Manual de teologia bíblica
Índice
1) Premissas
2) A Bíblia, manual antológico da Tradição
3) A linguagem literária da Bíblia
4) A linguagem sapiencial
5) A linha teológica da Bíblia
6) Inspiração
7) Gêneros literários
8) O enredo histórico
9) Os dados historiográficos de Israel
10) Gn 12-50 As "origens" de Israel
11) Origem da nossa religião
12) Reflexão sapiencial da Igreja Apostólica
13) A linguagem bíblica da Catequese Apostólica
12) Reflexão sapiencial da Igreja Apostólica
13) A linguagem bíblica da Catequese Apostólica
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1) Premissas
Ia) O processo do conhecimento
Estaríamos perdendo o nosso tempo se estivéssemos praticando uma religião que não nos relacionasse com o Deus Único, sobretudo se ele não existisse.
Para chegarmos a ter esta
certeza, devemos assumir, como ponto de partida, o que nos ensina a filosofia.
Ela nos prova, em primeiro lugar, a realidade
objetiva da nossa existência. Descartes afirma: “Cogito, ergo sum”(= se penso,
existo). Em segundo lugar, Aristóteles e São Tomás de Aquino definem qual é o
processo de conhecimento: ele tem como princípio a nossa interação com o mundo exterior
(Piaget provou cientificamente esse processo). A figura imaginativa, que é
conseguida pela experiência sensorial, é processada pelo intelecto. Surgem as
ideias que Kant chama de categorias. Pela conexão que o homem é capaz de atuar
entre as categorias, é produzido o pensamento, que formula hipóteses. Quando as
hipóteses são testadas, o homem chega a um conhecimento objetivo da realidade.
Quanto mais o homem aprofunda o seu conhecimento objetivo, tanto mais domina
cientificamente, isto é, tanto mais se torna senhor da criação, e reina sobre
ela.
É por meio desse processo específico do homem que o Criador quer se revelar. São Paulo diz que o homem poderia ter chegado ao conhecimento de Deus a partir da contemplação da criação (Rm 1,19s; Sb 13,1-9). De fato, o Homem falhou e falha nesse processo, porque não aplica o processo do conhecimento de forma precisa. Acaba tirando conclusões antes mesmo de ter filtrado as impressões sensoriais e cria ídolos com a sua imaginação. As criaturas que ele contempla se tornam os seus deuses. Troca, como diz São Paulo, a Glória do Criador pela glória da criatura.
É por meio desse processo específico do homem que o Criador quer se revelar. São Paulo diz que o homem poderia ter chegado ao conhecimento de Deus a partir da contemplação da criação (Rm 1,19s; Sb 13,1-9). De fato, o Homem falhou e falha nesse processo, porque não aplica o processo do conhecimento de forma precisa. Acaba tirando conclusões antes mesmo de ter filtrado as impressões sensoriais e cria ídolos com a sua imaginação. As criaturas que ele contempla se tornam os seus deuses. Troca, como diz São Paulo, a Glória do Criador pela glória da criatura.
Para vir em socorro do homem, incapaz de
conhecer Deus pela criação, o Criador se revela pela própria História do
homem. Israel se torna o povo escolhido e, em favor dele, Deus opera
prodígios. Quando, afinal, o povo hebraico se vê constituído num reino, com o
seu templo, as suas leis, o seu culto, pela experiência que fez do seu elohim,
tem a firme convicção que o seu deus é o verdadeiro Deus. A esta convicção
subjetiva, Deus acrescenta a prova objetiva do profetismo. Pelos seus profetas
Deus anuncia o que vai acontecer e o faz acontecer. Depois do exílio de
Babilônia, o povo hebraico não tem mais dúvidas de que o seu Deus é o único existente.
É o “Sou”, o Criador, o Senhor da História, o Santo a quem todos devem servir,
excluído todo e qualquer outro ídolo (Is 40-41).
Os sábios de Israel refletem sobre os dados do profetismo e os aplicam à História do seu povo. Seus escritos sapienciais acabam descobrindo sempre mais os atributos de Deus e as causas do fracasso de Israel.
Com isso, Deus criou para nós um campo experimental com o qual podemos interagir e obter a prova objetiva da sua existência e a compreensão da doutrina do Desígnio de Deus sobre o homem. É pela reflexão dos sábios em Israel que é detectada a linha pedagógica de Deus, por ele atuada desde a escolha de Israel para ser o seu povo. Fundamentados na firmeza da pregação profética, os sábios desenvolvem a doutrina sobre o Criador e definem o caminho da realização do homem. A volta do exílio leva a conhecer que Deus é o todo poderoso que, por não querer se prevalecer do seu poder, permitiu que um Resto voltasse. Os sábios intuem, diante disso, qual é o Plano de Deus sobre o homem. A história de Israel torna-se paradigmática a esse respeito. Os sábios intuem, também, que Israel, porque conhecedor do Deus único e verdadeiro, é o povo de escolha. Gn 12-50 desenvolve este princípio doutrinário. Fala da “origem” do povo que Deus escolheu e da terra que ocupou. Liga a descendência deste povo ao Plano de Deus anunciando que um salvador surgirá entre os homens. Com o Êxodo descreve a maneira pela qual o povo de Deus, uma vez libertado, deve caminhar até a pátria prometida. Esta já era para o judeu “o lugar do repouso” no qual entram os que confiam em Deus e perseveram nas tribulações.
Os sábios de Israel refletem sobre os dados do profetismo e os aplicam à História do seu povo. Seus escritos sapienciais acabam descobrindo sempre mais os atributos de Deus e as causas do fracasso de Israel.
Com isso, Deus criou para nós um campo experimental com o qual podemos interagir e obter a prova objetiva da sua existência e a compreensão da doutrina do Desígnio de Deus sobre o homem. É pela reflexão dos sábios em Israel que é detectada a linha pedagógica de Deus, por ele atuada desde a escolha de Israel para ser o seu povo. Fundamentados na firmeza da pregação profética, os sábios desenvolvem a doutrina sobre o Criador e definem o caminho da realização do homem. A volta do exílio leva a conhecer que Deus é o todo poderoso que, por não querer se prevalecer do seu poder, permitiu que um Resto voltasse. Os sábios intuem, diante disso, qual é o Plano de Deus sobre o homem. A história de Israel torna-se paradigmática a esse respeito. Os sábios intuem, também, que Israel, porque conhecedor do Deus único e verdadeiro, é o povo de escolha. Gn 12-50 desenvolve este princípio doutrinário. Fala da “origem” do povo que Deus escolheu e da terra que ocupou. Liga a descendência deste povo ao Plano de Deus anunciando que um salvador surgirá entre os homens. Com o Êxodo descreve a maneira pela qual o povo de Deus, uma vez libertado, deve caminhar até a pátria prometida. Esta já era para o judeu “o lugar do repouso” no qual entram os que confiam em Deus e perseveram nas tribulações.
Esta maneira de
interpretar a lição do exílio nos permite descobrir que o ensinamento doutrinal
é comunicado por enredos históricos. A própria história dos reis, a partir de
1Sm é desta natureza.
Os livros
didático-sapienciais mostram ainda mais claramente este tipo de literatura.
Provérbios e Sabedoria
visam somente o aspecto moral e doutrinal.
A escatologia de Daniel, por sua vez, é um ensinamento moral e doutrinal.
A escatologia de Daniel, por sua vez, é um ensinamento moral e doutrinal.
Os Salmos exploram o
enredo histórico para cantar as maravilhas que o Senhor operou.
A literatura da Igreja
Apostólica desenvolve-se segundo a tradição da literatura vétero-testamentária.
Chega até a utilizá-la como linguagem para explicar que em Cristo se realizou a
profecia, por ela acrescentando a apresentação da condição divina de Jesus que
a sua ressurreição manifestou.
Quando os sábios aprofundam a
sua reflexão sobre o Deus da criação conseguem descrever nele uma vida que
transcende a nossa. Deus é a Bondade que, com Poder e Sabedoria, tudo criou. Em
todas as coisas está essa marca trinitária. Mas é particularmente no homem que
está a “imagem e semelhança” (Gn 1,27) com Deus.
Para apresentar uma análise do
homem, os sábios se fundamentam na História de Israel, “o filho” que “Deus
chamou do Egito” (Os 11,1), que, não obstante toda a predileção de Deus, logo
caiu na idolatria. O homem só pode ter feito o mesmo com Deus, desde o início.
Esquecido de todos os benefícios recebidos de Deus e da sua condição de
criatura, que poderia desenvolver-se apenas em harmonia com o Criador prestando
a ele o serviço da louvação e vivendo segundo os seus mandamentos, enveredou o
caminho da idolatria, equivocado sobre da maneira de se tornar igual a Deus (Gn
3,5), e conheceu a degeneração pela multiplicidade das culpas (Gn 3-4).
A escolha que Deus fez de
Israel faz com que o sábio deduza que, desde sempre, Deus, por livre desígnio
de sua Bondade, determinou suscitar uma Descendência pela qual a humanidade
seria resgatada do seu processo de morte. Ao longo dessa reflexão, os sábios
produzem textos de conteúdo eminentemente profético (cf. Gn 3,15). De fato o
seu sentido só pode ser entendido à luz da Redenção que Jesus Cristo, o Verbo
encarnado, realizou. Advertimos, a essa altura, que Deus está utilizando uma
terceira forma de se revelar e é aquela da reflexão sapiencial. Com isso
notamos que Deus é fiel, em se revelar, à maneira pela qual o homem é capaz de
conhecimento. No campo do mundo criado, o homem constrói o conhecimento pela
formulação de hipóteses; no campo do mundo sobrenatural, pela comparação de
verdades reveladas. Isto implica a inspiração. Compreendemos,
portanto, quanto Deus respeita e valoriza a capacidade de entendimento do
homem, e quanto o homem pode conhecer de Deus, caso aplique a sua reflexão
àquilo que Deus revela de si pelos profetas, pela criação, pela história e por
Jesus Cristo.
A Descendência prometida (Gn
3,15) permite ver que, embora Israel seja um povo privilegiado por Deus porque
é o povo da Revelação, da Lei, da Glória, dos Patriarcas, ele é a forma
histórica pela qual Deus quer perpetuá-la, até chegar o Redentor. Mais uma vez,
o povo hebraico se torna paradigmático para mostrar de que forma o Redentor
será o Cabeça do verdadeiro povo, da “raça escolhida e nação santa” (1Pd 2,9), que será a Igreja.
Com a vinda de Jesus se renova
o fenômeno profético, pelo qual Deus, de forma direta e extraordinária, se
revela aos homens. Jesus atua na linha dos profetas, e é até testemunhado pelo
último dos profetas, João Batista. Ambos, como profetas, são, juntamente com os
outros profetas, testemunhas da existência de Deus. No nome dele, eles têm
certeza que estão falando e anunciam um futuro que se realiza. Jesus, contudo,
transcende a própria condição profética porque revela ser o próprio El. Ele é
Iahweh, Deus que se revela pela Encarnação, o “Sou” que veio a este mundo para
visitar o seu povo e tirar “os que jazem nas sombras da morte para guiá-los no
caminho da Paz” (Lc 1,79), “com braço forte e grandes julgamentos” (Ex 6,3-6).
Em Jesus Cristo, a Revelação,
que Deus iniciou pela História de Israel, acentuou pelos profetas, e que a
reflexão sapiencial aprofundou pela reflexão, se torna plena. Mais uma vez, isso
se atua no campo experimental adequado ao homem para que o homem, aplicando o
seu conhecimento, possa chegar, à semelhança dos sábios, à verdade e, assim,
servir o verdadeiro Deus. O primeiro esforço sapiencial é atuado pelos
Apóstolos, expressamente enviados por Jesus para anunciar o Evangelho. Os Atos
dos Apóstolos ressaltam, contudo, que o Espírito Santo assiste de forma
peculiar a Pedro e a João com os dons da sabedoria e revelação (At 4,8). Vemos
também que na Igreja surgem evangelistas que suprem a deficiência literária dos
Apóstolos. São eles que redigem a pregação apostólica. Há verdadeiros sábios
que aprofundam de tal forma os conteúdos da pregação apostólica que escrevem textos
inspirados, à semelhança dos sábios do AT: Efésios, Hebreus, Apocalipse, 1Pd,
2Pd. O Apocalipse é um exemplo singular de reflexão sapiencial. Espelha-se em
Daniel. Ao mesmo tempo utiliza com maestria toda a Sagrada Escritura chegando
aos píncaros da reflexão sobre a revelação, sob iluminação do Espírito Santo, a
ponto de nos falar da sorte dos santos. O autor atribui tudo a Jesus, Senhor da
Igreja que fala pelo seu Espírito.
Com Jesus temos a
recapitulação de toda a Revelação que Deus foi atuando ao longo da história do
homem, particularmente pela escolha do povo hebraico. Contudo, com Jesus, Deus
estende o conhecimento do homem à própria natureza de Deus. Ele é Trinitário.
Dessa forma é possível uma releitura da Revelação que permite um conhecimento único
de Deus. Mas, os conteúdos novos que Jesus Cristo traz, por si, transcendem
todas as figuras que preparavam a sua vinda, de forma que ao fiel é dado
conhecer o Criador de uma maneira sem precedentes. Ele é a criatura daquele que
é a Bondade infinita do Ser e que sempre age no Amor. A Bondade possui uma vida
transcendente, na qual as prerrogativas pelas
quais a criatura humana se torna imagem do Criador, isto é, ser, saber e poder,
são hipóstases. Delas, a Sabedoria, a Palavra, se fez carne para que o homem
chegue a participar da natureza de Deus. Cristo Jesus tem em si a plenitude da
Divindade da qual torna participante, antes de tudo, a humanidade assumida no
seio de Maria, da forma mais plena, num processo de santificação, no qual ele
atuou pela obediência até a Morte de Cruz. Por essa humanidade, que a Ssma. Trindade glorifica pela Ressurreição
e Ascensão, o Espírito de Deus é comunicado à Igreja em plenitude, chamada para
ser o povo de Deus herdeiro da vida eterna pela pregação apostólica e pela
prática dos sacramentos, enquanto não cessa de celebrar os grandes feitos do
seu Criador, particularmente no dia do Senhor.
IIa) O fundamento último da nossa certeza
A partir do momento em que a
Igreja nos apresenta o Cânon, estamos de posse de uma compilação teológica
inspirada, apresentada de autoridade. A sua interpretação tem como fundamento o
que a Igreja Apostólica nos ensina e que nós podemos conhecer através dos
escritos que nos deixou. É evidente que a mesma Igreja que, de autoridade, nos
apresenta os livros da Bíblia como canônicos é aquela que sempre deve orientar
a interpretação dos textos, em virtude da autoridade que lhe é própria, até
porque é a Tradição que guarda o sentido da fé, enquanto a Escritura é a sua
antologia.
Na visão da Igreja Apostólica há uma clara
linha teológica que percorre a Bíblia toda e que pode ser resumida da seguinte
forma: o homem, em lugar de se relacionar com o seu Criador na condição de
quem, como criatura deveria reconhecer a sua condição de dependência,
esquecido, como o filho pródigo, de todos os benefícios com que Deus o
favorece, envereda o caminho da sua autodeterminação, o que provoca nele um
processo de degradação moral, a ponto de merecer a sua destruição. Diante
disso, Deus que, por definição, é a Bondade, fiel a si mesmo, vem em socorro da
sua criatura e decide resgatá-la. Na verdade, em virtude da sua onipotência e
infinita sabedoria, recria-a porque determina que ela se realize não mais
segundo a simples relação de criatura com o seu Criador, mas como filha adotiva.
Este processo começa a se atuar quando, ao longo da história de humanidade,
Deus escolhe Israel para que seja o seu povo e leve o conhecimento do
verdadeiro Deus a todos os povos. No tempo preestabelecido, isto se torna
definitivamente possível em virtude de Jesus que na condição de Emanuel (Is
7,14), realiza em si a profecia da Descendência (Gn 3,15). O Israel novo que
ele funda, tendo reconhecido nele a condição divina de Filho, anuncia a todos
os povos que nele se realizou o que os profetas perscrutaram (1Pd 1,10). O
anúncio profético está resumido na pregação de João Batista, o Precursor: Jesus
é aquele que vem depois dele, mas que existia antes dele, o Eterno; ele vem com
o Espírito Santo de forma que os homens são regenerados em virtude da sua Morte
redentora, pela ação vivificadora do Espírito. Pelo Memorial da Morte redentora
que Jesus instituiu, a cada comunidade cristã é dado se erguer em templo de
Deus no Espírito (Ef 2,22), segundo o processo ascético definido em 2Pd 1,3-11.
