mais condizente, ainda mais que a palavra está acompanhada pelo nome de Deus. Nas Escrituras a expressão “espírito de Deus” se refere a uma ação pela qual o Senhor intervém de forma positiva: o que parece ser a ação de Deus no momento da criação. O espírito fica pairando sobre o oceano, a matéria informe das águas indômitas, para que delas brotem as criaturas que reflitam em si a Glória do Criador. Isto permite uma visão bem estruturada do texto Gn 1,1-2: quem age é o Senhor, pela sua Palavra e pelo seu Espírito.
            A paráfrase de Gn 1,1-2 poderia ser a seguinte: “Pela Palavra, Princípio da criação, o Senhor nosso deu origem a tudo o que o céu e a terra contêm. A terra era deserto e vazio. Treva sobre o oceano, o espírito do Senhor nosso pairando sobre as águas”.
            Além do mais, os primeiros capítulos do Gênesis foram redigidos no tempo do exílio, de forma que a expressão Ruahelohim  deve ser aproximada aos contextos anteriores em que aparece. O Sl 33,6 fala do espírito do Senhor, enquanto lembra a Palavra pela qual o céu foi feito. É o mesmo contexto de Gn 1,1-2. Se, depois, pelo paralelismo literário, queremos estabelecer uma identidade entre Palavra e Espírito que saem da boca de Deus, não há como pensar num vento. O Sl 104, 30 repete o contexto da criação. O espírito é o sopro, o que expira da boca de Deus, com potência criadora.
            Quando o termo Ruah’ assume o significado de vento está num contexto de uma ação violenta (Gn 8,1; Ez 1,4) e não aparece junto ao termo elohim.

Nota 2 - No fim da quinta vez (14,16.26;15,26;16,7.13) em que Jesus, no seu discurso da última Ceia, lembra o Espírito Santo, notamos que Jesus fala como aquele que o Pai já glorificou e que, na condição de Cabeça e Senhor da Igreja está em condições de enviar o Espírito aos seus fiéis. De fato Jesus, após ter realizado a sua imolação de Cruz, se torna Espírito vivificante (2 Cor 3,17s) e dá o seu Espírito à sua Igreja (cf. Ap1, 12-17: Jesus Senhor da Igreja; 2-3: “Quem têm ouvidos ouça o que o Espírito fala às Igrejas”).
O Espírito é, antes de mais nada, Espírito do Santo que comunica o Verdadeiro. Os fiéis têm o dever de observar o mandamentos de Cristo para criar as condições de uma comunicação plena de Cristo que voltou Vivo para que vivam por Ele. Enquanto Jesus e o Pai vêm a nós e fazem em nós sua morada, é pelo Espírito que isso acontece, porque o Espírito é Deus.
            O Espírito, também, comunica, para que a Vida Trinitária “permaneça em nós”, o espírito de entendimento pelo qual é dado à igreja relembrar todos os ensinamentos de Cristo e compreender Cristo em toda a sua riqueza, pelas Escrituras “que falam dele” (5,39). Nesse caso, o fiel deve aplicar-se às Escrituras com todas as forças da sua mente para criar, pela Profecia, as condições da plena comunicação da Verdade divina. O Espírito do verdadeiro vem a nós, portanto pela observância dos mandamentos, a partir da meditação contínua da Palavra de Deus
            Pelo fato que a Igreja é chamada a dar testemunho de Cristo permanecendo no mundo, devido às terríveis condições com que o mundo atua contra ela, ela precisa do Espírito para o testemunho. Trata-se do espírito de fortaleza para estar em condições de seguir a Cristo carregando a sua Cruz. Contudo, como lembra o Senhor das Igrejas (Ap 2-3), possuem esse espírito os que vivem o fervor da caridade e procuram a perfeita doutrina. 1Jo chama isto de purificação dos pecados, que 2Pd 1,5-10 detalha: juntar à fé a virtude, o conhecimento, o autodomínio, na perseverança, para abrir-se à esperança, possuir o amor fraterno  e chegar à caridade. Somente então é possível o testemunho.
            A Igreja santa terá sempre ao seu lado o Espírito que a tornará capaz, como o fez com Estevão, de ser irresistível na sua doutrina, arguindo o mundo quanto ao pecado, à justiça e o ao julgamento. O testemunho de João, os milagres realizados em nome do Pai, a comprovação das Escrituras dão a Estevão certeza da Messianidade e Divindade de Cristo, a ponto de confundir o Sinédrio. A ressurreição de Jesus, testemunhada pelos Apóstolos, é prova irrefutável que Deus glorificou o seu Cristo. Lançada, corajosamente, no rosto dos que o levaram à morte, a glorificação é prova irrefutável da justiça de Deus. Os inimigos do seu Cristo não prevaleceram, embora tivessem levantado o seu calcanhar contra ele, porque foram meros instrumentos para a realização do Plano de Deus.
            O Espírito, enquanto suscita nos fiéis da Igreja o testemunho em favor de Jesus Cristo, promovendo a fé, de forma que é reconhecido como o Verdadeiro (Jo 3, ) estabelece a culpabilidade do mundo que não quis reconhecê-lo. O pecado dos que não o receberam consiste em ter preferido as trevas à luz, porque suas obras eram más. Também, os fiéis vêem quanto o mundo é culpado porque se privou da justificação que Jesus mereceu para todos mediante a sua Morte redentora que lhe mereceu a glorificação. Enfim, enquanto os fiéis pela fé em Cristo alcançaram a liberdade, os que pertencem ao mundo ainda são escravos do pecado.
            O Espírito Santo é para a Igreja a plena posse do verdadeiro e o penhor da condição gloriosa, capaz até de lhe anunciar o futuro, mostrando, em visão, o que espera a Igreja. O Apocalipse é o livro que fala da “esperança da Glória reservada aos santos” que Jesus mostra a João que a vê “em Espírito”. Mais uma vez repetimos que essa última condição que o Espírito oferece depende da santificação, da escuta de Deus que se revela e da perseverança nas tribulações.
Nota 3 – O Espírito é vida e paz (Rm 8,6), a seiva pela qual os fiéis permanecem unidos a Cristo que, por ele, os justificou (v.10). Por ele se tornaram “filhos adotivos no Amado” (Ef 1,6) (v.14) e podem invocar a Deus como Pai. Pelo Espírito, se tornam co-herdeiros de Cristo (v.17) até por uma ressurreição corporal (v.11). De fato, por ele podemos fazer morrer as obras da carne (v.13). O Espírito geme em nós, socorrendo a nossa fraqueza (v. 26), aspirando à redenção do nosso corpo. Naqueles que, justificados pela fé, perseveram nas tribulações até adquirirem uma virtude comprovada, o Espírito promove a virtude da esperança, enquanto efunde neles o amor de Deus (5,1-5).

Nota 4 –  A profecia de Isaias, por si, é grandiosa. O anúncio do Emanuel está encrustado no próprio Livrinho do Emanuel (Is 6-12) e, por parte de Deus, quer ser, para Israel, o sinal de que ele é Iahweh, o Deus no qual o seu povo deve confiar, o único existente. O motivo da esperança por parte de Israel desse sinal prometido era a própria história que tinha-se realizado como Deus profetizara: a queda de Samaria e de Jerusalém, com a volta de um Resto da escravidão de Babilônia. Aquilo que permanecia inconcebível nas próprias palavras da profecia se torna claro para a Igreja de Cristo quando, à luz da sua ressurreição, Jesus é manifestado abertamente Filho de Deus com Poder (Rm 1,4). Eis como Jesus pôde nascer da Virgem! Ele mesmo se encarnou no seio de Maria em virtude do seu Espírito que, nela, suscitou a sua natureza humana: “A origem de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe,... achou-se grávida pelo Espírito Santo” (Mt 1,18). Pela narrativa da Anunciação, Lucas desenvolve a relação entre a virgindade de Maria (Lc 1,27) e a condição d´Aquele que dela nasceu. É uma ação do Espírito Santo pela qual o Filho de Deus assume a condição humana, além de realizar em si, sempre em virtude da ação do Espírito, todas as prerrogativas do Cristo anunciado pelas Escrituras.