Os fiéis aspiram possuir a herança dos santos.
IIIa) As diferentes maneiras que formulam o processo da
revelação divina
Quando entramos no campo da
religião instintivamente achamos que Deus é o objeto da nossa reflexão.
Deveríamos, pelo contrário, advertir, em primeiro lugar, que nós somos as
criaturas das quais o Deus criador cuida e que podemos constatar quão poderosa
é a sua ação sobre nós na medida em que sintonizamos com ele através da nossa
procura, a partir da descoberta da sua ação pedagógica para que, pela nossa
interação, seja pela história das civilizações, como, também, pelo fenômeno do
profetismo, cheguemos a compreender que ele existe e iniciemos a compreendê-lo
através da contemplação das suas obras.
A presença de Deus na
história do homem foi notada pela reflexão sapiencial, em Israel. Foram os
profetas Oseias, Amós, Miqueias e Isaias, Jeremias e Ezequiel que a
impulsionaram, o que permitiu dar início à compilação de um manual teológico, a
Bíblia, que se abre com uma aula catequética sobre o Criador. No ambiente
judaico este foi sempre pensado a partir do Deus que tinha dado origem a
Israel. Ele, contudo, segundo a visão teológica da reflexão sapiencial, logo
foi visto como o Deus de todos os homens, aos quais devia chegar a salvação
através de Israel, o povo de escolha.
A ligação entre Israel e
todos os outros povos é ilustrada através da genealogia que remonta de Abraão
até o adão da criação.
A teologia bíblica apresenta
esta doutrina dentro de uma moldura cronológica. O comportamento do homem, de
fato, é ilustrado através da história de Israel, o povo que, não obstante todos
os benefícios recebidos, logo se esqueceu do seu Deus e enveredou o caminho da
rebeldia, o que provocou a sua
degeneração e o consequente castigo.
Por causa disso, devemos
considerar Gn 1-11 o prefácio de toda a Bíblia, onde são apresentados os temas
da nossa teologia: 1º) Deus criador; 2º) O homem criatura de Deus que
encontraria a sua realização, qual é aquela de reinar, no reconhecimento da sua
dependência e preservaria a sua condição através do louvor que prestaria ao
criador através da contemplação das suas obras; 3º) A degeneração do homem
causada pela sua insensatez, exatamente porque se afastou do seu Criador; 4º) a
promessa de um Redentor que Deus, fiel a si mesmo, suscita na sua misericórdia,
para que resplandeça em toda a sua Glória e o homem o encontre, na contemplação
das suas obras que a Descendência leva a termo, o motivo da sua obediência e da
sua louvação ao seu Deus (infelizmente, advertimos que os homens, nem diante do
Maravilhoso que aconteceu com o Emanuel tomaram consciência para seguir o
caminho da vida); 5º) O castigo do dilúvio; 6º) O princípio de uma nova
humanidade, prefigurada em Noé com quem Deus estabelece uma Aliança
definitiva; 7º) A condição em que se encontram os povos quando Deus inicia a
sua ação redentora com a vocação de Abraão.
A história da origem de
Israel é traçada em Gn 12-50 através das vicissitudes de figuras de três
patriarcas: Abraão, Isaac e Jacó, unidos pelo vínculo da consanguinidade.
O Poder de Deus, a sua
Sabedoria e a sua Bondade são apresentados em toda a sua glória através das
narrativas da libertação de Israel da escravidão do Egito. Estamos diante de
uma compilação de narrativas catequéticas, sugeridas pela experiência da
escravidão de Babilônia. Ela aconteceu a um povo que, depois de ter recebido de
Deus uma terra onde corre leite e mel, foi sempre mais se afastando do seu
Deus, a ponto dos seus reis conhecerem a corrupção, os juízes a falsidade, os
ricos a prepotência, os sacerdotes o descaso, deixando que o povo todo caísse
na idolatria.
A narrativa da conquista da
terra prometida, a partir da conquista de Jericó é uma epopeia que quer exaltar
a benignidade do Deus de Israel. Vemos que ela é colocada depois do Pentateuco,
enquanto interpretada segundo a linha teológica da Bíblia. A humanidade
decaída, em Êxodo, é representada por Israel na escravidão. Dela o salva o Deus
misericordioso. As características deste povo são a Páscoa que será o memorial
perpétuo, a travessia do mar que o faz passar definitivamente da escravidão
para uma condição de povo liberto; o alimento que Deus providencia; a Lei que
Moisés traz do alto da montanha, a Aliança pela aspersão do sangue; a tenda da
Presença.
A linha teológica que a
reflexão sapiencial foi construindo, tendo como paradigma a história de Israel,
foi perfeitamente entendida pela Igreja apostólica. Dessa forma, temos que
entender que são os escritos do novo testamento, enquanto eles estão em
perfeita sintonia com o AT, a chave de leitura de toda a Bíblia, segundo esta
precisa característica: Jesus realizou em si a Profecia.
Eis o inimaginável de quanto
Deus transcende a nossa capacidade de entendimento e como devemos confiar nele,
enquanto nos colocamos à sua disposição como instrumentos de realização do seu
Desígnio. Logo, com isso, resulta quão insignificante é a nossa cooperação que,
contudo, ao mesmo tempo, é condição de uma ação gigantesca, em nós, do seu
Poder de “graça e verdade” (Jo 1,17).
A Carta aos Hebreus
apresenta a clássica maneira do judeu interpretar as verdades da Revelação. O
seu autor está a par do sentido catequético das narrativas do Êxodo. Sabe que
elas são composições catequéticas sugeridas pela experiência da destruição do
Reino de Samaria e do exílio de Babilônia. Quando as utiliza quer simplesmente
explorar o ensinamento doutrinal nelas contido.
Quando os evangelistas
narram a multiplicação dos pães, estão se referindo ao maná. O alimento que
Deus providenciou ao longo de toda a caminhada no deserto até chegar à pátria
prometida era a figura mais conveniente para apresentar o alimento que Aquele
que desce do céu e dá a vida ao mundo queria deixar aos seus discípulos para
administrá-lo em favor de todos. Não há figura melhor para ilustrar o Memorial
que Jesus quis deixar à sua igreja e que apresenta dizendo: “Não foi Moisés que
vos deu o pão descido do Céu. O Filho do Homem é aquele que vos dá o verdadeiro
pão que desce do céu e dá a vida ao mundo”. Quando advertimos que esta
formulação foi, de fato, o resultado da reflexão sapiencial da comunidade
fundada por João, por ela entendemos claramente o que Jesus ensinou acerca da
Eucaristia e como devemos compreender que realmente o pão que Jesus quis nos
dar é “a sua Carne para a vida do mundo” (Jo 6,51). Esta realidade do Mistério
que Cristo instituiu é a doutrina que somos chamados a professar. É sobre ela
que João insiste na peroração final de Jo 6:
“Se não comerdes a minha
carne e não beberdes o meu sangue não tereis a vida em vós, porque a minha
carne é verdadeira comida e o meu sangue é verdadeira bebida. Quem come a minha
carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e eu o ressuscitarei no último
dia... Este é o pão que desceu do céu. Ele não é como o que os pais comeram e
pereceram; quem come este pão viverá eternamente” (6,53-54.58)
É possível estabelecer a engrenagem
que desenvolve a teologia bíblica na Escritura nos seguintes termos: a
experiência histórica de uma volta da escravidão em virtude de Ciro,
considerado o servo ungido por Deus (Is 45,1), levou Israel a reconsiderar a sua
conduta em relação ao Deus da sua história; um Deus que já tinha dado sinais da
sua presença através de tudo o que acontecera pelo pronunciamento de profetas
por ele enviados. Eles tinham-se esquecido que lhes tinha dado uma terra e foram
atrás de outros deuses. A falta do seu culto tinha trazido a desintegração da
nação, a partir da corrupção dos costumes. Eles teriam perecido por causa dos
seus crimes, não os tivesse o seu Deus resgatado da escravidão. As águas do
dilúvio os teriam submergido, como aconteceu com as dez tribos da Samaria. O
Resto que voltou reconheceu que o seu Deus era o Deus da vida, bondoso e
compassivo que não se prevalece da sua força, mas que trata com carinho e
proteção o seu povo. Esta convicção provocou a volta ao culto sabático,
alimentado pela louvação celebrada pela contemplação das obras do Senhor, a
partir da criação. A bondade e a fidelidade de Deus agora tinham como
fundamento a libertação da escravidão em Babilônia. O Livro do Êxodo é a sua
celebração perpétua.
A reflexão sapiencial pós-exílica
levou a ver que as vicissitudes de Israel eram paradigmáticas para descrever as
vicissitudes do homem que abandou o Criador para se entregar à idolatria, o que
deflagrou a desordem moral e as consequências da prática da maldade, na
perversão e na injustiça. A reação do Deus Criador, de fato, pode ser descrita
com a reação que ele teve com o povo do qual mostrou ter predileção. Fiel a si mesmo ele quer
realizar o seu plano de glorificação do homem através de um enviado, capaz de
resgatar o homem da escravidão do mal. Isto ocorrerá através de um filho de homem
que nascerá no tempo estabelecido.
A Igreja Apostólica acompanhou a
reflexão sapiencial e até utilizou o seu ensinamento para falar de Jesus Cristo
como Messias, enquanto anunciava a novidade do mistério da sua Pessoa divina.
Por causa disso devemos ter o
cuidado de não transformar em informação histórica aquilo que foi utilizado,
dentro de uma alegoria, para apresentar a verdade teológica da condição de
culpa em que todos os homens caem; de não transformar em história o que os
autores bíblicos criaram como enredo histórico, no intuito de nos transmitir
verdades doutrinais; de não atribuir erros de interpretação a Jesus e à Igreja
apostólica quando citam as Escrituras e de não perder tempo com argumentações
descabidas porque, no nosso despreparo, lemos textos escritos milênios atrás
achando que seus autores estavam se expressando da mesma forma que nós
adotamos.
Outra tipificação
No Tempo Litúrgico da Páscoa, lemos
as narrativas da Ressurreição do Senhor. Literariamente, elas são o ápice de
uma literatura da tradição judaica que utilizou a linguagem figurativa,
catequeticamente considerada a mais conveniente, para transmitir verdades
doutrinais, anunciando-a com precisão e interpretando-as com fidelidade. Quando
as interpretamos prescindindo da sua característica literária, de fato,
desvirtuamos o seu sentido pleno. Lemos como crônicas textos de cunho
eminentemente teológicos. Estamos preocupados em querer saber se anjos falaram
a Maria de Cléofas e a Maria Madalena, se Jesus lhes apareceu, como, também aos
discípulos de Emaús, a Pedro, aos Apóstolos no cenáculo e, se, oito dias
depois, lá voltou para repreender Tomé. Por que não pensar que estamos diante de
um Mistério que se realizou e que deve encontrar a sua ilustração nas
Escrituras, exatamente como lembra 1Cor 15,3-7: “Morreu segundo as Escrituras e
ressuscitou segundo as Escrituras”? Da mesma forma que para a Igreja Apostólica
interessa ver na morte de Jesus sobretudo a realização de uma redenção e, por
causa disso, reconhecer que o “Santo não podia conhecer a corrupção” (At ),
nós, também, devemos reconhecer que, por ter Jesus realizado a redenção através
de uma imolação que o levou à perfeição (Hb 2,10), ele conheceu a glorificação
a partir do momento em que, na Cruz, exclamou: “Tudo está consumado! Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”. A
narrativa que ouvimos pelo evangelho proclamado no dia da Páscoa (Jo 20,1-9)
aponta para esta direção. Quando o “discípulo amado” entra no túmulo vê e
acredita. E o evangelista comenta: “os outros não chegaram a crer porque não
tinham ainda entendido as Escrituras que dizem que Ele devia ressuscitar dos mortos”.
As narrativas dos evangelistas
perpetuam a forma catequética utilizada pelos Apóstolos quando ensinavam nas
suas comunidades e apresentavam o Mistério que é Cristo, em quem se realizavam
as promessas, a partir de uma Descendência da Mulher que esmagaria a cabeça da
serpente. Nesta vitória está a vitória de Jesus sobre a morte, a condição da
sua glorificação, a manifestação do poder extremo pelo qual Deus o “ressuscitou
dos mortos para constituí-lo Cabeça da Igreja” (Ef 1,20.22-23), em quem temos a
condição de participarmos da herança dos santos. A vitória do Cristo de Deus
sobre a Morte teve, para o autor de Gn 3,15, a sua inspiração no cântico do
Servo de Iahweh, cujo tema está em Is 53,10: “Se oferece a sua alma em
sacrifício, multiplicará os seus dias, conhecerá uma descendência e fará
deslanchar o Plano de Deus”. Disso resulta que é a compreensão do sentido
redentor da morte que leva à aceitação da glorificação de Jesus, apresentada
por uma ressurreição. É a ordem estabelecida por Paulo em 1Cor 15, 3-7.
Atentos ao gênero literário dos
textos que nos falam da ressurreição, não podemos, todavia, ignorar os
elementos do núcleo histórico que está na base das narrativas catequéticas da
ressurreição e que se apresentam de forma clara. Há um sepulcro que é visitado.
Há uma constatação de um túmulo vazio (Jo 20,1-8). Há uma informação
extremamente indicativa, de cunho catequético, que aponta para o caminho da
elucidação do mistério para o qual o sinal aponta: “Não tinham entendido as
Escrituras, segundo as quais Jesus devia
ressuscitar dos mortos". Os discípulos de Jesus chegam a entender, então, o que
o seu Mestre e Guia tinha profetizado, algo insistentemente lembrado por Jesus
quando catequizava os Apóstolos após o reconhecimento por parte dos mesmos de
ser ele o Messias, o Filho de Deus. Pela ressurreição realiza-se em Jesus a
condição resumida no título divino-messiânico de “Filho do Homem”. Não é este o
título que João tornou tema do seu Evangelho?
As narrativas catequéticas das
aparições no Cenáculo do Evangelho de João, fundamentadas
sobre o sinal do sepulcro vazio, ponto de partida a ser
interpretado através da compreensão das Escrituras, são textos que devem ser
associados à narrativa da pesca milagrosa de Jo 21, à narrativa da aparição de
Jesus aos discípulos de Emaús (Lc 24,35) e aos quadros de cunho midrashico, inspirados
pela condição de Senhor que Jesus alcançou pela sua ressurreição, da Anunciação
e da Visitação (Lc 1).
A luz que nos traz a ilustração do
Mistério que é Cristo, manifestação da Glória e esperança da Glória (Cl 1,27),
nos ajuda a entender mais uma característica das narrativas catequéticas da
ressurreição do Senhor: a habilidade literária com que os evangelistas
construíram o enredo histórico das suas narrativas, a ponto de nós as
interpretarmos como crônicas de um fato. Quando, todavia, ao ler as suas
catequeses, temos presente os seus específicos elementos que as constituem,
devemos dizer que de fato, a forma midrashica que eles adotaram, é a mais
catequética de todas porque, através de uma linguagem figurativa apresentam
integralmente os pontos doutrinais relativos ao Mistério. A respeito disso, Lc
24,36-49 é particularmente esclarecedor,
adiantando até a apresentação da narrativa midrashica, qual a do
Pentecostes (v.49), capaz de ressaltar enormemente a presença do Espírito Santo
na vida da Igreja.
2) A
Bíblia, manual antológico da Tradição
A Bíblia é constituída de textos
escritos ocasionalmente, ajuntados ao longo dos tempos segundo uma linha
teológica, até chegar a compor o atual manual catequético. Dessa forma, ela
chega a ser uma antologia onde encontramos a mais vasta literatura relativa à
tradição de fé da nossa religião. Gn 1-11 é o seu prefácio em que é
apresentado, em primeiro lugar, o Criador. Em segundo lugar, é apresentado o
homem na condição de criatura que, a diferença de todas as outras, é chamado a
viver uma relação pessoal com Deus. Infelizmente, o homem não vive à altura da
sua vocação. Rebela-se contra o seu criador e envereda o caminho da
autodestruição, tornando-se, por causa disso, merecedor de morte. Pelo fato que
o Criador, por natureza, é Bondade, não abandona a sua criatura ao seu destino
de morte. No seu amor, vem em seu socorro, para levar a termo, pela realização
de um plano que revela a sua misericórdia, a perfeição da qual o homem é capaz.
É por isso que, a final, ele mesmo assume a natureza humana, para levá-la à
perfeição e se tronar, para todos aqueles que lhe dão a sua adesão de fé,
princípio de justificação.
Este processo é fruto de uma descoberta
gradativa da reflexão sapiencial, ao longo da história de Israel, impulsionada
pela revelação profética. Ela ocorre enquanto Israel afunda sempre mais no
pecado. Nesse contexto, Deus prepara a realização da salvação do homem que
acontece com Jesus Cristo. Nele se realiza a profecia. Ele é a Descendência
prometida (Gn 3,15). A Igreja Apostólica no-lo anuncia, enquanto proclama a sua
condição divina e todos os benefícios que o Plano de Deus, realizado em Jesus,
nos trouxe.
A Tradição encontra nos textos da Bíblia
o mais valioso suporte, quanto à doutrina da nossa fé. Trata-se de um manual
catequético, compilado segundo uma linha teológica, contida dentro de uma
moldura cronológica, fruto da reflexão sapiencial dos seus autores. Vemos que,
dessa forma, atua-se uma revelação por parte do Deus que quis se tornar
conhecido a Israel seja segundo uma tradição oral como através de escritos que
a refletem em si. Pelo seu trabalho de reflexão, os sábios acabam, também, nos
oferecendo as condições de falar de uma revelação que Deus faz de si segundo uma
linha pedagógica, que somente ele foi capaz elaborar, na condição de Criador.
Podemos dizer que são fontes de revelação
divina: 1º) a tradição religiosa que tem como origem a ação pedagógica de Deus;
2º) a reflexão teológica da Bíblia que sistematiza, dentro de uma moldura
cronológica, a exposição do Plano de Deus sobre o homem; 3º) o fenômeno
profético, do qual jorram verdades divinas fundamentadas na autoridade daquele
que envia os seus profetas; 4º) a catequese apostólica que explicita o sentido
cristológico da doutrina da tradição judaica, da Profecia e da reflexão
sapiencial que nos foi preservada pelos textos da Bíblia, enquanto nos anuncia
Jesus de condição divina.
A essa altura torna-se oportuna uma
precisação...
O livro do Gênesis se abre com uma
parênese catequético-sinagogal, que o autor do prefácio de toda a Bíblia, Gn
1-11, utiliza para começar a falar de Deus, apresentando-o como Criador. Gn 2 é
uma segunda aula catequética sobre o homem que é ensinado a viver a sua
dependência do Criador pela observância dos seus mandamentos, condição da sua
realização. Gn 3 é uma reflexão sapiencial que quer falar da condição de pecado
em que se encontra o homem e da salvação que Deus entende realizar, a partir de
uma alegoria que, inicialmente, pretendia descrever a culpa de Israel, rebelde
ao seu Deus.
As primeiras duas parêneses catequéticas
e a alegoria de Gn 3 nos revelam que a reflexão sapiencial da Escritura visa
apresentar a salvação do homem, tendo como paradigma a história de Israel.
Gn 4 é uma reflexão sapiencial que
apresenta a história da humanidade através de uma genealogia que envereda o seu
caminho de aparente realização, mas que, de fato, caminha para a morte, por
causa da sua degradação moral.
Gn 5 opõe à descendência de Caim a
descendência que Deus suscita e que terá a sua continuidade em Noé. Amigo de
Deus, este escapa da morte para dar continuidade a uma humanidade que Deus, na
sua bondade, quer levar à sua plena realização porque o seu amor é fiel.
Gn 6-8 é uma longa narrativa que tem a
sua inspiração na experiência dolorosa do exílio em Babilônia. Ela ensina quão
dolorosa é a experiência de um castigo que Deus tem que infligir para corrigir
o homem da sua condição de maldade.
Gn 9-10 é uma forma literária muito
hábil para sintetizar a história da humanidade em vista de uma ligação que o
autor quer estabelecer do povo de Israel com a humanidade toda. Ela expressa
uma teologia qual descoberta pela reflexão sapiencial, a partir da sua reflexão
sobe a história do seu povo.
Gn 11 é uma maneira para justificar a
condição da humanidade dividida em muitos povos.
Gn 12-50 é uma síntese, aglutinada entorno
de três personagens, que quer falar da vocação de Israel por parte de Deus,
para que seja o seu povo. De fato, quer ser uma interpretação teológica daquilo
que aconteceu com as migrações de tribos que acabaram ocupando, ao longo de
séculos, a terra da Palestina, aonde chegaram a se constituir numa confederação
e conheceram até a monarquia com Saul, Davi e Salomão.
Através da análise do primeiro livro da
Escritura nos é dado constatar como os livros da Bíblia têm, por si, uma sua
origem literária específica. Em seguida, adquirem uma sua específica finalidade
na compilação teológica, que é a Bíblia, e que, enquanto relacionados a uma
revelação, têm valor doutrinário e cristológico.
3) A linguagem literária da Bíblia
A linguagem da Bíblia é linguagem figurativa, capaz,
contudo, de transmitir verdades teológicas de forma plena, enquanto possibilita
a apresentação dos diversos aspectos das mesmas. Em
Gn 1, o Deus criador se apresenta com os seus fundamentais atributos que as obras da criação ressaltam. Em
Gn 1, o Deus criador se apresenta com os seus fundamentais atributos que as obras da criação ressaltam. Em
Gn 2 as obrigações do adão são apresentadas através da
forma lendária com que é narrada a sua origem e a instituição do matrimônio. Em
Gn 3 é definida a culpa que leva o homem à condição de
miséria moral em que se encontra. Em
Gn 4 é sintetizado o processo degenerativo do homem. Em
Gn 5 é celebrada a Descendência que revela a fidelidade
de Deus a si mesmo. Por ela,
Gn 6, surgirá um novo cabeça da humanidade, que, por si,
se torna merecedora de destruição.
Uma vez
que a exposição teológica, relativa ao Plano que Deus quer realizar em vista da
salvação da humanidade, é descrita dentro de uma moldura histórica, a mesma
linguagem figurativa é a ela aplicada. Os conceitos teológicos são carregados
por um enredo histórico, habilmente formulado. Ele não é matéria de revelação.
É simplesmente condição escolhida para transmitir uma revelação, um artifício
literário que cada autor utiliza segundo a sua habilidade.
Gn 12-50 apresenta, por meio de narrativas relativas a
três personagens idealizados, Abraão, Isaac e Jacó, a “origem de Israel”,
chamado a ocupar a terra que Deus lhe prometeu. Em Êxodo, Levítico, Números e
Deuteronômio, o enredo histórico é construído, enquanto visa retratar a
condição em que Israel caiu, da qual, contudo, o Deus misericordioso, já
descrito no quadro ideal de Gn 1-11, entende libertá-lo. Sabemos, de fato, que
a compilação constitui-se de narrativas catequéticas sugeridas, em Êxodo e
Números, pela experiência do exílio de Babilônia.
Josué, por si, quer cantar a intervenção providencial de
Deus que, ao longo da história dos hebreus, permitiu a ocupação da terra da
Palestina. Está inserido depois do Deuteronômio como etapa de uma história que
vai caminhando para o tempo dos reis, através do livro dos Juízes.
Juízes volta a
repetir a condição em que o homem sempre se encontra diante do seu Criador. O
pecado da idolatria é a constante que provoca os castigos de Deus que, todavia,
não extermina o seu povo porque tem sempre diante dos seus olhos a
Descendência. Ela será o Novo Adão, prefigurado em Noé, que dará origem a uma
nova humanidade.
1e2Sm voltam a apresentar esta constante, como, também
1e2Rs
Não
interessa a linha histórica. O fundamental é ter presente a linha teológica que
reflete em si o Desígnio de Deus que quer a salvação de todos os homens.
Esta
maneira de fazer teologia tem sua continuação na reflexão sapiencial da Igreja
Apostólica que a aplica a Jesus.
Mt 1 fala da “origem” de Jesus, o Cristo. Ele o chama de
filho de Davi, filho de Abraão. Parece, então, ligar Abraão a Set, dando a
impressão que a Descendência vai ter sua origem dentro de Israel. Mas não é
assim, porque quando chega a José gerado por Jacó, nos diz, com todas as letras,
que ele é concebido no seio de Maria por obra do Espírito Santo (1,18). A
história de Israel ilustrada pela descendência de Abraão, embora esteja ligada
a um Salvador prometido, de fato é o sinal que Deus concede, na sua
misericórdia, a um povo que quer salvar. Dependesse da sua incredulidade, só
mereceria perecer. Tudo isso é provado pela descontinuidade da própria
descendência causada por membros seus pecadores.
Com
Jesus, volta a se repetir o quadro inicial de Gn 3. O homem continua na sua
rebeldia, por si causa da sua destruição. Deus, todavia, fiel a si mesmo
realiza a sua salvação para que o seu amor seja revelado na sua
incondicionalidade. Num contexto hostil qual revelado pela figura de Herodes
que quer matar o Menino recém-nascido Rei dos Judeus e pela “raça de víboras”
dos escribas e fariseus, que, primeiramente, se recusam obedecer à pregação de
João Batista e, depois, decidem levar à morte Jesus, ele realiza o seu Plano.
Jesus reflete, então, em si,
na condição de Descendência à qual foram feitas as promessas, a figura de
Moisés que dá a Lei ao seu povo, que opera prodígios, até caminhar sobre as
águas, dar o alimento para quem o segue, para que não desfaleça. Volta a
linguagem figurativa da catequese do Êxodo. Desta vez, como nos lembra o autor
da Carta aos Hebreus, se Deus “falou outrora aos nossos pais pelas palavras
proféticas dos autores sagrados, nos últimos tempos que são os nossos, nos fala
pelo seu Filho, Jesus Cristo”. Não podemos “negligenciar tão grande salvação”
(Hb 2,3).
4) A linguagem sapiencial
Quanto
mais nos familiarizamos com as Escrituras, tanto mais adquirimos a condição de
advertirmos as nuances da sua linguagem, que nos indicam que a sua linguagem
figurativa é uma linguagem sapiencial que utiliza até a simbologia numérica,
além de palavras alusivas a outras partes escritas anteriormente. Ao lermos as
primeiras páginas da Bíblia, notamos, também, que devemos estar atentos aos
temas que o autor desenvolve. Ao serem anunciados, eles conhecem uma primeira elaboração
que somente é retomada depois que outros temas que, de fato, têm uma relação
com os anteriores, são iniciados. Isto é muito claro sobretudo em Gn 1-11 onde
temos a apresentação, em forma geral, como num prefácio de um livro, dos temas
que serão desenvolvidos. Eles são apresentados de forma entrelaçada, devido à
relação teológica que existe entre eles.
Temos a
narrativa inicial da Criação que, segundo a linha teológica da Bíblia,
apresenta o Deus da história de Israel na condição de Criador. À luz do sentido
do refrão que encontramos no fim da proclamação das obras de cada dia da
criação, alusivo ao ensino catequético da narrativa do milagre das codornizes e
do maná (Ex 16,6-7), entendemos que aquilo que parece ser um simples objetivo
de uma catequese parenético-sinagogal, de fato, é, também ele, um ponto
fundamental da teologia bíblica, que será oportunamente retomado. Isto é
confirmado pelo que lemos em Ex 31,12-17, relativamente ao repouso sabático.
Quando
lemos acerca da promessa da Descendência (Gn 3,15) notamos que dela volta-se a
falar somente depois de ter sido apresentado o crime de Caim e aquilo que
aconteceu com a sua descendência. O autor entrelaça as duas descendências para
ressaltar a relação que existe entre elas. É Noé, o Justo, que encontra “graças
aos olhos de Iahweh” (6,8), aquele que dará continuidade à humanidade pelo
Resto que será poupado. Noé e a explicitação da Descendência, seja no ato de
salvar a sua família como, também, quando é descrito construindo um altar para
oferecer o seu sacrifício e quando Deus estabelece uma aliança que tem o
arco-íris como memorial.
Além de considerar o fruto
da reflexão sapiencial em Israel texto inspirado, diante da sua aceitação por
parte da Tradição judaica, de Jesus e da Igreja Apostólica, deve sê-lo, também
pela profundidade das verdades que apresenta, pela plena sintonia que mostrará
ter com a reflexão da Igreja, a ponto der ser considerado como parte, no mínimo
complementar, daquilo que a catequese apostólica dirá de Jesus reconhecido
Cristo-Deus. É evidente que estamos diante de uma inspiração divina que tem
como origem um mesmo princípio, seja para os sábios do AT como para os
Apóstolos, Profetas, Evangelistas e Doutores (Ef 4,11), que é o Espírito.
Constata-se que o texto
inspirado é consequência de uma profunda reflexão teológica, que a sua
linguagem é fruto de uma procura atenta de termos, de quadros e de erudita
composição literária. O texto bíblico não merece uma interpretação de um
despreparado que quer improvisar uma explicação, simplesmente reagindo àquilo
que termos, figuras e formas literárias que ele, de fato, ainda não chegou a compreender,
lhe sugerem.
Infelizmente, o esforço
exegético parou por demais séculos na Igreja cristã. Quando foi retomado, a
distância no tempo, o desconhecimento da cultura onde se originara a nossa
religião, o próprio desenvolvimento alcançado pela Catequese Apostólica que
interpretava a realização das Escrituras da tradição judaica à luz dos
ensinamentos de Jesus e sob a inspiração do Espírito Santo, por ele prometido e
concedido a partir da sua ressurreição dos mortos, acabaram provocando
equívocos gravíssimos. A Revelação que acontece pelo esforço da reflexão
sapiencial deve ser abordada tendo presente a precisão dos termos que os autores
adotaram ao escrever a sua obra e a escolha oportuna da linguagem que eles
utilizaram, que inclui todo tipo de gênero literário: antropomorfismos, lenda,
alegoria, genealogia, simbologia numérica, narrativa didática, enredo histórico,
aquilo que, em síntese, chamamos mashal.
É então que começamos a descobrir as convicções doutrinais que os autores querem
transmitir e que a sua linguagem é de extrema precisão teológica.
Ensaio exegético. Gn 1,1-5
Antes de
abordar a leitura da abertura da Bíblia com a sua narrativa da criação, por si, condição
perfeita para logo entendermos a natureza da linguagem que encontraremos
utilizada em toda a Escritura, é bom advertir que o texto de Gn 1, embora fale
das “origens” do universo e tente, através da contemplação da criação, falar do
Deus criador (que na realidade é o Deus de Israel, o Deus que revelou por meio
de toda uma sapiente ação, pedagogicamente conduzida, ser o único existente),
foi escrito após o exílio. A forte ação reveladora dos profetas,
particularmente de Isaias II, permitiu que a reflexão sapiencial em Israel,
avançasse segura na sua especulação. Nestas condições, o rabino que preparou a
parênese sinagogal, escolhida, mais tarde, pelo compilador do Prefácio da
Bíblia (Gn 1-11), valeu-se da sua habilidade literária de forma destemida.