Nota 5 – A íntima relação de Jesus com o Espírito pode ser vista na surpreendente doutrina que 2Cor 3,17s expõe. Jesus, a partir do momento em que recebe o Nome de Senhor (Fl 2,11), se torna um com o Espírito e é nessa condição que nos faz passar de glória em glória para sermos transfigurados à sua imagem. Essa condição última e definitiva de Jesus tem o seu início no momento em que, “por obra do Espírito Santo”, Maria concebe no seu ventre o Filho de Deus. A Humanidade de Cristo é unida hipostaticamente à Pessoa do Verbo que, no Espírito, com o qual comunica segundo a mesma natureza divina, a conduz de santidade em santidade (Lc 2,52). A íntima união de Jesus com o Espírito é revelada a João Batista no momento do Batismo ao Rio Jordão: “Eu não o conhecia, mas aquele que me enviou para batizar com água disse-me: ‘Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer é que batiza no Espírito Santo” (Jo 1,33). É na potência do Espírito que sobre ele permanece, que, portanto, Jesus realiza a sua missão: vence o príncipe deste mundo, anuncia a salvação, vive a sua imolação redentora. Quanto mais avança na sua missão messiânica, Aquele que o Pai ungiu e enviou ao mundo, revela a ação do Espírito nele: “Eu vim trazer fogo à terra, e como desejaria que já estivesse aceso! Devo receber um batismo, e como me angustio até que esteja consumado!” (Lc 12,49). Quando, então, do alto da Cruz, Jesus grita: “Está consumado”, significa que acaba de consumar, conduzido pelo Espírito desde o seu Batismo, por ele impelido (Mc 1,12) e nele exultando (Lc 10,21), a obra para a qual o Pai o enviou (Jo 4,34). O que ele nos mereceu com a sua imolação que o tornou o Templo do qual sai a Água e o Sangue e, mais precisamente, o Cordeiro imolado que tem seu lado aberto pela lança (19,34), o efunde sobre a Igreja no dia da sua ressurreição (20,22) como seu Espírito (16,14).


8) Ssma. Trindade

No dia da Ascensão ouvimos Jesus proclamar: “Todo poder me foi dado, ide, pois, e batizai em Nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Eu estarei convosco todos os dias até o fim dos tempos” (Mt 28,18). A Igreja tem uma Cabeça, o Homem Cristo Jesus que se deu em redenção por todos, que Deus ressuscitou, mas que João diz que é a Palavra que se fez carne, superior a Moisés que deu a Lei. Por Jesus Cristo, nos advieram a “graça e a verdade”, porque ele é o Unigênito Deus que desde sempre vê e conhece a Deus (Jo 1,17-18).
            É pela pessoa do Filho que nos é revelada a condição de Vida Trinitária em Deus. Segundo a sua condição humana, Jesus é levado à perfeição pelo sofrimento. Concebido um pouco inferior aos anjos, é dessa forma, exaltado acima das ordens celestiais e tudo coloca sob os seus pés, “Principados e Autoridades” (Cl 2,15). E Paulo continua dizendo, “tudo foi feito por ele e para ele porque aprouve a Deus que nele estivesse toda primazia” (Cl 1,15-18). O homem Cristo Jesus elevou a nossa humanidade à Glória da Divindade. É por essa condição, em que Jesus se encontra a partir da sua Ascensão ao céu, que podemos falar da sua Pessoa divina. Além de Palavra, segundo a sua própria indicação, podemos chamá-lo de Filho. O homem Cristo Jesus, na condição de Filho, participa da natureza divina com o Pai.
            Além do Pai, Jesus nos revela a Pessoa divina do Espírito, pela fórmula trinitária, pela qual instituiu o Batismo no momento da sua Ascensão e por tudo o que ouvimos no discurso da Última Ceia: “É bom que eu vá, porque quando eu for vos enviarei o Espírito da Verdade... Ele vos lembrará tudo o que vos tenho dito e vos conduzirá a toda Verdade... Quando ele vier dará testemunho quanto ao pecado, à justiça e ao julgamento. Quanto ao pecado, porque não acreditaram em mim; quanto à justiça, porque vou para o Pai; quanto ao julgamento, porque o príncipe deste mundo será jogado fora” (Jo 14,26; 16,7-11). No dia de Pentecostes, prestamos a nossa adoração a esse Espírito que Jesus nos enviou do Pai.
            A linguagem de Jesus está a nos indicar que a fonte de tudo é um único Deus. Dessa forma, embora a sua revelação implique uma vida trinitária, é só por atribuição que dizemos que o Pai é o criador, o Filho, o redentor e o Espírito o santificador. É Deus que cria, embora dele falemos segundo uma linguagem antropomórfica e dizemos que opera pela Palavra que sai da sua boca e que vem com o Espírito que tudo suscita ou renova.
            Aquilo, porém, que parece proceder de uma só Pessoa divina, resulta, por revelação, ser uma ação de três Pessoas que participam de uma única vida. É essa Trindade santa que glorificamos no dia da solenidade da Ssma. Trindade. Trata-se de um mistério que tanto nos enriquece quanto a compreensão do nosso Deus. A ação diversificada de cada Pessoa nos permite considerar melhor as virtualidades do Único Deus: onipotente criador, de infinita sabedoria, beleza e bondade, misericordioso com a sua criatura, paciente, benigno e longânime, que revela o seu amor em Jesus Cristo, o Filho, entregue à morte para a nossa redenção, que nos renova pelo seu Espírito santificador.