Podemos, de fato, notar que ele não hesita em utilizar até figuras da mitologia
de religiões pagãs, para falar do Deus de Israel. Tendo presente esta ‘origem’
da sua composição, é possível chegar perto do pensamento do autor. Gn 1,1
apresenta o Desconhecido, que, contudo, se revelou a Israel através da história
e dos profetas, anunciando a sua obra enquanto utiliza o verbo criar (hbr.: barah). Exatamente, pelo fato que o termo
diz respeito não a um único gesto, mas a toda uma obra conduzida com sabedoria
e que resulta refletir em si o esplendor da Glória de Deus, ele não tem a mesma
significação que lhe é atribuída pela cultura ocidental, que desenvolveu uma
lógica dedutiva. Na base desta lógica dedutiva deduz-se um único conceito, qual
o de atribuir a Deus a condição de Princípio, Causa primeira, excluído qualquer
outro Princípio do qual poderia depender na sua existência. Neste caso, deve-se
dizer que a lógica da filosofia ocidental empobreceu o conceito da linguagem
semítica, que é linguagem figurativa, embora tenha conseguido especificar, com
precisão, o seu elemento principal. Atribuindo ao Deus criador a condição de
Princípio, determinou que a sua essência era a própria Existência. Deus é o “Eu
sou”, aquele que existe desde sempre, o “Eterno”. É possível notar que Jo 8,58 chega
a adotar esta interpretação quando apresenta Jesus exclamando: “Antes que
Abraão fosse, Eu sou”. Trata-se de uma influência da filosofia grega que
permite ao evangelista dar um segundo sentido ao título que Jesus atribui a si,
segundo a mais pura tradição das Escrituras. Para o judeu do séc. V a.C., o
conceito de Deus é aquele que a obra da criação demonstra ser. O judeu fala de
Deus sem especular sobre a sua condição, quanto à sua “origem”, preocupado em
ressaltar o seu poder, sabedoria e beleza. Através desta forma de falar de Deus
ele diz que a Bondade é a condição mais profunda do seu Ser. Esta sua condição
de perfeição aparecerá em toda a sua evidência quando resultará que o homem
dela é incapaz. A sua bondade resplandecerá em toda a sua Glória, depois de
ter-se manifestado através da obra da criação, ao atuar um plano de salvação em
favor do homem decaído; salvação que implicará o gesto mais significativo
daquele que é a Bondade que sempre age no amor: a entrega do Filho ao mundo [terminologia
metafórica exprimida segundo uma linguagem antropomórfica, porque, de fato, a
encarnação da Palavra da Vida, Vida, Vida eterna (1Jo 1,1-3), é, em si, a vinda
do próprio Deus, da Bondade, do Bom Pastor que dá a vida pelas ovelhas, para
que tenham vida em abundância: Ele que é “Um com o Pai” (Jo 10,30)].
Torna-se
necessário tentar entender o verdadeiro significado de Gn 1,1-2. Geralmente, a
primeira palavra da Escritura, que na verdade é uma palavra precedida por uma
preposição, é traduzida com o termo “princípio”. A narrativa da criação
subsequente nos induz a pensar que o autor esteja querendo começar a sua
narrativa com aquilo que ocorreu quando começou o universo. Há, contudo, exegetas
que, motivados por Pv 8,22, onde a Sabedoria é chamada de Princípio, enquanto
artífice de Deus, Aquela que Deus quer para si como uma esposa para com ela se
alegrar, traduzem o termo hebraico “be-rechit”,
necessariamente tendo que parafraseá-lo, dizendo: “Pela Sabedoria, Princípio da
criação, Deus deu origem a tudo o que existe”. Esta tradução, em primeiro lugar
esclarece melhor o termo “princípio”, que resulta vago quando interpretado como
o momento em que Deus realiza a criação do universo. Em segundo lugar, é
evidente que é uma interpretação derivada de uma interpretação equivocada do
termo “barah” (criou), fruto esta da
filosofia ocidental de cunho dedutivo que reduz a ação criadora de Deus a uma
mera ação inicial, qual a de um Princípio, de uma Causa primeira. Em terceiro
lugar, desvirtua o sentido do anúncio inicial, qual será explicitado logo em
seguida, mostrando-se Deus agindo com a sua Palavra criadora, que se apresenta
no começo de cada dia da criação: “Vaiomer Elohim...” (Falou Deus). Em quarto
lugar, ela é necessária para não desfigurar a imagem de Deus que o autor
apresenta em linguagem antropomórfica. Tudo isto é claramente explicitado pelo
Sl 33,6: “Pela palavra do Senhor
foram feitos os céus, e pelo sopro de sua boca todo o seu exército”. A
menção explícita do Espírito de Deus que vemos “pairando” sobre as águas,
completa a figura de Deus, vista falando, enquanto a sua Palavra sai da sua
boca, que a expira. A esta linguagem figurativa de cunho antropomórfico
inspiram-se os quadros das teofanias trinitárias do Batismo de Jesus no Rio
Jordão e da Transfiguração: o Palavra (Espírito e Vida) que age na potência do
Espírito, que desce sobre ela e sobre ela permanece para realizar a nova
criação. Também, a esta linguagem figurativa se refere Jesus quando fala a
Nicodemos dizendo: “O vento
sopra onde quer; ouves-lhe o ruído, mas não sabes de onde vem, nem para onde
vai. Assim acontece com aquele que nasceu do Espírito” (Jo 3,8). Neste caso, o “Espírito de Deus” está a
significar o poder criador que, como nos ensina a Liturgia do Batismo, “pairava
sobre as águas para que fossem capazes de gerar a vida”.
O quadro
da criação da luz (v.3) revela a perplexidade do autor que constata a pobreza
da sua linguagem em relação à grandeza do Criador. Não obstante tudo isso,
vemos que João, no prólogo do seu evangelho utiliza a figura metafórica da luz
para falar da condição que a Palavra da Vida assume quando se encarna: “Nele havia a vida, e a vida era a luz dos homens. A luz
resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam” (Jo 1,4-5). A utilização que João faz da luz, como
metáfora, nos esclarece quanto ao drama que o autor de Gn 1 descreve ao
declarar que, logo, Deus separa a luz das trevas e chama a luz com o termo
“dia”, enquanto a treva recebe o nome de “noite”. Estas conotações que carregam
de simbolismo as duas realidades, opondo-as diametralmente uma contra a outra,
indicam que por trás delas está toda uma concepção que foi amadurecendo
enquanto evoluía a linguagem figurativa no campo da religião. Sempre nos
referindo a João, no seu evangelho escutamos Jesus proclamando solenemente: “Eu
sou a Luz do mundo. Quem me segue não anda nas trevas, mas terá a Luz da Vida”
(Jo 8,12).
Quanto
mais a gente insiste em advertir a linguagem figurativa utilizada pelos sábios
de Israel na redação dos seus escritos e em se familiarizar com ela, tanto mais
clara se manifesta a sua relação com as verdades que quer anunciar e que dizem
respeito a uma revelação que vai se processando seja pela ação pedagógica de Deus,
como pelos pronunciamentos proféticos daqueles que Deus envia em seu nome e
pela reflexão sapiencial dos doutores da Lei que tentam ilustrá-la através dos
seus escritos.
5) A
linha teológica da Bíblia
É o
profetismo que, com a sua segurança doutrinal, impulsiona a reflexão sapiencial
a ponto desta produzir um manual teológico segundo uma clara visão do Plano de
Deus sobre o homem. Gn 1-11, prefácio de toda a Bíblia, apresenta a sua linha
de pensamento.
O homem
“criado à imagem e semelhança de Deus”, que deveria, portanto, através da
contemplação das obras da criação chegar à contemplação da Glória de Deus para
depois, motivado pelo reconhecimento da sua grandeza, dos benefícios dele
recebidos e da conveniência dos seus mandamentos, tornar a sua vida um
sacrifício espiritual oferecido ao Criador, “pelo louvor dos seus lábios”, na
liturgia do Dia do Senhor, esquecido, infelizmente, de todos os benefícios
recebidos, se entrega às concupiscências, querendo ser o único árbitro da sua
existência.
Diante
da culpa, embora se torne necessário um castigo de purificação, Deus, na sua
misericórdia, promove um Plano que resultará na sua maior glória. Este vai se
realizando ao longo da história do homem, pré-anunciado desde a vocação de
Israel, destinado a ser, para todos os povos, o anunciador do verdadeiro Deus e
da sua obra salvadora.
Na visão
da reflexão sapiencial em Israel, a sua História religiosa se torna
paradigmática para interpretar de que forma está se realizando o Desígnio de
Deus relativo a toda a humanidade. O autor do Apocalipse é aquele que se torna
o seu interprete: 1º) pela visão teológica da Cidade, segundo os termos do
profeta Ezequiel, enquanto descreve a destruição de Jerusalém; 2º) pelos castigos corretivos infligidos,
segundo os termos das narrativas dos castigos infligidos a Israel quando das
invasões assírias e babilonenses; 3º) ao
sugerir ao Novo Israel que viva o seu testemunho segundo o ensinamento do livro
de Daniel.
A figura
de Abraão está em relação a Adão, enquanto apresenta o homem que vive o ideal
da criatura em relação ao Criador. Ele obedece, aceitando sair da sua terra,
ele confia em Deus, acreditando na promessa de uma numerosa descendência. Por
causa da sua obediência chega a possuir a Terra. Por causa da sua confiança
conhece uma longa vida, vê uma descendência e faz deslanchar o plano de Deus.
O livro
do Êxodo quer mostrar de que forma Deus realiza a sua promessa feita a Adão e
Eva, depois da sua rebeldia, que é apresentada por uma alegoria que ilustra o
pecado de Israel que se rebela e se inclina a seguir os costumes idolátricos
dos outros povos. Israel é por ele socorrido, quando vive a escravidão no
Egito. Movido pela compaixão, decide libertá-lo “com braço forte e mão
estendida”. A páscoa será o memorial perpétuo da manifestação da sua Glória e
do seu Poder. A narrativa épica da travessia do Mar Vermelho ressalta a
importância da libertação que Deus realiza no seu poder irresistível. A
peregrinação no deserto quer lembrar aos ouvintes, no dia do Senhor celebrado
pela assembléia litúrgica na sinagoga, a perseverar no serviço do Senhor para
poder “entrar no repouso prometido”: um ensinamento moral claramente captado
pelo autor da Carta aos Hebreus (Hb 3-4). A Lei que Deus faz conhecer ao seu
povo, numa teofania que revela de forma terrificante a sua Glória, deve ser
assumida como código moral, condição da continuidade da Aliança que Deus
realizou quando da vocação de Israel para ser o Seu povo. O quadro da relação
entre Deus e Abraão define os termos: fé e obediência: “Abraão creu em Deus e
isto lhe foi levado em conta de justiça” (Rm 4,3). “Porque tu me obedeceste e
nem sequer poupaste o teu próprio filho, eu faço de ti uma benção para todos os
povos da terra” (Gn 22,15-18).
O livro
de Josué, colocado logo em seguida ao Livro da Lei, a Torah, o Pentateuco,
segundo o enredo histórico criado para dar sustentação às verdades apresentadas
segundo a linha teológica, quer enfatizar a convicção à qual chegou a reflexão
sapiencial de que a Palestina foi a terra, a pátria que Deus destinou ao seu
povo. A forma da sua ocupação apresentada seja pelo livro de Josué como pelo
livro dos Juízes, ressalta, de um lado, a displicência do povo de Deus, as suas
infidelidades à Aliança, enquanto, de outro lado, mostra qual é a paciência de
Deus que é bondoso e compassivo, que tem misericórdia e sempre suscita um
libertador que alivia os sofrimentos que o próprio povo causou para si,
voltando-se para os ídolos.
Os
livros até aqui citados, mostram qual é, de fato, a maneira segundo a qual a
Escritura apresenta as verdades da nossa fé. Trata-se de uma reflexão
sapiencial que, impulsionada pelo profetismo e sobre ele profundamente
alicerçada, apresenta uma visão teológica do Plano do Criador em relação ao
homem. A História religiosa de Israel é o paradigma sobre o qual se fundamenta
a sua teologia pela qual chegamos a ver qual é a linha pedagógica de Deus,
enquanto se revela e enquanto processa uma santificação do homem, a partir de
uma condição de justificação que terá a sua plena realização quando Jesus
realizar em si a Descendência prometida.
6) Inspiração
Diante da atuação de Oseias,
Amós, Isaias, Jeremias, Ezequiel e dos outros profetas que nos deixaram os seus
escritos, deles sabemos que aquilo que nos transmitiram foram ensinamentos e
revelações de Deus. Abalizados pelo carisma da profecia, nos transmitiram, com
fidelidade e na sua íntegra, tudo aquilo que Deus lhes revelara, eles sabendo
perfeitamente que eram simples enviados. Dessa forma, entendemos que aquilo que
por ele chegamos a conhecer é revelação de Deus a nós dirigida. Os textos
proféticos caracterizam-se por ser fruto de uma inspiração direta.
Diante de todos os outros
textos, a certeza de estarmos diante de uma obra inspirada, em última análise,
somente nos é dada quando, de autoridade, a Igreja hierárquica, ou na pessoa do
papa ou pela convocação por parte dele de um concílio, os seus membros se
pronunciam em comunhão de fé com ele. É o cânon estabelecido pela Igreja que
nos garante quais são os livros inspirados. O critério que leva a Igreja a
reconhecer um livro como inspirado é o reconhecimento, por parte da Tradição,
de que ele contém uma doutrina conforme à fé comum. Isto aconteceu, antes de
Cristo, com os textos que a tradição judaica considerou como tais. Depois da
vinda de Cristo, impõe-se o reconhecimento que Jesus mostrou a respeito dos
escritos que ele cita como Escrituras e o reconhecimento da Catequese
Apostólica que cita as Escrituras segundo o ensinamento de Cristo. Quando,
portanto, os escritos são fruto de uma reflexão sapiencial, vemos que a
inspiração ocorre por uma ação divina, enquanto o sábio coopera com o esforço
de ensinar o povo de Deus, dentro da fidelidade à tradição. Os textos do AT,
portanto, caracterizam-se como inspirados por ter sido aceitos pela tradição
judaica, por Cristo Jesus e pela Igreja Apostólica.
Os textos do NT foram
reconhecidos pela Igreja como inspirados e, portanto contendo a verdadeira
tradição da Igreja de Cristo porque resultaram em plena sintonia com a doutrina
da tradição judaica; porque, também, falavam de Cristo Jesus em plena sintonia
com o conceito da sua messianidade qual contido nas Escrituras; enfim, porque,
segundo a linha teológica da tradição e, também, utilizando as Escrituras como
linguagem para falar do Cristo de Deus, anunciaram a sua condição divina, o
sentido redentor da sua Morte e a sua doutrina que levava à perfeição aquela
que “foi dita aos antigos” (Mt 5).
7) Gêneros
literários
O nosso manual teológico,
isto é, a Bíblia abre-se com uma parênese catequético sinagogal. A linguagem é
didático sapiencial. A narrativa da criação utiliza o mito egípcio do ganso que
rompe o ovo da criação enquanto emite o seu grito descrito em forma
onomatopéica (RE-RA), como resulta claro na lingua hebraica (hbr.: bereshit
barah). Também, a linguagem
mítica está na insistência em separar o dia da noite, a luz das trevas.
Gn 2 utiliza o mito para
descrever o lugar no qual Deus coloca o homem e para simbolizar, através da
árvore da ciência do bem e do mal que é pela obediência aos mandamentos do seu
Criador que o homem terá condições de sempre ter a vida; estas, também, expressas
pela figura da árvore da vida no meio do Paraíso.
Gn 3 utiliza uma alegoria
que originariamente descrevia as vicissitudes de Israel que provocaram o
castigo do despojamento de tudo. Os castigos são descritos com os quadros da
vida do homem: as dores do parto para a mulher, o suor da fronte para o homem.
A figura do querubim é uma clara alusão à angelologia babilonense representada
nas paredes externas dos templos.
A genealogia é mais um
gênero literário que em Gn 1-11 é abundantemente utilizada, seja para
apresentar a descendência de Caim, como aquela dos patriarcas e, depois da
narrativa do dilúvio, a descendência de Noé.
Ao celebrar os patriarcas, o
autor de Gn 5 descreve a descendência dos patriarcas utilizando a simbologia
numérica.
Quando o autor sagrado
sintetiza a história das origens do povo hebraico aparece, com ainda mais
evidência, o enredo histórico. Trata-se da apresentação, em forma literária, de
um momento da história que carregará consigo um ensinamento doutrinal, habilmente
construída pelo autor. A genealogia faz parte desse gênero literário. Vemos
que, por ela, o autor liga a figura de Abraão à descendência dos patriarcas
para que a descendência de Abraão continue a representar o propósito de Deus de
levar em frente o seu plano de salvação. Este é, até, bem sinalizado através da
esterilidade das mulheres de Abraão, Isaac e Jacó. Temos, então o que Gn 12-50
quer apresentar, enquanto ligado ao desígnio de Deus formulado no prefácio da
Bíblia.
No Êxodo, o enredo histórico
é muito claro. Ele serve para ilustrar de que forma Deus intervém para salvar o
homem da sua condição de escravidão. O enredo histórico, no início, inspira-se
na experiência da escravidão de Babilônia e na gloriosa libertação que o Deus
de Israel realizou. A Páscoa, instituída por Ezequias, fim do séc. VIII, como
celebração a ser realizada no templo de Jerusalém, torna-se o seu memorial
perpétuo. A peregrinação no deserto é uma figura em que há narrativas
parenéticas com quadros em que lembram as instituições da Lei e da Aliança.
No livro dos Números temos
uma coletânea de parêneses que completam os ensinamentos contidos no Êxodo.
O Deuteronômio apresenta, em
forma de discursos exortativos, a síntese de todo o ensinamento contido nos
livros da Lei, sendo ele a parte conclusiva da própria Torah.
O enredo histórico é claro
em Josué, um livro que quer exaltar a providência de Deus que deu a Israel uma
pátria. Tudo aconteceu desde as primeiras migrações, tipificadas pela figura de
Abraão. Quando Israel ainda não era um povo Deus o transportava como sobre asas
de águia e o protegia com amor de Mãe [El Shaddai (Gn 49,25; Ex 6,3)]. Depois
de libertá-lo “com braço forte e mão estendida”, conduziu-o pelo deserto até
lhe dar a terra, porque ele é Iahweh. É por isso que a conquista de Jericó e da
Palestina é colocada depois da peregrinação no deserto. A conquista nunca
ocorreu. A narrativa é épica e imaginária. Historicamente, no momento em que
Jericó resulta, segundo a Bíblia, ter sido conquistada pelos hebreus, ela já
era uma simples aldeia, resquício de uma cidade já conquistada e destruída há
séculos.
No livro dos Juízes o enredo
histórico é imaginário porque associado a uma coletânea de lendas. A sua
narração é uma forma de instrução acerca dos atributos do Deus de Israel,
paciente com o seu povo que continuamente volta à idolatria, tornado-se
merecedor dos castigos que Deus lhe inflige para corrigi-lo, até enviar, mais
uma vez, um libertador.
O enredo histórico continua
presente também quando a história de Israel já é capaz de oferecer as datas dos
seus acontecimentos. A utilização deste gênero literário é simplesmente aquele
de transmitir ensinamentos morais. Isto se torna claro nos livros didático
sapienciais como Jonas, Tobias, Judith e Ester.
Os livros dos Provérbios e
da Sabedoria são eminentemente sapienciais. Daniel, também, é um livro
sapiencial, embora apresente traços de enredos históricos. Ele se caracteriza,
de fato, pelo gênero apocalíptico segundo o qual foi escrito.
Os Salmos são poesia que
celebram os feitos do Senhor da forma que são lembrados na Escritura.
Os profetas são, de forma
eminente, revelação, embora eles não deixem de escrever, cada qual, segundo o
seu estilo literário.
A tradição literária do
judaísmo continua nos livros do NT. Dessa forma, podemos dizer que nos
evangelho temos um enredo histórico, suporte para tudo o que é revelação de
verdades divinas, cuja linguagem é sapiencial.
Em Mt temos, adotada da
tradição literária do judaísmo, a genealogia, o midrash, o enredo histórico e o
mashal.
Em Mc sobressaem as
narrativas.
Em Lucas temos reflexões
sapienciais de cunho midrashico sobre a “origem de Jesus”, apresentada por Mt
1,18-23. Não é difícil constatar, na narrativa da Anunciação a relação que
Lucas estabelece entre Isabel e Sara que tem um filho, embora estéril, porque
“nada é impossível para Deus” (Cf. Gn 18,14). A esterilidade é, portanto, uma
condição atribuída a Isabel para ressaltar o acontecimento esperado da
Descendência.
Em João é evidente a
preocupação de aprofundar os conceitos doutrinais acerca da Pessoa de Jesus,
que já Paulo chamava Mistério de Deus. Jesus é a Palavra criadora, a Vida, Luz
que resplandece nas trevas. Realiza em si a Profecia que o anunciava na
condição de Cordeiro que carregaria sobre si os nossos pecados, o Filho do
Homem, Glória de Iahweh que recebe do Pai o poder de julgar. O Templo do qual
jorra o Espírito, a Fonte da Água da Vida, o Senhor do sábado, o alimento que
desceu do céu e dá a vida ao mundo, o “Eu sou”. Ele, o Verdadeiro que é Vida,
cura o cego de nascença, ressuscita Lázaro. A eminência da sua santidade
prepara o sentido da sua Morte e a própria ressurreição. Pouco interessa a João
aquilo que tanto nos preocupa saber de Jesus. A própria cronologia é simbólica:
“No dia seguinte...No dia seguinte... No dia seguinte”. Não se trata de três
dias, e sim, de um só Dia, o Dia do Senhor repetido segundo a simbologia
numérica do três. O simbolismo volta a se repetir em Jo 2,1: “E no terceiro
dia...”. É o dia da manifestação da Glória de Deus, a partir dos sinais, aos
quais Maria, pela sua mediação, dá início, a Mulher, a Mãe do Filho do Homem
que, aos pés da Cruz, é chamada a ser a Mãe da Igreja.
A apresentação de Jesus, na
condição de Cordeiro que realiza o Dia do Senhor, o quadro das Bodas de Caná,
momento em que Jesus manifesta a sua Glória com o primeiro dos sinais, nos
indicam que João constrói a apresentação teológica de Jesus através de narrativas
que se caracterizam pela linguagem figurativa. Isto volta a acontecer no
episódio da purificação do templo (Jo 2,13-22). A simplicidade dos elementos
narrativos do encontro de Jesus com Nicodemos, evidencia a forma literária
adotada por João, ou melhor, pela reflexão da escola joanina. A narrativa
didática volta a estar presente em Jo 4 com os elementos do poço, da água, dos
dois dias ao longo dos quais Jesus permanece com os samaritanos, porque no
terceiro dia é o segundo sinal, na Galiléia, em Caná.
A cura do paralítico com os
seus 38 anos de espera, que quando volta a reencontrar Jesus recebe a
recomendação de não mais pecar para que não lhe aconteça o pior, introduz o
ensinamento do Senhor do Sábado, o Criador que “faz o que vê o Pai fazer”. É uma
sinalização da condição divina do Filho do Homem, Aquele que como “Unigênito
Deus vive voltado para o Pai” (Jo 1,18).
A catequese sobre a
Eucaristia de Jo 6 está toda fundamentada na condição divina argumentada em Jo
5. Jesus é Aquele que desce do céu e dá a vida ao mundo, na condição de enviado
do Pai, o Filho do Homem, consagrado pela unção do Espírito. Ele será o Templo
do qual jorrará o Espírito, em virtude da sua imolação. Simbolismos, todos eles
ligados à festa das tendas, à serpente levantada da terra, ao maná, que
sustentam a apresentação da teologia da necessidade do novo nascimento, na água
e no Espírito, da Morte redentora de Jesus, da Eucaristia.
Assim é da cura do cego de
nascença, que, evidentemente, está relacionada aos cegos que são curados,
segundo a narrativa sinóptica. Assim é da ressurreição de Lázaro relacionada à
filha de Jairo, em Mt e Mc, e ao filho da viúva de Naim, em Lc.
O gênero literário não nega
a historicidade do fato. Detectado, contudo, focaliza a doutrina que, pela
linguagem figurativa ou pela narrativa, quer ser apresentada.
A Igreja medita o Mistério
da Pessoa divina do seu Mestre e Senhor por meio das Escrituras, o manual
antológico de toda a tradição da fé judaica. O Apocalipse é uma escatologia
explicada em linguagem apocalíptica que explora a Escritura a ponto de torná-la
sua linguagem.
8) O enredo histórico
Após
termos falado da linguagem sapiencial, merece a nossa atenção, entre os gêneros
literários que os compiladores da Bíblia utilizam, o artifício literário do
enredo histórico. De fato, quem não fica perplexo diante da narrativa de Gn
12,10-20? Isto não aconteceria se lembrássemos o artifício literário da
genealogia que o redator de Gn 1-11 utilizou. Trata-se, em ambos os casos de
situações históricas construídas com a finalidade específica de transmitir,
através delas, ensinamentos doutrinais. Pela genealogia, Abraão é ligado à
Descendência, que é apresentada através de uma alegoria que retrata
originariamente a rebeldia de Israel ao seu Deus, mas que, de fato, é o
“Cordeiro imolado contemplado desde antes a criação do mundo”, alguém que
esmagará a cabeça da serpente para resgatar a humanidade do domínio do Maligno.
A genealogia é um elemento cultural, utilizado pelo autor para lembrar que há
uma continuidade de ação desde que Deus
determinou-se, no seu Desígnio, salvar a humanidade mediante um dos seus
membros, alguém que a reflexão sapiencial chega a profetizar, inspirada pela profecia
de Is 7,14; mistério que somente será desvendado por Jesus Cristo, a partir do
momento em que a condição divina manifestada pela sua ressurreição explicitará
a sua Encarnação. A genealogia desta descendência é celebrada com a solene
proclamação da tríplice benção que Deus efunde sobre os Patriarcas, através da
linguagem da simbologia numérica. Ela continua a ser utilizada com a
descendência de Noé, até chegar a Abrão, filho de Taré.
Entendemos
claramente que estamos diante de um elemento de um enredo histórico quando
notamos que é lembrado, juntamente com os nomes programáticos de Abrão e Sarai,
o nome do avo de Rebeca, Nacor (Gn 11,29; cf. 24,24). O enredo histórico é,
portanto a maneira de formular uma situação, utilizando a habilidade literária
de explorar as condições das civilizações em que será colocada uma narrativa
didática. A narrativa de Gn 12,10-20 visa ressaltar a assistência de Deus sobre
os seus servos. Nem o mais poderoso homem do mundo consegue impedir que se
realize o plano de Deus. Quando Israel nem sequer era um povo, Deus o protegia
com asas de águia (Dt 32,11).
O
enredo histórico é uma constante na Bíblia. Aparece de forma clamorosa na
narrativa do sacrifício de Isaac (Gn 22), no sacrifício de Jefté (Jz 11).
Ele se
apresenta na apresentação das “origens” do povo de Israel. Os patriarcas
Abraão, Isaac e Jacó, são nomes que representam os grupos das tribos que, em
diferentes épocas, migraram da Mesopotâmia até à Palestina. A percepção deste
artifício literário nos ajuda a entender o artifício da condição estéril das
respectivas esposas. Serve para transmitir o conceito da unilateralidade da
ação de Deus na realização do seu Plano de salvação. O enredo histórico se
apresenta de forma contundente no Êxodo. Nunca, tribo nenhuma de Israel esteve
no Egito. Simplesmente, a condição de escravidão e libertação do jugo de
Babilônia, é projetada numa condição de escravidão naquele território. Sinal
claro disso tudo é o fato que as condições de vida vividos pelos judeus naquela
terra são descritas segundo os costumes do tempo pós-exílico. Este sentido
alegórico é claramente sinalizado por Ap 11,8, onde a Cidade a Grande, que
representa a Besta que persegue os mártires, é chamada de Babilônia ou Egito. O
Livro de Daniel é uma amostra clara de um enredo histórico construído. O seu
intuito é valorizar a interpretação profética dos acontecimentos do tempo de
Antíoco IV Epífanes do séc. II. A
desenvoltura com a qual os autores constroem o enredo histórico nos mostra que
ele é um simples instrumento para falar de verdades doutrinais. Ao mesmo tempo
a sua habilidade literária nos revela quanto dominavam este gênero literário e,
consequentemente, quanto ele se tornou oportuno no ensino catequético. Torna-se
necessário nos familiarizarmos com ele, para que saibamos reconhecê-lo, também,
nos autores do NT. Eles nos transmitiram verdades segundo o estilo da reflexão
sapiencial da tradição judaica.
Jo
2,1-12 é fruto de um trabalho literário onde temos, em primeiro lugar, a
intenção de anunciar a ação irresistível de Deus ao dar início à realização do
seu Plano. Em segundo lugar, de ressaltar a função da Mãe de Jesus, na condição
de Mulher, enquanto são apresentados os elementos da “hora”: Maria, a mãe de
Jesus chamada a ser Mãe da igreja, a manifestação da Glória, o dom do Espírito
que o Esposo faz à sua Igreja. O enredo histórico é criado e é parte de uma
narrativa alegórica.
Quando
chega o momento da Morte de Jesus, a narrativa das Bodas de Caná é determinante
para entender qual é o sentido doutrinário de ambos os quadros e quanto eles se
complementam.
Praticamente,
o evangelho de João é um manual catequético que visa promover a nossa fé em
Jesus Filho de Deus, para que tenhamos vida em seu Nome (Jo 20,30-31).
A
purificação do Templo (Jo 2,13-22) deve ser valorizada como um quadro que catequeticamente
ajuda entender de que forma Jesus julgava a prática do seu comércio. Temos uma
dramatização que, ao mesmo tempo, serve para anunciar o que Jesus se tornará
pela morte que os seus inimigos lhe infligirão: “Destruí este templo e Eu em
três dias o reedificarei” (2,19). É importante notar, enfim, que, em relação aos sinóticos, João apresenta o episódio, por razões catequéticas, no início da vida pública de Jesus que, ressuscitado, sempre no terceiro dia, subirá ao céu do monte que se
confronta com o monte de Jerusalém (Ez 11,23), o Monte das Oliveiras.
Através
desta análise é possível relativizar a historicidade dos milagres, para
ressaltar o conteúdo doutrinal que a sua ocorrência, lembrada, quer transmitir.
Admiti-los simplesmente, cria um desequilíbrio que acentua demais o poder
taumatúrgico de Jesus. Deveríamos ver neles, sobretudo, “os sinais” que nos levam
a nos interessarmos pela doutrina de Jesus que, através
das suas narrativas, o evangelista quer expor.
9) Os dados historiográficos de Israel
A terra de Canaã conhece, ao
longo do segundo milênio a.C., a progressiva ocupação do seu território por
parte de tribos nômades vindas da Mesopotâmia. A história da Palestina, por sua
vez, conhece tribos confederadas que chegam a viver debaixo da égide de um rei.
A monarquia, com a morte do rei Salomão conhece a separação entre Samaria e
Judá. Apresentam-se, então, no cenário histórico, dois fenômenos importantes: o
profetismo e a reflexão sapiencial que produz, no reino do norte o núcleo
central do Deuteronômio. Os assírios ocupam a Samaria em 722. O Deuterônomio é
então conhecido, também, no reino do sul e provoca a centralização do culto,
tendo como ponto de referência o templo, no reino do de Ezequias, fim do século
VIII. No fim do século VII, Josias empreende a reforma religiosa em Judá. Nabucodonosor
conquista Jerusalém em 587 a.C. Com a volta dos judeus do exílio de Babilônia,
para a Judeia, em 538 a.C., e a reconstrução do templo de Salomão,
desenvolve-se um processo religioso que se relaciona ao Deus da história de
Israel e o reconhece como o seu único Deus. Os profetas dele falam de uma forma
segura, que permite o desenvolvimento da fé monoteísta entre os judeus.
A
reflexão sapiencial dos escribas descobre, então, a linha pedagógica do Deus de
Israel, a quem atribui o dom da terra. Intui, também, que a vocação de Israel é
aquela de anunciar o verdadeiro Deus a todos os povos e, enquanto reflete sobre
a vocação de Israel, a sua rebeldia, o castigo e a purificação pelo exílio,
descobre que a história de Israel é paradigmática em relação à história da
humanidade que, portanto, precisa de um Salvador. A reflexão sapiencial dá
origem a um manual teológico que fala de uma condição da qual Deus quer
resgatar o homem. Surge a intuição de uma condição ideal traída, de um Salvador
exigido pela própria natureza do Deus Criador. Os conceitos fundamentais estão
no prefácio de toda a Bíblia: Gn 1-11. 1º) O criador revela ser a Bondade
onipotente e sapientíssima que manifesta o seu esplendor na beleza do universo.