A Solenidade da Santíssima Trindade celebra o nosso Deus, que a Bíblia, nosso manual catequético, apresenta, inicialmente, com o título de criador, termo pelo qual nós, por dedução, exatamente porque contemplamos a criação, definirmos como sendo o princípio de tudo, sem depender de nenhum outro, quanto ao seu existir.
Este Deus, que escapa totalmente a qualquer possibilidade de ser entendido na sua natureza, é aquele que nos chama a conhecê-lo; isto é, segundo a terminologia bíblica, a entrar em comunhão de vida com ele. Consciente da nossa condição, quanto à compreensão que nós possamos ter dele, ele mesmo toma a iniciativa, na condição de criador, de criar, pedagogicamente, condições de compreensão de nossa parte. A primeira condição que ele cria é aquela de se manifestar por meio de homens que, tendo dele recebido o carisma da profecia, dele nos falam de maneira segura. Este fenômeno que nós chamamos com o termo profetismo é a primeira forma pela qual aquele Deus que nós chegamos a conhecer através da contemplação das obras que ele realiza, dos acontecimentos históricos que ele profetiza e a forma surpreendente pela qual realiza o seu plano, nos comunica a certeza do seu existir. Os profetas dele nos falam declarando que ele é o criador de todas as coisas, o senhor da história e que a forma pela qual os homens concebem a divindade é uma idolatria.
Inicia-se por parte de Deus um processo, ao longo da história da humanidade, com a escolha inicial de um povo que dele recebe a missão de ser o seu arauto para todos os povos, para que a humanidade chegue a conhecer o seu Deus, tratando de se purificar de tudo aquilo que é erro no que diz respeito à concepção da divindade e à adoração de falsos deuses.
O processo é lento exatamente porque o homem é chamado a desconfiar de si mesmo diante de um Deus que não conseguirá alcançar a não ser pela fé, à qual, por si, o induzem, não diretamente a pessoa de Deus, mas, indiretamente, as suas manifestações.
Uma vez que o processo de revelação de Deus começa a se realizar com Israel, este adquire um  conhecimento através de ensinamentos divinos ditados, fenômeno que se dá também através da reflexão sapiencial de homens que Deus suscita no meio do seu povo, revelador do seu plano universal de salvação. Dessa maneira chegamos a possuir um conhecimento revelado de Deus, a compreensão da condição do homem e a compreensão do Deus da criação segundo uma maneira ainda mais profunda, porque atua uma Redenção através da “descendência da mulher” que, surpreendentemente, se revela de condição divina.
Esta descendência é anunciada ao mundo através de enviados por parte desta segunda pessoa divina que tal se revela pela sua ressurreição.  Os Apóstolos são a direta continuação do povo de Israel, fundamentados sobre a pedra angular que é Cristo, que interpretam a profecia na sua realização.
Aquele que os torna capazes desta obra de Revelação que é realizada por eles segundo a tradição da reflexão sapiencial em Israel, é o Espírito Santo que o próprio Jesus na condição divina, que é sua, apresenta.
As características destas três pessoas são descritas na Escritura através do processo do plano de Deus narrado no seu desenvolver-se.
Os profetas falam deste Deus, apresentando-o como único Deus existente. A revelação que acontece com Jesus Cristo aprofunda a compreensão da sua natureza. Jesus Cristo a manifesta começando pela sua pessoa que, pelo fato que assumiu pela encarnação a natureza humana, se relaciona com Deus Criador invocando-o como pai. Ao conceito de criador que já o revela onipotente sapiente perfeito e bom, acrescenta o conceito de misericordioso. Isto é, apresenta Deus na condição de bondade que fiel a si mesma sempre age no amor, um amor que chega ao seu ápice quando envia o Filho ao mundo. Jesus proclama ser este filho que tem sua origem em Deus. Estes termos ilustram a unidade da natureza das pessoas que existem em Deus: a do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo. Elas têm em comum a existência que é a sua essência que pode ser definida com o termo “Vida”. Elas são o Deus que vive, único existente. A prerrogativa comum a cada uma das suas pessoas é aquela de ser o Deus verdadeiro, único existente, porque nele está presente toda a gama das virtualidades daquele que é a existência por essência.
Esta condição do Deus da Revelação, consequentemente, somente do Deus da nossa religião, encontra a sua forma didática, a mais clara, na formulação a mais compreensível para nós, que Jesus, na condição de segunda pessoa da Santíssima Trindade, nos anuncia. Ouvimo-lo dizer por ele no momento da Ascensão, isto é no momento final da sua obra, segundo a sua condição divina, portanto, abertamente manifestada pela sua ressurreição.  Jesus diz aos apóstolos: “Todo poder me foi dado no céu e na terra. Ide, pois, e pregai, batizando no Nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo (Mt 28,18). O termo “nome” indica a unidade da natureza.Os termos Pai, Filho e Espírito indicam a Trindade das pessoas que participam da natureza única do Deus existente. Notamos que a formulação depende exatamente de uma vontade divina de nos apresentar didaticamente a condição da natureza divina totalmente diferente da natureza da criatura. O princípio básico desta diferença abissal são exatamente os termos que acabamos de lembrar: criador, criatura. A criatura todavia, assim como o descobre a reflexão sapiencial da tradição judaica guiada pelo Espírito Santo, traz consigo a imagem e a semelhança do seu criador, motivo pelo qual não está errado falar de Deus através de uma linguagem metafórica. Caímos no erro quando nos esquecemos da condição analógica dos termos e concebemos uma condição de paternidade, de filiação e de espírito como se Deus fosse um homem.  Em Deus nós temos três…, e agora não dizemos mais pessoas porque o termo pessoa é algo de improvisado pela teologia ocidental, dizemos ‘hipóstases’ que significa seres com todas as qualificações de alguém que nós, segundo a nossa linguagem, chamamos com o termo de pessoa. Portanto um ser que possui as qualificações de existente, inteligente e capaz de querer. Qualificações, todas elas, todavia, sublimadas, das quais infelizmente nós não temos experiência alguma. Deus, contudo, ao chegar a esta apresentação de si, depois de ter falado de si em diferentes momentos, segundo esta sua condição, nos permite uma compreensão do nosso criador particularmente rica e que nos leva a uma adoração que muito nos realiza espiritualmente.
Tudo isto acontece quando nos reunimos para celebrar a redenção de Cristo, que nos mereceu a santificação pela ação do Espírito de Deus, na celebração da santa missa, memorial do plano que o Pai realizou na sua infinita sabedoria. É por isso que a missa se abre com a invocação do Pai e do Filho e do Espírito Santo e se conclui com a benção no nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. A celebração em adoração do Deus trinitário está, portanto, no centro do nosso culto, memorial da mais alta diaconia que Deus realizou em nosso favor.

   Segundo passo do processo gradual da Revelação

A riqueza doutrinária que está neste mistério, que Jesus nos revela, pode ser por nós avaliada através da apresentação que João nos faz da vida em Deus no Prólogo do seu evangelho. Declara o evangelista que Jesus é a Palavra criadora. O comentário desta condição está no livro da Sabedoria, capítulo sete. João acrescenta à explicação do autor do livro da Sabedoria a informação de uma condição pessoal da Sabedoria, artífice de toda a criação: a de palavra que, pronunciada por Deus, dá origem, na força do Espírito, a todas as coisas. Dessa forma, vemos que João relaciona o conceito de Palavra, Sabedoria de Deus, aos termos que encontrarmos no começo da Escritura, momento no qual é descrita a obra da criação através de uma linguagem antropomórfica. Vemos que Deus realiza todas as coisas fazendo sair da sua boca a palavra enquanto o espírito que sai com a palavra opera a criação de todas as coisas, apresentado como uma pomba que paira sobre as águas revoltas do oceano para que delas desponte a vida.  Aquilo que no início da Escritura é simplesmente uma forma para descrever ação de Deus na criação se torna, para João, o quadro que o ajuda a caracterizar a condição pessoal da Palavra em Deus, uma condição que lhe permite dizer que “a Palavra se fez carne” (Jo 1,14), mostrando, de forma clara, que o termo Palavra pode ser perfeitamente aplicado a Jesus para indicar a unicidade de natureza em Deus e em Jesus Cristo. A condição divina, expressada, inicialmente, por meio da imagem do Deus Criador, apresentada em linguagem antropomórfica, é desenvolvida imediatamente através dos termos “vida” e “verdade’ que aprofundam os conceitos acerca da natureza que o Pai e o Filho têm em comum. Uma natureza que, em seguida, será, pelo próprio Jesus, atribuída ao Espírito Santo, o “Espírito do Verdadeiro” que, ao mesmo tempo, é Espírito de Vida. Através do termo ‘Vida’, vemos que João, na sua primeira carta, e mais precisamente na abertura do seu escrito, define o Filho como sendo a “Palavra da vida”, insistindo e dizendo depois que é a “Vida” e, num terceiro momento, declarando que é “Vida eterna”. No fim desta mesma carta João diz que nós sabemos que veio o Filho de Deus para nos fazer conhecer o verdadeiro e que nós estamos no verdadeiro, em Jesus Cristo, Vida eterna (Jo 5,20). O termo, portanto, ‘verdade’ que Jesus atribui a si mesmo quando afirma falando Tomé que ele é o caminho a Verdade e a Vida nos mostra como podemos pensar numa única natureza que podemos definir vida de Deus, verdade participada pelo Pai, pelo Filho, e pelo Espírito Santo. A fórmula, portanto, que melhor, didaticamente, serve para apresentar esta condição de unidade de vida e de verdade, participada da pelas três pessoas, é exatamente a terminologia que Jesus adotou, até porque a sua condição, qual aquela de quem, sendo Deus, assumiu a natureza humana apresentando-se diante de Deus na condição de servo, é ele mesmo na condição de um ser visível e palpável. Quando transfigurado é contemplado na sua condição divina de Filho em relação a Deus Pai, e a teologia esclarece esta relação pessoal do Pai, do Filho e do Espírito, dizemos que é somente por atribuição que nós falamos De uma ação que nos ressuscita e santifica. Atribuímos ao Pai a obra da criação, ao Cristo obra da santificação, lembrando, contudo, que, nesse caso, ela aconteceu por meio da Encarnação que somente se deu na pessoa do Filho. Temos, enfim, a santificação, que atribuímos ao Espírito Santo. A diversificação por atribuição da ação de Deus em favor dos homens nos permite ver, por meio de tudo aquilo que a Escritura nos diz, quão intensa é obra de Deus em favor dos homens e quanto, ao mesmo tempo, ela é grandiosa. O Pai revela toda a bondade em favor dos homens, porque, segundo o seu plano, quer a nossa divinização através da adoção filial. O Filho é aquele que, assumindo a natureza humana, alcança para nós esta condição pela sua imolação e, pela mesma, nos alcança, também, o dom do Espírito. O Espírito Santo, segundo o poder divino que lhe é próprio e que lhe permite renovar todas as coisas, santifica a criatura e a faz crescer com os seus dons preparando-a a herdar, com Jesus, seu Redentor, o reino que no fim, nos diz São Paulo, Cristo entregará ao Pai. 


(9) Escatologia


            A importância da escatologia na vida ascética nos é indicada seja pelo Concílio Vaticano II, como, também, pela Liturgia diária que nos apresenta a leitura do Apocalipse na última quinzena do Ano Litúrgico, Ano par, e pela Liturgia dominical que abre o Ano Litúrgico e o conclui com textos que insistem sobre a vigilância, porque não sabemos “em que dia o Senhor virá”. Por sua vez, a leitura do Apocalipse remete ao ensinamento insistente da catequese apostólica, que encontramos seja nos discursos escatológicos dos sinópticos, como também nas Cartas dos Apóstolos, que nos exortam à vigilância para não sermos surpreendidos pelo Dia do Senhor como por um ladrão que, de noite, invade a nossa casa.
            São Paulo, na sua primeira carta aos Tessalonicenses, nos lembra que somos “filhos da luz” e que o dia do Senhor será o momento do nosso encontro com aquele que estamos sempre esperando, enquanto realizamos as boas obras para as quais fomos chamados.
            O momento mais alto da nossa vigilância, capaz até de renovar o nosso ânimo para darmos continuidade a toda sorte de boas obras, enquanto movidos pelo poder do Espírito, é a celebração, no dia do Senhor, do Memorial da sua Morte, exatamente da forma segundo a qual somos ensinados pelo Apocalipse. Apresenta-se, para que o contemplemos em toda a sua dignidade divina e em todo o seu poder, “Aquele que esteve morto, mas, agora está vivo” (Ap 1,18). É o Filho do Homem que João exalta desde a saudação da carta dirigida a todas as igrejas: “Àquele que nos ama, que nos lavou com o seu sangue dos nossos pecados, a Testemunha fiel, o Primogênito dentre os mortos, o Príncipe dos reis da terra, e fez de nós um Reino e Sacerdotes para Deus Pai, a ele o poder e a glória pelos séculos dos séculos” (1,5-6).
            João se anima e se entusiasma diante desta visão que lhe faz ver que as tribulações que sofre por causa da Palavra e do testemunho de Jesus Cristo, de fato, são condições excelentes para reinar com ele. Temos disto a explicação na Carta aos Romanos quando Paulo afirma que é pela perseverança nas tribulações que promovemos a virtude da constância, a qual, por sua vez, coroará a nossa vida de caridade com a virtude da esperança (Rm 5,3-5). É por esta virtude que é possível enfrentar a espada, a morte e qualquer outra tribulação, porque, por causa dela, nada pode separar o fiel do amor de Cristo.
            A contemplação do Filho do Homem, Senhor da Igreja, cuja dignidade sacerdotal e régia e cuja condição divina se manifestam  pelas suas vestes e pelos seus cabelos brancos, olhos de fogo, espada da palavra que sai da sua boca, pernas de bronze incandescente, fruto de tudo o que as Escrituras meditadas na Liturgia dominical podem lembrar, é aquilo  que qualquer fiel pode alcançar, a ponto de poder entender as coisas que lhe fazem ver de Jesus Cristo, o sentido das coisas que estão acontecendo, e ter a compreensão das coisas que nos esperam e que logo nos serão manifestadas.
            Pelas cartas dirigidas às Igrejas (Ap 2-3), à luz dos títulos divino-messiânicos que podem ser recuperados pela leitura das Escrituras Sagradas, diante da dignidade e poder divino de Jesus Cristo Senhor, é dado, ao fiel, advertir a sua grave responsabilidade quanto ao fervor de caridade que deve sempre estar nele, a comunhão de fé com os Apóstolos, para que esteja em comunhão de vida com o Filho e o Pai, e as boas obras que devem ser realizadas.
            Por tudo aquilo que o leitor na Liturgia dominical proclama e que o fiel ouve da Profecia, isto é das Escrituras sagradas, se tudo guarda no seu coração, pode claramente entender que é o Espírito que fala às Igrejas.
            Ao homem de fé, que vive à altura da sua vocação cristã, é dado, também, contemplar a condição definitiva à qual é chamado, após o breve tempo da sua provação, aqui na terra. O Senhor da Igreja que ele pôde contemplar na Liturgia dominical, é o Filho do Homem sentado, com o Pai, no trono da Majestade, que, da corte celeste, liderada pelos anciãos que apresentam a louvação dos santos como um incenso, recebe a mesma adoração. Este é Jesus Cristo, que, em virtude da sua imolação, recebeu, do Pai, o poder de julgar.
            A reflexão sobre o Cordeiro imolado que rompe os selos do Livro da História, é o núcleo da escatologia sobre a qual o fiel deve continuamente voltar a refletir em cada Liturgia dominical. É por esta reflexão que, continuamente, lhe é dado captar a dignidade divina do Senhor da Igreja e o valor da sua imolação redentora. Também, está em condição de captar toda a riqueza da Revelação contida nas Escrituras Sagradas e o mistério dos acontecimentos da vida da Igreja.
Com a Morte de Cristo, tudo está realizado. Está em ato um julgamento que glorifica os que não aceitaram o sinal ou o nome da besta, perseverando no seu testemunho de Jesus Cristo até o derramamento do sangue. Os maus têm como destino o lagar do furor da ira de Deus. Por tudo isso, fica claro que a Cidade terrena, que pode ser definida como Sodoma ou Egito, tem como destino definitivo a sua destruição, após ser lançada no mar como uma grande montanha.
            O Filho do Homem que, em virtude da sua imolação, alcançou o poder de fazer justiça em favor dos mártires e de todos os que deram testemunho da Palavra, é o Verbo, chamado a reger todos os povos com cetro de ferro. Em relação à sua Igreja, será como um esposo que ama a sua esposa. É ele que lhe fala dizendo: “Venho em breve”, enquanto responde à voz do Espírito que nela clama: “Vem Senhor Jesus”!
O que os evangelhos nos ensinam
            Quando lemos os evangelhos, vemos que Jesus liga a escatologia à sua morte, momento em que, por parte dos sumos sacerdotes e do sinédrio é praticada a “abominação da desolação” que, segundo o evangelho de João é profetizada pelo Filho do Homem desde o início da sua vida messiânica: “Destruí este templo e Eu, em três dias, o reedificarei” (Jo 2,19). Dependendo da condição de relacionamento de cada homem com ela, na hora de sua morte, será determinado o seu destino: “Uns irão para a vida eterna e os outros para a morte eterna”. Torna-se, portanto, determinante viver na vigilância para não sermos “surpreendidos como por um ladrão”. Os que vivem acumulando boas obras serão encontrados pelo Senhor com as suas lâmpadas acesas, isto é, nas condições de poder participar do banquete da núpcias do Cordeiro, “revestidos de linho resplandecente” (Ap 19,8).
            As motivações para praticar o ensinamento de Jesus a esse respeito são todos os fatos que a Revelação apresenta e que dizem respeito ao Desígnio de Deus, desde sempre determinado em querer que os homens participem da sua vida na condição de “filhos adotivos em Jesus Cristo” (Ef 1,5). A Morte de Cristo é o ponto alto da manifestação divina, determinante, quando contemplado, para nos preocupar devidamente no que diz respeito à segunda vinda do Filho do Homem. Haverá o clarear como de um relâmpago. A Palavra da Vida, a Vida, a Vida eterna, o Verdadeiro transfigurará os bons, enquanto extinguirá os maus. A advertência que Jesus exprime a esse respeito através da frase proverbial “Onde estiver o cadáver, aí se reunirão os abutres” (Lc 17,37) tem este sentido. Temos que escutar os conselhos de Paulo aos coríntios: “quem é casado é como se não estivesse...” (1Cor 7,29). Temos que nos desfazer das preocupações materiais: “porque o corpo corruptível torna pesada a alma, e a morada terrestre oprime o espírito carregado de cuidados” (Sb 9,15).