2º) O homem encontraria a sua realização pela contemplação das obras de Deus
porque, por ela, encontraria a motivação para viver segundo os seus
mandamentos. 3º) A história da humanidade mostra que esta se afastou do seu
caminho. A sua culpa pode ser tipificada pela história de Israel, o povo que
Deus chamou para ser o seu povo, a quem deu a terra, prometeu a vida sob a
condição de que observasse os seus mandamentos. Por não ter feito isso,
conheceu o castigo. Deus, contudo, porque fiel a si mesmo, desde sempre pensou
numa redenção através de um membro da descendência da mulher. 4º) Enquanto, portanto, por causa da sua
rebeldia, o homem deveria, por si,
conhecer o castigo da morte e da destruição, Deus se compraz com o homem
Justo que encontra graça diante dos seus olhos: Noé, figura que desenvolve o
conceito inicial de Descendência de Gn 3,15. A relação de Israel com esse Plano
de Deus é estabelecida através do artifício literário da genealogia. Por meio do
artifício literário do enredo histórico, que apresenta as “origens” do povo de
Israel através das figuras de Abraão, Isaac e Jacó, Abraão é ligado à
descendência de Adão por parte de Set. A genealogia dos patriarcas não
significa que necessariamente a Descendência da mulher esteja ligada ao povo
hebraico. Significa somente que, enquanto Deus a perpetua, ela é o sinal da
fidelidade que Deus tem com a sua promessa. Segundo esta promessa ele poderá
até nascer entre os da estirpe da Davi, filho de Abraão, contudo, será Deus que
a suscitará segundo o seu Poder (Mt 1,18).
A linha
teológica da Bíblia, depois de ter apresentado a “origem” do povo eleito, tem a
sua continuidade na teologia apresentada pelo livro do Êxodo. Sempre através da
história de Israel, que é aquela da história da salvação e não aquela
apresentada pelo enredo histórico, as narrativas catequéticas ilustram a
condição de escravidão, a ação de Iahweh que liberta, a instituição da Páscoa,
como memorial perpétuo, a travessia do Mar Vermelho, a presença do Espírito que
conduz o povo pelo seu líder, Moisés, pelo alimento providenciado e a presença
estabelecida com a tenda.
Vemos que o Deuteronômio considera as
narrativas do Êxodo de natureza catequética. De fato é o seu núcleo central que
as inspira. Há exegetas que peremptoriamente negam ter tribo alguma de Israel
descido ao Egito em tempo algum, sobretudo porque aquilo que parece ser uma vitória
em relação ao faraó, a dizer, a saída do Egito, é narrada pelo autor do Êxodo
segundo um enredo histórico que supõe condições históricas para um tempo em que
o Egito forçava a saída de povos estrangeiros da sua terra. A própria Bíblia de
Jerusalém, nas notas de rodapé, observa que o enredo histórico das narrativas,
construído pelo autor, não é do tempo em que teria ocorrido o êxodo, e sim do
tempo da composição literária do texto, portanto de séculos posteriores. A
linguagem bíblica será perfeitamente entendida pela Igreja Apostólica. Será,
portanto, segundo esta mesma linguagem que anunciará a Boa Nova da salvação
(1Pd 1).
No tempo em que o autor situa a conquista da
cidade de Jericó, esta era um lugar sem muralhas, porque conquistada por outro
povo, há muito tempo. A narrativa do livro de Josué é colocada depois do
Pentateuco, porque é ali que se encaixa na moldura cronológica da Bíblia. A
mesma coisa acontece para a coletânea das narrativas lendárias do livro dos
Juízes. Temos que entender que o enredo
histórico é o elemento literário construído pelo autor que visa, de fato, por
ele, nos transmitir as suas convicções doutrinárias. É dessa forma que devemos
entender as narrativas que se apresentam também quando parece que a história
está sendo citada de forma mais precisa, como acontece nos livros de 1,2Sm e
1,2Reis. Estas características da historiografia bíblica devem ser advertidas,
também, nos livros do NT, porque, de fato, estamos diante de autores que dão
continuidade à linguagem sapiencial segundo a qual os autores dos textos
bíblicos se expressaram desde o seu início.
Insistir em querer tirar
informações de cunho histórico de textos que visam apresentar doutrinas religiosas,
a fim de montar uma historiografia, é um equívoco que chega a ser erro
grosseiro quando são desclassificados textos da Escritura porque não
correspondem aos nossos anseios. Uma pretensão temerária que reduz textos
teológicos inspirados a meras biografias.
10) Gn 12-50. As “origens” de Israel, o povo no qual Deus
dá continuidade às condições de um surgimento da Descendência.
Esta
segunda parte de Gênesis visa ligar Israel ao Desígnio de Deus de realizar a
glorificação do homem através de um povo de escolha, pelo qual começa a se
realizar a determinação de Deus de suscitar um salvador entre os membros da
própria humanidade.
A
genealogia é o artifício literário que liga Israel ao Redentor, vislumbrado na
narrativa eminentemente teológica de Gn 3. A figura do redentor está presente
na mente do autor que em Gn 12-50 fala, de forma precípua, do povo do qual ele
brotará. O sacrifício de Isaac não deixa de lembrar o Servo de Iahweh que
Isaias II tinha anunciado.
A
natureza teológica dos textos se torna evidente quando consideramos que: 1º) a
figura de Abraão é a idealização do hebreu que agrada a Deus; 2º) a condição de
consaguineidade de Abraão, Isaac e Jacó é um mero artifício para definir quem é
realmente Israel como povo; 3º) aquilo que parece ser historiografia é
simplesmente um enredo histórico criado pela habilidade literária do
autor. Deve ser reconhecida a
genialidade do autor que é capaz de sintetizar a origem de Israel com rápidas
pinceladas, apresentando, ao mesmo tempo, com clareza, a sua função dentro do
Plano de Deus, que visa a salvação do homem, para a manifestação da sua Glória
(Ef 1,3-14). O intuito teológico do autor sobressai, também, pela repetida
característica das mulheres dos patriarcas. Elas, todas, são apresentadas na
condição de serem estéreis. DE fato, elas o são, não porque historicamente foi
assim, mas porque o autor das “origens” de Israel as quis assim, a fim de
ressaltar a unilateralidade da ação de Deus na realização do seu Desígnio. Esta
peculiaridade é lembrada, no primeiro quadro que encontramos em Lucas, quando
também Isabel é apresentada na condição de ser estéril.
Apresenta-se
Gn 12-50 como uma coletânea de narrativas didáticas pelas quais Abraão é a
figura do perfeito israelita, obediente às ordens de Deus. Ele é amado por Deus
que o protege fazendo que, contra toda esperança, ele prevaleça contra os poderosos.
A característica da narrativa didática permite que seja acrescentada a
episódios de tradição mais antigas a narrativa do dízimo que Abrão paga a
Melquisedec. A prática da circuncisão é incutida como um sinal de pertença de
cada israelita ao povo de Deus. Segundo a sua origem religiosa, qual pretendida
pela narrativa de Gn 17, se torna motivo de empenho em viver na fé no Deus da
história de Israel, à semelhança de Abraão a quem Deus concedeu a descendência
e a terra. O sacrifício de Isaac visa exaltar ainda mais a fé de Abraão, porque
Deus, por não ter o seu servo recusado em sacrificar o seu único filho, o torna
pai de uma multidão de povos.
As
narrativas chegam a ter a beleza encantadora de contos literariamente
aprazíveis, a ponto do leitor quase esquecer o seu intuito didático. A procura
de Rebeca para que se torne esposa de Isaac, como também a labuta de Jacó para
ter Raquel visam incutir que se evitem casamentos com mulheres de religião
pagã.
A
história de José acaba sendo colocada no livro das “origens” de Israel porque
existe um paralelismo entre a sua e a história de Abraão. Deus reverte a sorte
dos seus servos de uma forma tão inesperada, qual poderia ser cogitada somente
por ele, a ponto de suscitar nos israelitas a veneração daquele que deve ser
chamado de “El shaddai”: o Deus que, no seu poder, protegeu os seus servos,
quando ainda não eram um povo, animado por uma ternura de um amor maternal (Gn
49,24-25).
11) Origem da nossa religião
A nossa religião tem sua origem na experiência que o povo
hebraico teve do Deus único e verdadeiro.
A ação profética do tempo do reis que, sobretudo, se acentuou com as deportações (Samaria, 722 a.C; Judá 587 a.C), definiu,
para sempre, de forma objetiva a certeza de Israel de que ele vinha sendo
objeto de uma revelação. O Deus que se revelava era aquele que vinha se
manifestando ao longo da sua história e que não podia ser considerado simplesmente
um dos deuses entre as divindades de todos os outros povos.
A reflexão sapiencial dos escribas, a partir da revelação
dos profetas, ao longo do exílio da Babilônia
e depois, aprofundou a compreensão do Deus de Israel seja refletindo sobre a
história do seu povo, como, também, ilustrando os seus atributos pela
celebração das obras da criação, os feitos de Iahweh que levaram à formação de
um povo, os que nem sequer podiam ser considerados como um povo. A reflexão
sapiencial dos escribas conseguiu ver nas migrações das tribos dos ancestrais
de Israel, que depois acabaram constituindo as tribos de Israel, da Mesopotâmia
até à Palestina, a maneira pela qual o Criador foi aglutinando numa nação os
que eram destinados a ser o povo que anunciaria a todos os povos o verdadeiro
Deus, Único existente.
O
material que acabou sendo escrito acerca desse assunto, peneirado por escolas e
redatores, veio a formar a coletânea dos livros das Escrituras Sagradas. A sua
compilação não responde aos anseios de quem procura nela uma resposta ao desejo
de conhecer a origem da humanidade. Ela visa somente apresentar uma visão
teológica pela qual é possível entender que o mundo depende da ação criadora
daquele Deus que, ao revelar-se a Israel como Criador de tudo, pela sua criação
manifesta ser onipotente, sapientíssimo, resplendor e glória e bondoso.
Uma vez que o sábio hebreu intui que a história de Israel
é paradigmática quanto à história da humanidade, toma aquilo que era uma
simples alegoria para ilustrar a história de Israel (Gn 3), para explicar de
qual culpa o homem se mancha diante do seu Criador e qual é a condição na qual
acaba caindo. Enquanto a alegoria ilustra todo o amor paciente do Deus de
Israel com o seu povo, ela serve para anunciar uma profecia de valor
inestimável: a humanidade será salva pela ação de um dos seus membros que,
inexplicavelmente, porém até que tudo se realize no homem Cristo Jesus,
libertará os seus irmãos da escravidão do Mal.
No quadro grandioso do dilúvio, que é uma figura daquilo
que aconteceu a Israel quando
varrido da face da terra que Deus lhe deu, a figura da Descendência da Mulher é
representada por Noé que, no Plano de Deus, é destinado a ser o “Princípio, o
Primogênito dos mortos” (Cl 1,18b). Estamos diante de uma linguagem figurativa
que quer expressar uma altíssima teologia, surpreendente pelo tempo em que ela
é formulada. Tudo, Criador, promessa de uma Descendência, humanidade destinada
a ter um Cabeça por quem Deus estabelece uma aliança eterna com a mesma, a
ponto de garantir que nunca a destruiria, varrendo-a da face da terra,
constitui-se no prefácio da Bíblia. Estamos diante de uma premissa da visão
teológica que os livros das Escrituras Sagradas irão paulatinamente
desenvolver, a partir da história dos patriarcas. Deus, que é a Bondade que
sempre age no amor, porque fiel a si mesmo, não abandona o homem, não obstante
a sua rebeldia e a perversão na qual, consequentemente, se lança e pela qual
decai. Pelo contrário, desde sempre, considera enviar um Redentor, segundo o
“Desígnio da sua infinita sabedoria, para que o homem chegue a ser seu filho
adotivo no Amado” (Ef 1,3-14).
O Plano de Deus tem seu começo com a escolha de Israel
para ser o seu povo. O escriba ilustra o processo histórico das migrações das
tribos nômades de um único clã com as figuras de Abraão, Isaac e Jacó. A
interpretação da história é teológica. A esterilidade das mulheres dos
patriarcas serve para ilustrar a ação unilateral de Deus em levar em frente o
seu plano.
A história da libertação do Egito de tribos que para lá migraram inicialmente constitui-se numa
narrativa que resume em si a ação providencial do Deus de Israel em favor do
seu povo. A ocupação da terra que se deu de forma gradativa, em tempos
diferentes, é celebrada sob a forma de uma conquista que Deus promoveu em favor
do seu povo (Sl 44,2-9).
A peregrinação no deserto, no tempo do exílio e após o
exílio, é explorada caqueticamente, enquanto é preenchida de episódios que
visam admoestar o povo de Deus, purificado pela dolorosa experiência das
deportações, para que sirva com fidelidade o seu Deus, em vista, agora, de uma
Pátria definitiva. Moisés, que na história da libertação do Egito e ao longo da
peregrinação no deserto, tem uma ligação com um possível líder, de fato é uma
figura que ajuda entender quanto Deus agiu para levar “aquele que nem sequer
era um povo, a se tornar o Israel de Deus”.
Adão, Noé, Abraão, Moisés
não são personagens históricos e sim caracteres de uma História que a reflexão
sapiencial constrói embasada num núcleo histórico. Esse núcleo é interpretado
teologicamente, à luz da revelação que Deus fez de si ao longo de toda a
história de Israel. O Deus invisível agia pedagogicamente, provocando uma
interação do homem com ele, através das suas progressivas manifestações. O
sábio as detectou e as apresentou, criando uma teologia que sistematizou da
forma que nós encontramos na Bíblia, que deve se tornar o nosso manual
catequético. Nas Escrituras Sagradas está exposto, teologicamente, o Plano de
Deus em relação ao homem, a partir da criação do mundo. É dessa forma que conhecemos
a Deus, que não é um Deus abstrato, e sim, o Deus da História de Israel que, em
síntese, começou a se revelar um Deus de amor maternal (El Shaddai) (Gn 49,25) nos
alvores daquele que “ainda não era um povo”. Carregou-o, como uma águia, sobre
as suas asas. A sua apresentação acontece com a criação de personagens da
História, a fim de oferecer uma interpretação teológica de tudo o que o único
Deus existente quis fazer acontecer em favor de Israel para que, na condição de
povo escolhido, fosse o seu arauto para todos os povos. A História dos
Patriarcas é uma teologia que visa apresentar a ação de Deus que, de forma
unilateral, vai realizando o seu Plano. As tribos nômades que, ao longo dos
séculos se deslocaram da Mesopotâmia até a Palestina e lá, gradativamente, se
estabeleceram, estavam sendo conduzidas pelo seu Deus, em vista de um Plano que
devia se concretizar. Essa visão teológica é apresentada, em síntese, com as
figuras de líderes ideais que, até, são interligadas entre si por meio de uma
genealogia: Jacó, filho de Isaac, filho de Abraão.
A partir do momento em que a reflexão sapiencial intui
que Israel é o povo que o Deus Criador de tudo escolheu para ser o seu povo, a
genealogia remonta até às origens da humanidade. Trata-se de um artifício
literário que utiliza a genealogia para estabelecer a estrita e necessária
ligação do instrumento da salvação que Deus escolheu, com toda a humanidade.
Abraão, portanto, é filho de Lamec, filho de..., até chegar a incluir todo e
cada homem. A forma pela qual todo e cada homem está incluído no plano de Deus
explora a procriação, no que diz respeito à sua origem e multiplicação.