A narrativa da criação, o drama da culpa, a promessa de um Redentor, a origem de Israel em vista de um anúncio de salvação para toda a humanidade, por parte do Deus verdadeiro, a ação profética, talvez estejam longe de ser uma premente advertência de uma escatologia. Esta se apresenta, contudo, com toda a sua força no momento da encarnação do Verbo e, mais exatamente, no momento em que a profecia conhece a sua atuação que dá ânimo, sobretudo, a quem espera o Redentor. Isto porque a escatologia está estritamente ligada à própria redenção devido ao fato desta ser a própria realização do Desígnio de Deus, que o anúncio de uma redenção já deslumbrava. De fato, Deus não queria limitar a sua ação redentora a uma simples reconciliação do homem consigo. Queria que a reconciliação fosse condição de uma divinização que tornaria possível o máximo da atuação da sua bondade pela vocação do homem à participação da sua vida mediante a adoção filial.
            Ocorre que esta condição máxima de atuação no homem, enquanto é uma condição que Deus realiza em vista da participação da criatura à sua vida de forma definitiva, já é escatologia na qual se apresentam de forma embrional, isto é, na fé provocada pelo anúncio da Boa Nova, as condições definitivas das “coisas que se esperam”, das quais a criatura tomará posse, a partir do momento em que lhe será concedido entrar na visão de Deus. Jo 3 explica esta condição potencial de forma bastante clara, enquanto Hb 11,1 a sintetiza dizendo: “A fé é o que fundamenta as coisas que são esperadas, o que nos prova as coisas que ainda não vemos”. Pela fé as realidades futuras estão presentes ao nosso espírito e, segundo a forma em que elas estão presentes, oferecem a sua argumentação.
            Fundamentalmente, portanto, duas realidades estão presentes no conceito de escatologia: as coisas que esperamos e os seus argumentos. Estas duas realidades motivam o contínuo aprofundamento da compreensão das verdades da Revelação, que se tornam sempre mais motivo de consolação e do anseio sempre crescente da sua manifestação, enquanto as esperamos.
            Através do livro do Apocalipse nos é dado promover, particularmente, o anseio, enquanto, através da Carta aos Hebreus somos admoestados acerca das obrigações que devemos assumir para promover a nossa fé.
Os Evangelhos têm a sua própria linha de desenvolver a escatologia porque eles se preocupam em explicitar os elementos escatológicos do Reino seja no que se refere ao momento em que Jesus começa a atuá-lo, seja no que se refere aos elementos que se manifestarão no momento da sua inauguração na eternidade, com a sua segunda vinda.
            Os elementos do Reino que está para se realizar porque chegou o tempo do fim estão presentes desde o momento em que Deus envia o Filho que nasce de mulher. Detecta-os a reflexão sapiencial da igreja apostólica que sobre eles discursa através da narrativa do sonho de José que apresenta Jesus na condição de Emmanuel que nasce da virgem, segundo a profecia de Is 7,14. A natureza escatológica do acontecimento é ressaltada pela animosidade que logo brota no rei terreno que quer matar o menino: uma confrontação que se manifesta a partir do momento em que os reis magos declaram que vieram para adorar o “recém-nascido Rei dos Judeus”. Não há, contudo, como o Dragão “devorar o Filho”, nem a Besta matar o “Menino”, porque Deus quer realizar o seu Plano.
            A conotação escatológica da catequese dos Evangelhos volta a se apresentar na pregação de João Batista que caracteriza o Reino que Jesus vem para inaugurar, juntando o aspecto da teofania benevolente do ‘Forte’ que vem para batizar no Espírito Santo e que, pelo mesmo Espírito, expulsará os demônios, com o da teofania da segunda vinda, momento em que o Filho do homem julgará com a “espada de dois gumes que sai da sua boca” (Ap 1,16), a Palavra que penetra o mais profundo da alma (Hb 4,12), porque “o machado está posto à raiz” (Mt 3,10).
            A conotação escatológica da ação messiânica de Jesus pode ser sintetizada com as palavras do prólogo do Apocalipse: um breve tempo separa os homens daquilo que Deus determinou que deve acontecer. A ação messiânica de Jesus está marcada pela “abominação da desolação” praticada contra o Templo, e ela acarretará a destruição da Cidade, após Jesus ter tentado, em vão, reunir seus filhos (Mt 23,37).
            Todo e cada homem, consequentemente, poderá ser surpreendido pelo dia do Senhor, “como por um ladrão”, caso não viva na vigilância. Sob esse aspecto, a mensagem que Jesus nos deixou e que os Apóstolos nos transmitiram, acompanhando o Espírito a sua pregação com sinais e prodígios, assume uma conotação escatológica em consonância com a escatologia dos profetas do AT. Ela quer motivar o fiel a trilhar o caminho da vida, caminho que nos garante as condições de escaparmos da condenação eterna.
            A escatologia, ao mesmo tempo em que conclui o ciclo que vai da criação até a Encarnação redentora do Verbo que se fez carne, enquanto nesta mostra a sua atuação, abre, por ela, a nova era, qual é aquela do advento do Reino. Dessa forma ela estabelece uma relação entre um primeiro tempo, qual é aquele da manifestação da condição definitiva à qual o homem é chamado, com um segundo tempo, que apresentará os homens que tiverem vivido as condições exigidas pelo seu anúncio, numa condição gloriosa. O tempo que vai da sua manifestação, que acontece com o anúncio que Jesus faz do Reino, porque completou-se o tempo, até a sua realização, é apresentado com uma terminologia que o faz pensar curto. A proximidade da sua realização, contudo, não está relacionada com o fim do mundo, e sim, com o fim da existência, no mundo, de cada homem. É por isto que este é advertido pelo próprio Jesus a viver na vigilância porque, diz ele, “na hora em que menos pensardes o Filho do Homem virá”. A provação, de fato, é permitida por Deus para quem “tem pouca força”. Se Deus não abreviasse os tempos, ninguém se salvaria. A visão de um julgamento universal no fim dos tempos é uma imagem da linguagem apocalíptica que visa sublinhar a importância e a gravidade do julgamento que vai atingir cada homem quando, Aquele que está sentado num trono branco, ao abrir o Livro, irá conferir se o nome do autor do livro de cada um está lá escrito. Se lá estiver, aquele homem escapará da segunda morte, o lago de fogo (Ap 20,14).
            Por tudo isso, a escatologia é uma doutrina grandiosa e consoladora. Ela contempla o momento da realização do esperado, o que acontece com a Pessoa divina de Jesus, o Cristo. Apresenta a importância dos ensinamentos do Filho do Homem que é, “o grande Pastor das ovelhas”. Anuncia a sua morte redentora através da apresentação do Senhor, o “Alfa e o Ômega, aquele que esteve morto, mas agora está vivo e tem as chaves do Inferno e dos Hades”, e até descreve as coisas que hão de acontecer em breve” (Ap 1,19).
            “Bem- aventurados sois vós porque vedes. Muitos profetas e justos desejaram ver o que vós vedes e não viram ouvir o que vós ouvis e não ouviram” (Lc 10,23s).
            O estudo da escatologia é profundamente motivador. Podemos constatá-lo quando vemos o autor da Carta aos Hebreus exortar os fiéis aos quais dirige a sua reflexão, a frequentar as assembleias, onde poderão escutar os seus dirigentes que os levarão a “degustar a doutrina da justiça” (Hb 5,12). Isto os precaverá do desânimo e do perigo da deserção, porque cansados pelas contínuas provações. Não se cansa o fiel que se fortalece com o alimento de um espírito adulto do qual se nutre aquele que escuta a Palavra de Deus (Cl 3,16; 1Ts 2,13).
            O NT é escatológico em todos os aspectos. No AT a escatologia se apresenta como interpretação de um julgamento que Deus decide pronunciar quando, esgotadas todas as formas admoestativas, é anunciado um castigo definitivo que tem como último comentário as palavras do profeta: “Não tivesse Deus misericórdia com Israel, reduzido a uma Sodoma e Gomorra, nem sequer um Resto ficaria”. A escatologia do NT, embora apresente, por sua vez, este aspecto terrível e o exprima com a terminologia aterradora da linguagem apocalíptica dos profetas Isaias, Daniel e Joel, é prevalentemente um anúncio gaudioso que se apresenta com o anúncio do Anjo aos pastores, no dia do Natal e conclui-se com a resposta que Jesus dá à sua Igreja que o invoca com o Espírito dizendo “Vem Senhor Jesus!”: “Eis que venho em breve”.