Vemos, aqui, claramente, como a teologia utiliza imagens
para expressar uma verdade. Elas são tiradas da vida do homem, sem se importar
se realmente aquela foi a forma original do princípio da humanidade. Atentos
portanto a sempre advertir a distinção entre a história cronológica e a forma
histórica adotada para apresentar a ação de Deus em relação à humanidade,
estamos em condições de entender o que a reflexão sapiencial quer nos
transmitir através da literatura que produziu. Também, o esquema teológico das
escolas que compilaram as Escrituras Sagradas, para torná-las o nosso manual
catequético, deve ser levado em conta para que possamos compreender que as
Escrituras Sagradas querem, antes de tudo, nos transmitir uma teologia que,
nesse caso, através do relato de tudo que os profetas anunciaram em nome do
Deus de Israel e a reflexão sapiencial que interpretou o patrimônio da fé do
povo de Deus, é o próprio pensamento de Deus. Dessa forma, o homem é
enriquecido com verdades seguras acerca do Criador, do homem, da Redenção que
se tornou necessária diante da rebeldia do homem, da condição divina do homem
Cristo Jesus, da vocação da humanidade à participação da própria vida de Deus.
À luz dos princípios gerais
acima lembrados, as Escrituras Sagradas se tornam ainda mais inteligíveis
quando temos presente a origem histórica e literária das suas partes:
Gn 1, na sua origem, é uma
proclamação das obras da criação que visa motivar os fiéis a observar o repouso
em dia de Sábado, para, uma vez por semana, nutrir o seu espírito através da
contemplação das obras de Deus.
Gn 2 é uma teologia
antropológica que estabelece a relação de dependência da criatura do seu
Criador como condição do seu crescimento e realização.
Gn 3, na sua origem, é uma
alegoria que retrata a história de Israel que, em lugar de escutar o seu Deus,
deu ouvido à voz do Maligno, “a antiga serpente, o Diabo, Satanás” (Ap 12,9).
Isto acarretou a expulsão da Terra. A alegoria é assumida pelo compilador das Escrituras Sagradas que quis fazer da Bíblia um manual catequético. Por ela
ilustra a condição em que se lançou a humanidade, como o sugere a sua história
de devassidão, perversão, miséria e idolatria.
Gn 4 apresenta, em síntese,
a história do homem, feita de realizações e de culpas sempre mais numerosas.
Gn 5 é um canto à
Descendência, através da linguagem da simbologia numérica, que quer celebrar a
tríplice benção que Deus lançou sobre cada patriarca.
Gn 6-9 é a apresentação do
fim ao qual, por si, seria destinada a humanidade por causa da sua perversão e
iniquidade. Dela a preserva exatamente o último membro da genealogia que vem a
ilustrar de que forma se realiza o Plano de Deus em relação ao homem. Noé
explicita o que a figura da Descendência da Mulher (Gn 3,15) já quis indicar. A
humanidade que Deus quer criar para si tem origem de uma Cabeça pela qual Deus
quer estabelecer uma aliança eterna com a humanidade (Gn 10-11).
Gn 12-50 é uma reflexão
teológico-sapiencial que narra “as origens” do povo de escolha. A ação
unilateral de Deus em levar em frente o seu plano é claramente estigmatizada
pelas figuras de Sara, Rebeca e Lia, as mulheres estéreis, respectivamente, de
Abraão , Isaac e Jacó.
Êxodo e Números são
coletâneas de parêneses catequético-sinagogais. Os rabinos as compuseram
tendo como pano de fundo a peregrinação no deserto que as tribos que saíram do
Egito tiveram que empreender até chegar à terra prometida.
O Deuteronômio expõe os
ensinamentos das narrativas de Êxodo e Números em forma de discursos
parenéticos.
A reflexão sapiencial de
cunho histórico continua com os livros dos Juízes.
Também, 1 e 2Sm são
reflexões sapienciais. Constatamos que os elementos históricos se tornam mais ligados à realidade dos
acontecimentos do que à lenda.
1 e 2Rs nos mostram
claramente qual é a relação entre fatos e teologia. O fato serve para ilustrar
qual é a vontade de Deus ao longo da história de Israel, enquanto apresenta a
condição do homem que Deus quer salvar, na fidelidade ao seu amor, porque ele é
Bom.
A leitura teológica que os judeus faziam da sua história
se torna a condição ideal para a Igreja apostólica ver nas figuras do AT a
ilustração profética de tudo o que aconteceu com Jesus: à luz da sua ressurreição, foi entendida a
teologia contida nas Escrituras Sagradas, expressa em linguagem figurativa de
cunho semítico.
Os gentios, aos quais a Igreja Apostólica transmitiu o anúncio
do verdadeiro Deus, têm que entender que devem se inteirar com a natureza da
linguagem bíblica, porque é por ela que o Deus único existente falou de si. Do
próprio Deus, se queremos aprofundar a sua compreensão, devemos conhecer as suas
prerrogativas através de tudo aquilo que o antigo Israel captou pela revelação
dos seus profetas, pelas reflexões dos sábios sobre as suas origens, pelos
feitos que Deus realizou, por tudo aquilo que Israel celebrou com seu culto no
templo e expressou através dos salmos (teologia expressa em forma de oração).
A Bíblia é, antes de tudo, uma teologia que visa ilustrar
a salvação que Deus quer realizar em favor da humanidade, não obstante a sua atitude
rebelde. Ao longo da história da salvação, Deus vai revelando o seu Nome, isto
é, aquele que Ele é, na condição de Criador. Com Jesus, chega até a nos falar
da sua Vida Trinitária. Em relação ao homem, a informação é imensa. Um dom que
podemos avaliar em toda a sua preciosidade quando o comparamos àquilo que o
próprio homem chega a falar de si pela filosofia, pelas intuições religiosas de
uns ascetas e, ultimamente, pela psicologia. Ao homem é dado compreender, pela
revelação, que é criatura. Deus o conhece em cada fibra do seu ser; a ele fala
pelos seus profetas e pelas intuições dos sábios do seu povo, para lhe indicar
o caminho da sua realização. Em Jesus, na condição de Pessoa divina do Filho
que assume a natureza humana, se torna o Modelo dessa realização que declara
conduzir pessoalmente pelo seu Espírito, a partir do momento em que o homem
decide segui-lo carregando a cruz de cada dia, isto é, tornando o seu corpo um
sacrifício espiritual, ao procurar sempre o que é bom agradável e perfeito aos
olhos de Deus (Rm 12,1-2). Em Jesus o homem tem, também, a condição de entender
o extremado amor daquele que é a Bondade. Fiel a si mesmo, Deus entrega seu
próprio Filho, mostrando qual é a natureza do seu amor ao mundo. Pela Lei que
nos relata, a Bíblia apresenta ao homem a vontade de Deus. Obedecendo a tudo
aquilo que lhe prescreve, o homem terá a vida. Com Jesus, o Mestre e Guia que
leva a lei à perfeição, isto se realizará de forma plena. Puro de coração,
verá a Deus; pela mansidão, como um cordeiro levado ao matadouro que não
murmura, herdará a terra; perdoando as ofensas, alcançará
misericórdia. Se chegar a sofrer perseguições por causa de Cristo e do
Evangelho, garantirá para si o Reino, isto é, reinará com Cristo.
12) A reflexão sapiencial da
Igreja Apostólica
Jesus
reconhece a inspiração das Escrituras. Cita-as no seu ensinamento e nos seus
diálogos com os escribas e fariseus. Depois dele, os Apóstolos, sob a iluminação do
Espírito Santo, retomam a Profecia e a reflexão sapiencial da tradição hebraica
e, utilizando a mesma linguagem da Escritura, exploram a doutrina anunciada por
Jesus para proclamar a sua condição messiânico-divina. Dessa forma a
Escritura, que agora inclui, também, a reflexão sapiencial da Igreja
Apostólica, na condição de manual antológico da Tradição, apresenta uma
exposição teológica inspirada em toda a sua plenitude.
O
reconhecimento de Jesus quanto à origem divina da Escritura, uma vez que se
torna incontestável diante da manifestação da sua condição divina pela sua
ressurreição, torna-se, por sua vez prova da condição divina da doutrina
proclamada pelos Apóstolos, uma vez que nos transmitem a sua mensagem na
condição de quem Jesus chamou para que estivessem com ele desde o princípio.
Com eles, o Espírito Santo age da mesma forma segundo a qual agiu com os
profetas. Disto os Apóstolos têm plena consciência e no-lo ensinam citando a
promessa que dela lhes fez Jesus e descrevendo a forma pela qual ela se
realizou após sua ressurreição. Na condição de Apóstolos e profetas, eles anunciam
tudo o que Deus quer que saibamos acerca da realização da profecia (1Jo,
1,1-3;4,6), enquanto os evangelistas o sintetizam nos seus escritos,
segundo a mais pura tradição da reflexão sapiencial em Israel.
Pode-se resumir, segundo o seguinte esquema, a doutrina que os Apóstolos nos transmitiram:
Pode-se resumir, segundo o seguinte esquema, a doutrina que os Apóstolos nos transmitiram:
1º) O Deus criador é Espírito (Jo 4,24) que se manifesta
pela ação do Pai e, até de forma visível, pela ação do Filho (perspectiva
inspirada por Is 40-41).
2º) O Deus criador, não abandona o homem aos seu destino
de morte; o socorre (Prece eucarística VII), para que se revele em toda a sua
Bondade, pela fidelidade a si mesmo. A largura, a altura e a profundidade do
seu amor se manifestam em Jesus, o Filho que o Pai consagra e envia. O Justo leva
à perfeição a humanidade assumida pela encarnação e pela obediência até a morte
de Cruz. Dessa forma leva consigo os seus no triunfo, enquanto arrasta
acorrentados, atrás de si, Principados, Potestades, Tronos Dominações e Virtudes.
Anjos, Arcanjos e Querubins o servem. E os Serafins o adoram.
3º) A natureza do Redentor é anunciada por Is 7,14: Jesus
é o Emanuel, prefigurado pela Descendência da Mulher (Gn 3,15), por Noé, o
Justo que, pela arca, salva o Resto.
4º) Israel é o povo que Deus escolhe para realizar a
salvação da humanidade (a universalidade da salvação e a vocação de Israel são
intuições que devem ser atribuídas à reflexão sapiencial dos homens de fé do AT,
que a fundamentaram nos anúncios proféticos).
5º) No livro do Êxodo, a intuição sapiencial desenvolve a
condição de escravidão em que o homem caiu por causa da sua rebelião. Deus
mostra de que forma realiza a libertação do homem da escravidão, enquanto
peregrina rumo à terra prometida. É a retomada de Gn 3 onde a história da
humanidade é retratada, de forma paradigmática, pela alegoria de Adão e Eva no
Éden. O sentido catequético das suas narrativas é lembrado pelo Deuteronômio
(Dt 31,16-18) e explorado pelo autor da Carta aos Hebreus (Hb 3-4).
À luz da experiência do
exílio, os compiladores do manual teológico, enquanto utilizam parêneses
catequético-sinagogais, descrevem a intervenção de Deus em favor da humanidade
escravizada pela Cidade terrena (Ap 11,8). A História religiosa de Israel,
neste caso, se torna paradigmática em relação à história da humanidade que Deus
quer salvar. A ação irresistível de Deus terá como memorial perpétuo a Páscoa.
Deus faz atravessar o Mar Vermelho, enquanto o seu Espírito conforta Israel. No
Monte Sinai é celebrada a aliança selada com o sacrifício e a aspersão do sangue
dos animais sacrificados. O maná é o alimento que Deus dá para o sustento do
seu povo. A tenda marca a presença do Deus de Israel que já esteve no meio do
seu povo a partir da consagração do templo de Salomão.
O Levítico é incluído no Pentateuco
para registrar as leis do culto. O livro dos Números é uma complementação do
Êxodo, na condição de coletânea de parêneses catequético-sinagogais.
O Deuteronômio apresenta, em forma de
exortação, tudo o que foi ensinado pelo Gênesis, Êxodo, Levítico e Números. Em relação a tudo o que foi ensinado
pelos livros que o precedem é uma coletânea de reflexões atribuídas a Moisés
que visam ressaltar a grandeza e a importância dos ensinamentos. É lembrado a
Israel o privilégio de conhecer o único Deus. Por isso, deve fugir da
idolatria. É lembrado a Israel que deve observar os mandamentos de Deus,
condição para lhe agradar e ser abençoado por ele. As lembranças das
peregrinações e dos acontecimentos de Êxodo e Números têm esta finalidade.
6º) O livro de Josué, dentro da compilação da Bíblia,
apresenta o momento do seu enredo histórico em que se realiza a promessa da
terra por parte de Deus. De fato, é exaltação do que a reflexão sapiencial
considera a ocupação da Palestina que se deu em virtude de migrações de tribos
que acabaram constituindo a confederação das mesmas sob a égide de Saul, Davi e
Salomão. Celebração épica que reconhece o dom da terra que Deus fez a Israel.
Retoma, neste caso, o conceito teológico apresentado quando da vocação de
Abraão (cf. Cr 20,7-8).
7º) O livro dos Juízes está atrelado à teologia do Êxodo,
enquanto sublinha ainda mais a compaixão,a paciência e a bondade do Deus de
Israel com o seu povo.
(8) 1-2Sm; 1-2Rs descrevem
a degeneração de Israel provocada pela conduta de reis, juízes, ricaços
prepotentes, sacerdotes displicentes e povo idólatra. Condição que provocou a
reflexão que encontramos em Gn 3 e a consequente literatura religiosa do Êxodo,
Números, Levítico e Deuteronômio, material literário que ajudou o autor do Apocalipse
a escrever Ap 8-9.
(9) Os Profetas revelam a presença do Deus de Israel que,
segundo a sua ação onipotente e sapientíssima, é capaz de regenerar um povo
idólatra até torná-lo instrumento de salvação para todos os outros povos.
(10) O Livro de Daniel sintetiza em si todos os elementos
deste processo chegando até a apresentar o desfecho definitvo. A sua teologia é
levada às suas últimas conseqüências pelo Livro do Apocalipse.
(11) Os livros sapienciais revelam a perfeição do pensamento
religioso do povo judaico, claro sinal de uma ação do Espírito.
(12)
Para a Catequese Apostólica, a Igreja é o Novo Israel que tem sua origem na
ação de Jesus, o grande profeta que
surgiu em Israel e que revelou ser o Justo que não podia conhecer a corrupção. Ele
é a Pedra que os construtores rejeitaram e que tornou-se a pedra angular.
(13)
A Igreja Apostólica vive a sua história sob a lida de Jesus, “que esteve morto,
mas agora está vivo” (Ap 1,..), instruída pelo Espírito, santificada pelos
sinais sacramentais do Batismo, Eucaristia, Confirmação, Perdão dos pecados,
Ordem, Unção dos enfermos, Matrimônio.
13)
A linguagem bíblica da Catequese Apostólica
É
por meio dos escritos dos autores finais da Bíblia, isto é dos autores do NT
que podemos melhor advertir qual é a linguagem que os autores dos livros nela
contidos adotaram.
O
Evangelho de São João é uma composição do fim do 1º século. O seu autor é um evangelista-doutor
que agiu segundo um carisma específico, como sugere Ef 4,11. Ele tinha diante
de si um ensinamento apostólico que tinha tido o seu início com a pregação de
São João e que tinha conhecido uma evolução através das reflexões ao longo das
assembléias dominicais, onde a Palavra meditada servia para a exortação e a
admoestação. No Evangelho de São João vemos uma tipificação daquele processo
que Paulo, na sua Carta aos Romanos, descreve presente na comunidade de Roma e
que quer promover através da sua reflexão. O material da igreja de Éfeso foi o
da catequese de João.
O
Prólogo é a apresentação de Jesus há decênios contemplado na condição de Senhor
da igreja, exatamente nas condições segundo as quais é descrito nos quadros das
aparições à Maria Madalena, aos Apóstolos reunidos no Cenáculo e quando da sua
volta de uma infrutuosa pescaria, depois de uma noite passada num barco sem
nada pescar. O Prólogo quer ressaltar as condições divinas de Jesus, o
Unigênito Deus que vive no seio do Pai, voltado para o Pai. Segundo o que diz
Gn 1,1-3 em linguagem antropomórfica, ele é a Palavra criadora, que sai da boca
do Pai juntamente com a potência do Espírito e que suscita a vida. Na condição
de Luz, ele veio ao mundo para iluminar os que jazem nas trevas e na sombra da
morte e para, dessa forma, “guiar nossos passos nos caminho da paz” (Lc 1,79).