            Sobretudo, o NT é escatológico porque, através da profecia do Apocalipse é dado ao fiel ver, em visão, “a dei guenestai em tachei” (Ap 4-5; 21). É a consolação que o Filho do Homem proporciona aos santos da igreja de Filadélfia ao abrir uma porta que permite a visão da corte celestial.




(10)   O Reino (I)                                                                                             
Os conceitos mais precisos que ilustram a natureza do Reino que Jesus veio restabelecer, encontram-se no início do nosso manual catequético que é a bíblia. A Descendência da mulher virá restabelecer a condição de realeza  sobre o mundo, uma vez que o homem, por causa da sua rebeldia, está  despojado e nu. Esta alegoria, que encontramos em Gn 3, por si, diz respeito a um plano de Deus que quer libertar o homem da escravidão do Mal em que se encontra, como o mostra a história da descendência de Caim que vai caminhando para a sua destruição pela prática de crimes sempre mais graves e sempre mais numerosos.  Quando, portanto, a Escritura nos fala de uma descendência que esmaga a cabeça da serpente, está querendo dizer que Deus, através do seu plano que contempla um redentor, membro da estirpe humana, quer libertar a humanidade decaída de uma condição de escravidão de cunho moral, para que volte a viver a sua realeza, não tanto enquanto volta a reinar sobre os peixes do mar, as aves do céu e os animais da terra, mas enquanto se desenvolve através da observância dos mandamentos do seu Criador para que tenha a vida; mais especificamente, para que possa nutrir-se “dos frutos da árvore da vida”. Disso, encontramos uma aplicação específica  em Ap 2,7. O conceito de ‘reino’ diz respeito, portanto, primeiramente, a uma realidade teológica. A Escritura fala nesse sentido, também, quando utiliza figuras tiradas da vida das civilizações onde se encontram os casos, comuns na antiguidade, de povos governados por reis. Esta segunda forma analógica começa a aparecer na Escritura quando Jacó abençoa Judá e lhe garante o comando entre as tribos de Israel, enquanto profetiza que este passará a ser daquele a quem pertence a realeza. A profecia está relacionada à figura da Descendência, cujo domínio diz respeito a toda a humanidade. O conceito teológico, contudo, acaba tendo uma interpretação equivocada entre os judeus, por causa da tradição de uma realeza que se instaurou em Israel a partir de Saul e, sobretudo, de Davi, a quem o profeta Natã garante a perpetuidade do comando ao longo da sua descendência. É tão forte esta conotação nacionalista que, no tempo de Jesus, o povo judeu estava totalmente equivocado, incluídos os Apóstolos. Contrariando esta expectativa, a pregação de Jesus, a partir do seu anúncio inicial, proclama o Reino de Deus segundo o sentido da profecia que se encontra em Gn 3. O Reino de Deus se dá pela conversão, isto é, pela adesão de fé à Descendência prometida, aquela do Emanuel, segundo o sinal anunciado por Isaias: “Eis que a jovem mãe dará à luz um filho que se chamará Emanuel”. O sentido espiritual do termo ‘reino’, na boca de Jesus, é claro, porque depende de uma conversão e do compromisso de prestar ouvido à Boa Nova anunciada por ele, que se alinha à tradição profética. Jesus, embora seja da casa de Davi, não avança nenhum direito ao trono de Judá. A sua preocupação é com a libertação do homem do domínio do Mal que ele sinaliza através dos exorcismos, declarando abertamente: “Se é pelo Espírito de Deus que eu expulso os demônios, então o Reino de Deus já chegou até vós” (Mt 12,28).
Jesus ilustra claramente a condição do reino que ele quer estabelecer a partir do dia em que, na sinagoga de Nazaré, comenta Is 61,1-2: Ele é o enviado de Deus, consagrado pelo Espírito. Na força do Espírito de Deus, anuncia a Boa nova. Ela é destinada aos homens de boa vontade, àqueles que compreendem  que há uma riqueza que somente Deus pode dar. A primeira bem-aventurança, que encontramos em Mt 5,3, ilustra este primeiro anúncio de Jesus: é bem-aventurado aquele que, reconhecendo-se despojado de tudo, está convicto de que Deus pode enriquecê-lo com os seus dons. A este, Jesus, profeticamente, garante o Reino dos Céus.
Os verdadeiros valores do reino que Jesus prega, não são os primeiros lugares, como vemos os apóstolos discutir entre si movidos por uma ridícula ambição; são a cura das feridas, a libertação das prisões, as dívidas perdoadas por Deus, metáforas que apontam para os benefícios espirituais que Jesus oferece.
Jesus se esforçou em explicar as grandezas do Reino dos Céus através de parábolas, porque, de fato, a sua realidade é complexa, partindo da figura do semeador que saiu para semear a sua semente.  A analogia dos diferentes terrenos e do fato que somente o terreno bom produz frutos é outro elemento da complexa doutrina sobre o Reino. As árduas condições no meio das quais o Reino terá que se desenvolver, a sua grandeza, eficácia, preciosidade e importância, são apresentadas, por Jesus, através da suas parábolas que encontramos reunidas em Mt 13 e Mc 4.
Esclarecido o aspecto teológico do termo ‘reino’, enquanto destaca  o aspecto de uma libertação da escravidão do mal, a fim do homem poder reinar, tornado capaz de vencer o mal na força do Espírito que Jesus merece com a sua Morte de Cruz, é bom explorar a figura que o descreve como um reino onde até os súditos são chamados a reinar. O seu aspecto triunfante aparece particularmente com o profeta Daniel, claro sinal de que devemos interpretar, neste caso, o termo ‘reino’ dentro do contexto da linguagem apocalíptica. A nossa expectativa deve, então, prescindir das figuras que esta linguagem apresenta. Na escatologia, através da sua linguagem apocalíptica, somos ensinados a contemplar, admirados, a condição gloriosa que se estabelecerá uma vez vencido o Mal, sobretudo quando consideramos que esta vitória, em primeiro lugar, custou a imolação de Cristo e, em segundo lugar, o derramamento de sangue de muitos que deram testemunho da Palavra e de Jesus Cristo.
O próprio Jesus quando fala do seu reino definitivamente estabelecido, se apresenta na figura do “Filho do Homem que vem sobre as nuvens, com todo poder e glória”; fala de um julgamento que separará as ovelhas dos cabritos, pronunciando uma sentença terrível de condenação: “Ide malditos para o fogo eterno”. A força da linguagem apocalíptica se revela na sua vívida imaginativa que, longe de cair no ridículo, porque é fruto de uma grande habilidade literária dos seus autores, consegue nos transmitir a sensação da gravidade do julgamento divino. Quanto adquire o servo bom e fiel que “entra no gáudio do seu Senhor”, enquanto, quanto perde aquele que não pôs em prática a vontade do “Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” que está no Céu!
A maneira despreparada segundo a qual o povo e os próprios Apóstolos interpretam a figura sugerida pelo termo ‘reino’, é utilizada, de forma perversa, pelos escribas e fariseus. Com isto, estes conseguem desconcertar o povo que chega a gritar “Crucifica-o”, pedindo a Pilatos a condenação de Jesus, e conseguem mexer com os sentimentos seja de Herodes como de Pilatos. Não sabem que, de fato, é pela sua conduta que Deus leva a termo o seu Plano, qual é aquele de recapitular tudo em Cristo, para, por ele, recriar o Israel de Deus que abraçará os ideais do seu rei para partir para a conquista dos irmãos, na condição de pescadores de homens e de pastores das ovelhas do rebanho de Jesus.
Lc 17,21-23,  abertura de um primeiro discurso escatológico de Jesus, é particularmente esclarecedor a respeito do conceito de ‘reino’ que devemos guardar. O texto reza assim: “21Naquele tempo, os fariseus perguntaram a Jesus sobre o momento em que chegaria o Reino de Deus. Ele respondeu: «O Reino de Deus não vem ostensivamente. Nem se poderá dizer: Está aqui, ou: Está ali, pois o Reino de Deus está no meio de vós. E ele disse aos discípulos: «Dias virão em que desejareis ver um só dia do Filho do Homem e não podereis ver. 22Dirão: Ele está aqui ou: Ele está ali. Não deveis ir, nem correr atrás. Pois como o relâmpago de repente brilha de um lado do céu até o outro, assim também será o Filho do Homem, no seu dia. 23Antes, porém, ele deverá sofrer muito e ser rejeitado por esta geração»
Os interlocutores de Jesus são os fariseus. Trata-se de homens piedosos que se interrogam acerca de uma doutrina que eles conhecem em todos os seus termos. O autor de Gn 12-50 já a lembra quando  descreve as benções de Jacó sobre os seus filhos. Judá tem como destino aquele de conhecer uma descendência que reinará e continuará a reinar até depois que tiver chegado Aquele a quem pertence o reinado porque será da sua tribo. A esse respeito, nós sabemos, a partir da revelação da condição divina de Jesus que, de fato, tudo isso se realiza em termos, embora não deixe de ser lembrado quando lemos a afirmação peremptória do anjo Gabriel a Maria, na Anunciação. A respeito das palavras que lemos na narrativa da Anunciação, acaba sobressaindo uma condição de realeza que nas figuras da casa de Davi e do seu trono, já temos uma perspectiva de um domínio que vai muito além de um simples reinado terreno. A própria perspectiva teológica do autor de Gn 12-50 se fundamenta sobre a perspectiva de uma salvação universal, qual apresentada pela narrativa de Gn 3. A Descendência da Mulher está relacionada a toda a humanidade. Enquanto, portanto o autor das “origens” do povo eleito fala de um bastão que comando que passará nas mãos daquele que é destinado a reger tudo, já tem na sua mente a perspectiva de uma realeza universal. O Plano de Deus dá o seu primeiro passo com a “origem” do Servo que terá a missão de levar a todos os povos o anúncio da redenção que o verdadeiro Deus realizará por aquele que ele suscitará: “Não tenhas medo de receber Maria como tua esposa porque o que dela nascer é obra do Espírito Santo” (Mt 1,20).
Os fariseus questionam Jesus sobre este reino, até porque ele são uma casta que surgiu no tempo do exílio e que prosperou espiritualmente depois da volta do exílio de Babilônia. É gente que crê na ressurreição dos mortos, doutrina amadurecida diante da experiência que Judá teve que enfrentar com as perseguições de Antíoco IV Epífanes. Infelizmente, eles são cegos guiando cegos. A sua condição espiritualmente desastrada é duramente denunciada por Jesus. Hipocrisia, vanglória avareza os tornam sepulcros caiados, cheios de podridão. No seu coração têm sentimentos homicidas contra aquele que não querem acolher (Mt 23). Não obstante tudo isso, Jesus responde aos seus interlocutores e nos dá as pistas para alcançar uma válida doutrina.
Lucas, nosso precioso mistagôgo, mais que corrigir os fariseus que dominavam perfeitamente a linguagem sapiencial com que era debatida e anunciada a doutrina da sua fé, põe Jesus a nos explicar o sentido da linguagem apocalíptica segundo a qual era debatida a escatologia. A forma dramática, os acontecimentos catastróficos da natureza que são citados, são simples recursos literários, porque, de fato, o Reino é o desfecho de um Desígnio sapientíssimo de Deus cujo Espírito perpassa todo e cada ser, vivificando-o e transformando-o. Se os fariseus pudessem entender, perceberiam que a Pessoa de Jesus é a sua forma visível: “Cristo com o Espírito, condição gratuita e universal de salvação”. Não entendem que chegou o “Dia do Senhor”, que os judeus esperavam como “Dia de Luz”. Não lhes é dado captar a Luz deste Dia porque “o seu olho é treva”, no seu coração não está o amor de Deus (Jo 5). Estão arriscados a não compreender que “Deus visitou o seu povo e fez surgir o Sol nascente... para iluminar os que jazem nas trevas e na sombra da morte”
O evangelista São João nos interpreta o ensinamento de Jesus que Lc 17,22-24 nos relata. Ele já veio. A sua Luz já resplandeceu, mas as trevas não a acolheram. A quem lhe dá a sua adesão de fé é dado usufruir das condições de realeza que Ela oferece porque, em virtude da ação do Espírito, lhe é dada a condição de se tornar “filho de Deus”. Esta verdade é explicitada em Cl 1,12: “Deus nos arrancou do poder das trevas e nos transportou no Reino de seu Filho no qual temos a redenção, a remissão dos pecados”. A quem tiver dado de comer aos famintos, tiver dado de beber aos sedentos, vestido os que estavam nus, visitado os prisioneiros, será dado de tomar posse com o Herdeiro do reino, porque se tornaram os escolhidos, destinados a reinar (cf. Mt 25,34).

(11) O Reino (II)

Mateus 13 intitula-se como “O discurso em parábolas”, cujo tema é o Reino que Jesus atua e explica, enquanto o anuncia. Podemos dizer que, com as sete parábolas de Mt 13, Jesus sintetiza o seu ensinamento, do qual encontramos comprovações ao longo da sua atividade messiânica. A diversificação dos quadros que ilustram o Reino especifica os seus diferentes aspectos. Na primeira parábola vemos apresentado aquele que semeia, a semente e o terreno. Na segunda parábola nos é apresentada a condição adversa em que o reino cresce no mundo. A terceira nos apresenta qual é a convicção de Jesus acerca da natureza do reino enquanto este se apresenta numa condição insignificante em relação ao mundo que, todavia, é a condição que Deus quer para confundir o mundo. A virtualidade da insignificância apresentada por um grão de mostarda é aquela que o fermento da quarta parábola mostra em relação à massa que ele faz crescer. Com a quinta parábola, Jesus define tudo aquilo que é a riqueza do Reino com o termo ‘tesouro’. É a partir deste termo que devemos começar a explicar o que é o reino sem, todavia, esquecer as facetas que a sexta parábola apresenta quando inverte os termos ‘tesouro’ e ‘aquele que o encontra’, quando diz que “o reino dos Céus assemelha-se a um ‘comerciante que encontra’ uma ‘pedra preciosa’”. Neste caso a acentuação é posta sobre a pessoa “que encontra” que se torna, dessa forma, o sujeito principal do reino que quer ser apresentado. Tendo presentes os termos da quinta e da sexta parábola, compreendemos porque a primeira parábola não começa a ser apresentada da mesma forma segundo a qual as outras todas são apresentadas. É porque nela estão reunidos três termos que potencialmente poderiam ser os termos não de uma, e sim, de três parábolas relativas ao reino dos céus: semeador, semente e campo.

 O semeador, que compreendemos ser Jesus, devido o recurso literário de Mateus que utiliza o mesmo verbo ‘sair’ formulado no mesmo tempo verbal ‘saiu’, seja quando descreve Jesus que ‘saiu’ de casa, como quando descreve o semeador que ‘saiu’ para semear, é por excelência, o reino, que Tommaso Frederici assim definia: “Cristo com o Espírito condição gratuita e universal de salvação”. De fato, em virtude da complementaridade que o termo utilizado na parábola e a presentação que Jesus faz de si, nos dão a entender porque Jesus se apresenta no exórdio da sua atividade messiânica dizendo: “Completou-se o tempo, o reino de Deus está perto, convertei-vos e crede no evangelho”. Compreendemos também o significado da sua declaração dirigida aos fariseus, que o insultavam dizendo que expulsava os demônios em nome de Belzebu: “Se eu expulso os demônios em virtude do Espírito de Deus, certamente chegou entre vós o reino de Deus” (Mt 12, 28). Entendemos, enfim, Lc 17,21: “O reino de Deus não vem a ponto de atrair a atenção, e ninguém dirá: Ei-lo aqui, ou: Ei-lo là. Porque o reino de Deus está no vosso meio!”. 

A semente não é a simples ‘palavra’, o anúncio da Boa Nova, mas é tudo aquilo que o anúncio traz consigo. Trata-se da “Graça e da Verdade” que nos foram comunicadas por Jesus (Jo 1,17). Este é o conteúdo do Tesouro que implica o plano de Deus que leva a criação à sua condição última de glorificação; que implica, também, o gesto, o mais nobre, que a Bondade possa realizar no intuito de resgatar a criatura da sua condição de degeneração, provocada pela sua persistente atitude rebelde. Aquele que “O Pai consagrou e enviou ao mundo” (Jo 10,36) é, de Deus, a manifestação misericordiosa. As condições que se manifestam na semente que brota, que se torna uma plantinha e que, enfim, produz o fruto da espiga, sugere a presença do Espírito de Deus que, no momento da criação, manifestou a sua condição de poder dar a vida a todas as coisas. 


Sentido peculiar de cada parábola em relação ao reino


O terreno, à luz daquilo que temos lembrado ao apresentar a sexta parábola de Mt 13, enquanto representa as pessoas às quais se destina a semente lançada pelo Semeador aponta para a responsabilidade que nasce exatamente da nossa adesão a Cristo. Desta São Paulo nos explica as implicações quando escreve pensando no seu batismo, segundo aquilo que afirma em Rm 6,4: “Fui crucificado com Cristo, não sou mais eu que vivo mas é Cristo que vive em mim, Esta vida na carne e o a vivo na fé do Filho de Deus que me amou e entregou sim por mim” (Gl 2,20). Disto brotam as responsabilidades para aquele que, marcado pelo Espírito com o caráter, foi configurado a Cristo sacerdote, profeta e rei. Nele está a responsabilidade de tornar a sua vida um sacrifício espiritual (Rm 12,1), de ser a luz do mundo (Mt 5,14), de vencer o mundo (1Jo 5,4). Por isto, deve assumir o compromisso de percorrer as etapas ascéticas ditadas por Pedro: “Por isto, empenhai-vos em tudo para juntar à sua fé a virtude, à virtude o conhecimento, ao conhecimento a temperança, à temperança a paciência, à paciência a piedade, à piedade o amor fraterno, ao amor fraterno a caridade” (2Pd 1,5-7).

A segunda parábola apresenta a situação antagônica entre o reino que Cristo inaugura com a sua vinda e o reino que o mundo quer perpetuar. O Apocalipse é livro que desenvolverá este tema apelando a Daniel do qual assumirá as figuras do Dragão e da besta à qual o dragão transmite o poder de dominar com a finalidade de perseguir o povo dos santos. Jesus, em Jo 16, comenta de forma extensiva, enquanto a profetiza, a dolorosa situação, refletindo aquilo que o evangelista Mateus relata: “Cuidado com os homens, porque vos entregarão aos seus tribunais e vos flagelarão nas sinagogas e sereis conduzidos diante de governadores e de reis por minha causa, para dar testemunho a eles e aos pagãos (Mt 10,17-18). O embate escatológico ao qual faz alusão a narrativa midrashica da visita dos magos que chegaram a Jerusalém para adorar recém-nascido rei dos Judeus (Mt 2,2) e que deixa perturbado o rei Herodes juntamente com a inteira Jerusalém (v. 3) a ponto de querer ambos, rei e cidade, matar o menino (v.20).

 Sabemos que não poderá ser evitado que alguns sejam destinados a morrer derramando o seu sangue para dar testemunho da Palavra e de Jesus Cristo. Todos, todavia, porque chamados a lutar contra o mundo, devemos “cingir os, flancos com a verdade, revestir a couraça da justiça e tendo como calçados aos pés o zelo de propalar o evangelho da paz, sempre segurando o escudo da fé com o qual neutralizar os dardos inflamados do maligno, pondo na cabeça o elmo da salvação e empunhando a espada do Espírito, que é a palavra de Deus” (Ef 6,14-17). 

A parábola do grão de mostarda quer ressaltar o dinamismo do reino, que escapa à compreensão dos sábios deste mundo, mas que se manifesta “poder de Deus e sabedoria de Deus” ( 1 Cor 1,23) no crucificado, que os judeus consideram escândalo e os pagãos insensatez.

A parábola do fermento que fermenta toda a massa quer ressaltar a eficácia própria do reino que é Cristo com o Espírito, a Palavra da Vida que se fez carne, a Luz do mundo, o Bom pastor que oferece a sua vida para as suas ovelhas, a Sabedoria que convida ao seu banquete.


Temos uma última parábola a respeito do reino dos céus que é aquela que o descreve no seu aspecto final: “O reino dos Céus assemelha-se, também, a uma grande rede lançada ao mar que recolhe toda categoria de peixes” ( Mt 13,47). Seu digno comentário é o quadro do julgamento final de Mt 13: Jesus que, na sua condição de Filho do Homem transformado de servo que “ ofereceu-se em sacrifício de expiação” (Is 53,10), se apresentará com todo poder e glória para julgar vivos e mortos”, e chamar aqueles que tiverem produzido frutos de vida eterna para resplandecer “ como o sol do reino do seu Pai” ( Mt 13,43). 

A última admoestação é dirigida aos apóstolos aos quais Jesus fez questão de explicar o sentido das parábolas. Eles terão a missão de dar continuidade ao seu ministério messiânico. Deles dependerá a aplicação da força que está na Palavra, termo insistentemente lembrado quando “o Semeador (Jesus) saiu  da sua casa para semear”. A revelação com todos os seus mistérios, primeiro dos quais é Cristo, é o tesouro que deve ser explorado, a “pérola de grande valor” (v. 43) que tem que ser admirada. É a “Palavra da vida” que é “Vida, Vida eterna” (1Jo 1,1-2).

Consequentemente, por sua vez, aqueles que escutam o anúncio da Boa Nova, realizado pelos ministros que o próprio Deus constituiu, e dão a sua adesão de fé, são chamados a se familiarizar com a Palavra, entendida no seu sentido mais amplo, que acabamos de considerar; para que, como afirma São Paulo, possa ser fonte de salvação para todos os que creem, do judeu em primeiro lugar e, depois, do grego (Rm 1,16). Disto resulta um ensinamento fundamental que Paulo sintetiza em poucas palavras: “A Palavra habite em vós abundantemente” (Cl 3,16). O dinamismo que provoca esta condição depende do esforço contínuo do mistagogo em aperfeiçoar a compreensão da Revelação, pela sua familiarização com as Escrituras, que terá a sua resposta no afinco com qual os membros da assembleia dominical terão que escutar a profecia e por em prática as coisas que foram escritas (Ap 1,3).