Acrescentou à graça do caminho da Lei, que o Deus de Israel concedeu ao seu
povo por meio de Moisés, a reconciliação e a santificação segundo o Espírito da
Verdade, tornando possível o nosso conhecimento de Deus.
A
obra da “Palavra da Vida, que é Vida, Vida eterna” (1Jo 1,1-2), após o Prólogo,
nos é apresentada através do quadro do precursor, João Batista, com a sua
mensagem acerca d’ Aquele que vinha depois dele, mas que já existia antes dele,
que batiza no poder do Espírito, porque ele é o Filho de Deus (Jo 1,30-34). É
claro que os elementos do quadro são construídos pelo evangelista, segundo a
sua habilidade literária. Constitui-se no enredo histórico que lhe permite a
exposição clara e abrangente da pregação de João Batista. É o seu anúncio de
cunho doutrinal que deve ser captado por nós.
Seguem-se,
então, três quadros sob a luz de uma metáfora consagrada na literatura profética, qual é aquela do Dia
do Senhor, lembrada através de uma tríplice formulação, para indicar que
estamos diante de uma ação divina. O protagonista desta ação é o “Cordeiro de
Deus que tira o pecado do mundo” (1,29), Aquele que os próprios discípulos de
João são exortados a seguir para ficar com ele, porque, como anunciam as
Escrituras, ele é o Messias (1,41.45). Ele terá que ser conhecido, como lembra
o próprio Jesus, através da figura divino-messiânica do “Filho do Homem” (1,51),
do qual fala o profeta Ezequiel (1,25-28; 11,22-23) e, como lembra o
Apocalipse, o profeta Daniel (7,13-14).
O
quadro das Bodas de Caná quer ilustrar de que forma se realizará a manifestação
da Glória do Filho do Homem. Será como o “banquete das núpcias do Cordeiro”,
tinha dito o autor do Apocalipse em 19,9. Não é difícil, de fato, advertir a
relação proposital, que o evangelista estabelece, das Bodas de Caná com a Morte
de Cristo, momento em que Jesus se torna o Templo da Glória de Iahweh, o Filho
do Homem, de cujo lado direito transpassado pela lança sai sangue e Água. É o
Templo de que fala Jesus quando lança o desafio aos anciãos, interpelado acerca
do seu gesto de expulsar os vendilhões do templo de Jerusalém: “Destruí este
Templo e Eu em três dias o reedificarei” (2,19).
Notamos,
até aqui, como a linguagem é figurativa e como, pelos quadros que ela apresenta,
anuncia uma doutrina sempre precisa acerca de Jesus. Vai dele tecendo as
prerrogativas divino-messiânicas para nutrir a nossa fé em Jesus “Messias,
Filho de Deus, para que crendo nele tenhamos a vida em seu Nome” (Jo 20,31). A
Pessoa de Jesus é apresentada, em seguida, na sua condição de Filho do Homem,
fonte do Espírito, enquanto é “elevado da terra”, de Filho a quem o Pai
entregou todo poder, o Esposo que está com a Esposa (Jo 3,29). Em Jo 4, é
apresentado como o Messias que, pelas suas palavras que contêm o Espírito sem
medida, oferece a Água que dessedenta de forma definitiva, o Filho que, diante
da abundância de messes que o sacrifício da sua vida produzirá, mostra ter uma
única aspiração, aquela de cumprir a vontade do Pai. Jo 5 é doutrinal, enquanto
mostra Jesus anunciando abertamente a sua condição divina. O pretexto, contudo,
é o sinal da cura do paralítico da piscina de Betesda. A característica de uma
literatura, segundo a linha da reflexão sapiencial em Israel, aparece clara,
também, na catequese de Jesus sobre a Eucaristia (Jo 6). O quadro da
multiplicação dos pães é construído em paralelo com o momento em que Deus
manifesta a sua Glória e revela o seu poder quando dá o maná ao povo faminto
que peregrina no deserto, enquanto é lembrado ao homem de guardar o repouso
sabático (Ex 16). As figuras de Elias e Eliseu que multiplicaram os alimentos
para muita gente, ressuscitaram mortos e até andaram sobre as águas, corroboram
o intuito catequético da narrativa de João, que parafraseia a narrativa do
mesmo sinal que encontramos em Mt 14.
O
enredo histórico perde de intensidade e se torna um mero pretexto para
apresentar a doutrina de Jesus nos capítulos que se seguem porque os seus
ensinamentos são transmitidos através de intensos debates com os mestres da
Lei. É-nos dado, então, constatar quanto a Igreja Apostólica discutiu de forma
destemida a sua fé e conseguiu apresentar aos defensores da tradição judaica a
legitimidade do seu reconhecimento da messianidade de Jesus, tornada fundamento
da sua fé na divindade por ele proclamada da sua Pessoa. Esta segurança
doutrinal é aquela que a leva a produzir as narrativas da Paixão, Morte,
Ressurreição e Ascensão ao céu.
At 1,1-11, que lemos no dia da
Ascensão do Senhor, revela como, de fato, Lucas, constrói narrativas
catequéticas a partir do momento que desloca de 40 dias a Ascensão do Cristo
Senhor, em relação ao dia da sua ressurreição. A própria apresentação da
Ascensão é feita com elementos que já encontramos na narrativa da ressurreição
em Mateus e com uma forma explicativa da natureza do Reino que os fiéis devem
esperar. A esse respeito, é possível notar quanto Mateus é superior,
linguisticamente falando, a Lucas, de origem grega, que dele aprendeu a
linguagem da tradição sapiencial judaica.
Hb 9-10 nos revelam em que
consideração o autor da carta tinha os relatos do Êxodo acerca da Tenda. Para
ele eram narrativas catequéticas. Há exegetas que detectaram, nos detalhes da
construção da tenda, as medidas do templo de Salomão. O autor da Carta aos
Hebreus sabia, portanto, que os detalhes que ele ia lembrando, já eram, para o
autor das narrativas que encontramos no Êxodo, elementos fantasiosos de um
templo que ele tornava presente em forma de tenda enquanto criava uma parênese catequética
a ser proclamada na sinagoga. Isto significa que nós temos que entender que a
linguagem figurativa tem uma finalidade teológica nas Escrituras. Ao autor de
Hb não interessa saber se teve ou não uma tenda no deserto. Ele simplesmente a
cita porque a considera um elemento valioso para tratar da superioridade do
sacerdócio de Cristo em relação ao sacerdócio da Lei judaica.
A atitude do autor de Hb nos leva a
pensar acerca da atitude de Mateus quando escreve o seu evangelho. Vemos que
utiliza a genealogia (Mt1), o midrash (Mt 2), os quadros das tentações (Mt3). Advertimos
que o Discurso da Montanha tem uma estrutura teológica construída para comparar
Jesus a Moisés e mostrar a sua autoridade divina (Mt 5-7). Com que intuito,
então, nos perguntamos, Mateus narrou a multiplicação dos pães? Certamente, em
Êxodo, a narrativa paralela do maná é catequética. O prova Dt quando a ela se
relaciona (Dt 8,3). Mt que escreve segundo a forma da tradição sapiencial, quer
simplesmente apresentar, pela sua narrativa, um ensinamento de natureza
catequética. Vemos que os termos utilizados visam ilustrar os gestos da
instituição da Eucaristia, na última ceia. Tudo isso se torna evidente quando
lemos Jo 6 que relaciona a Eucaristia ao pão descido do céu que Moisés garantiu
para o povo de Israel, no deserto (Jo 6,32.58).
As considerações até aqui
apresentadas nos permitem pensar na linguagem bíblica que encontramos na
Escritura em termos de linguagem figurativa, enquanto apresenta uma teologia.
Esta linguagem tem um nome específico: “mashal”. Ele é um gênero literário que
inclui diversas formas literárias quais a parábola, a metáfora, a alegoria, a
narrativa midrashica, o provérbio, o enigma, etc.
A linguagem bíblica apresenta-se no
texto escrito que reflete um elemento da tradição oral. Dessa forma ela reflete
uma mentalidade semítica, onde prevalece a linguagem figurativa, como forma de
expressar um pensamento. Ela não deixa de ser lógica, pelo contrário, ela é uma
linguagem capaz de apresentar os conceitos com todas as suas nuances.
A linguagem figurativa da Bíblia
começa a se apresentar com a narrativa da criação, pela qual, o autor da Bíblia
quer falar do Deus da história de Israel, dele ressaltando a condição de
Criador, enquanto celebra os seus atributos de poder, sabedoria, beleza e
bondade, através da obra da criação.
A linguagem antropomórfica, um
aspecto da linguagem figurativa, consegue, de forma única e original,
relacionar o homem com Deus, a ponto de, por ela, permitir ao homem uma
compreensão luminosa do seu Criador: ele é Imagem e Semelhança da sua criatura.
A partir deste princípio, é possível falar de Deus como se fosse um homem que
decide, manifesta o seu pensamento e o realiza com o sopro da sua boca. Sb 13,5 define, nos termos da lógica grega, que o
homem é capaz de chegar ao seu Deus por “analogia e sublimação”.
Na linguagem figurativa da Bíblia
devemos sempre advertir esta sua condição para termos sempre presente que se
trata de uma linguagem eminentemente teológica. Temos que reagir à tendência de
interpretá-la como uma forma de simples narrativa que nos informa sobre
elementos que devemos assumir como históricos. Não é história a apresentação do
Éden. Através de elementos lendários, o autor quer apresentar Deus que, em
relação à sua criatura, no momento de chamá-la à existência, a ela proporciona
as condições do seu crescimento: o reconhecimento da sua dependência, estando o
mundo à sua disposição para reinar sobre ele. Com o quadro da criação da
mulher, o autor quer simplesmente definir as condições de relacionamento e a
igualdade, em dignidade, do homem e da mulher. Para isso, utiliza o que a
realidade da vida humana lhe sugere.
A linguagem bíblica de Gn 3 explora
a alegoria que descreve, em primeiro lugar, o que de fato aconteceu a Israel
quando se esqueceu do seu Deus para dar ouvido à voz dos ídolos. O autor da
Bíblia a utiliza para descrever a rebeldia do homem ao seu Criador, esquecido
dos seus benefícios e da obrigação da sua dependência (Cf. Dt 31,16-18).
A essa altura já começamos a
advertir a complexidade das verdades teológicas que a Bíblia quer tratar.
Notamos quanto a linguagem figurativa contribui para apresentá-las com precisão
e propriedade. A história de Israel é paradigmática. A religião da qual a
Bíblia quer falar diz respeito à humanidade. Deus reage segundo a natureza que
a criação revelou Ele possuir. A Bondade se revelará pela Misericórdia através
de uma redenção que se realizará por uma Descendência que o próprio Deus
suscitará.
Aparece
a genealogia que, em relação à descendência de Caim, representa a história do
homem com a sua progressiva degeneração. Esta o levará à morte. Em relação ao
povo que Deus quer suscitar, quer ilustrar a sua fidelidade.
O hino à Descendência (Gn 5) a celebra
com a tríplice benção concedida aos primeiros dez patriarcas. A linguagem
utilizada é a da simbologia numérica. Seja em relação a esta como em relação ao
dilúvio estaríamos equivocados se interpretássemos os seus elementos como
informações históricas.
Na Bíblia, aquilo que consideramos
história é simplesmente um enredo histórico que o autor constrói para
apresentar conceitos teológicos. Não podemos pensar em um Noé acolhendo na sua
arca toda espécie de animais da terra. Consequentemente, temos que advertir que
quando Jesus cita Noé, está se referindo ao ensinamento da narrativa, sem
pretender afirmar a sua historicidade (Mt 24,38). O autor da compilação da
antologia bíblica quer simplesmente apresentar a sua teologia. A liga à
Descendência da qual Noé é o décimo elo. Dele, através de Sem, surgirá Abraão,
o ancestral do povo de Deus.
Toda a estrutura teológica montada
dentro de uma moldura cronológica é fruto de uma reflexão sapiencial estimulada
pelos escritos proféticos. Quando a estudamos, notamos que a história da nossa
redenção é fruto da ação pedagógica do Deus Criador. Depois de ter apresentado
em Gn 1-11 o Criador e as linhas fundamentais segundo as quais desenvolverá o
seu plano, o autor da Bíblia sintetiza a origem do povo hebraico com a apresentação
de três personagens: Abraão, Isaac e Jacó. Trata-se de idealizações. Abraão é
modelo de cada hebreu na obediência da fé; Isaac é o filho que vive a
obediência até a imolação. Jacó é a figura gloriosa de Israel com os seus doze
filhos, chefes das doze tribos de Israel. A linguagem é teológica. O enredo
histórico carrega o ensinamento teológico através de narrativas. A história das
migrações nos revela a natureza de Gn 12-50, enquanto nos diz que a ocupação da
Palestina ocorreu ao longo de séculos. Tribos nômades foram gradativamente se
estabelecendo naquela terra suplantando os povos que ali habitavam. Eram tribos
de religião politeísta. Quando nela prevaleceu o monoteísmo foi natural o
reconhecimento de uma ação providencial que os estabeleceu naquela terra. A
celebração épica da conquista é lembrada em Josué. A colocação de Js e Jz na
Bíblia segue a linha teológica, enquanto Êx Lv Nm e Dt estabelecem o enredo
histórico que, por sua vez, sustenta toda uma narrativa catequética que retoma
e desenvolve os conceitos teológicos apresentados no prefácio da Bíblia:
pecado, escravidão, promessa, libertação, pátria.
A linguagem que se apresenta bem
caracterizada ao terminarmos a leitura de Jz é aquela que deve ser assumida
pelo leitor também quando lê 1-2Sm; 1-2Rs. A linguagem bíblica é linguagem
teológico-figurativa.
A linguagem do NT é da mesma
natureza. Nos evangelhos encontramos o enredo histórico que situa a ação divina
de Jesus, assim reconhecida à luz da sua manifestação gloriosa pela ressurreição.
As obras da sua vida terrena são lembradas, ou lhe são atribuídas para, através
delas, alcançar o ensinamento, segundo a doutrina que ensinou. Não é de
interesse dos autores relatarem informações que nos ajudariam a localizar fatos
ou a determinar momentos. Aos escritores interessa comunicar uma doutrina que
os detalhes dos quadros que eles criam ajudam a entender. Isto não significa
que tudo não esteja fundamentado em núcleos históricos. Pelo contrário, é o
núcleo central da Encarnação, momento em que “chegada a plenitude dos tempos,
Deus enviou o seu Filho nascido de mulher... para que recebêssemos a adoção
filial” (Gl 4,4), que, pela sua historicidade, sustenta a validade do
ensinamento que, em casos específicos, dependem de fatos reais, impossíveis a
serem desligados do ensinamento: a sua vida pública, o testemunho de João
Batista, o anúncio profético da sua Morte, segundo as Escrituras, o túmulo
vazio que levou a entender as Escrituras, no sentido de que Jesus devia
ressuscitar dos mortos e ser entronizado à direita de Deus, a ação do Espírito
na vida da Igreja.
Mateus quer falar de Jesus a quem
foi entregue todo poder. Dele fala a partir da sua “origem”. Esta transcende
toda expectativa, qual apresentada pela genealogia de um povo escolhido para
anunciar a todos os povos o verdadeiro Deus e a Salvação, porque Maria concebe
pela ação direta de Deus. A sua concepção só tem adequada explicação à luz da
profecia (Is 7,14;Gn 3,15) que, por sua vez, tem sua explicação somente no
anúncio do anjo Gabriel à virgem de Nazaré (Lc 1,27). As narrativas do sonho de
José e da Anunciação devem ser apreciadas pelo seu valor teológico,
fundamentado em fatos da história da salvação, qual intuída pela mesma reflexão
sapiencial que produziu Gn 3. A visita dos Magos é um midrash que tem como
núcleo histórico o nascimento de Jesus e a pessoa de Maria, sua mãe (Mt 2). O seu
anúncio, contudo, é a universalidade da realeza daquele que devia nascer em
Belém da Judeia. Neste caso, dizemos que, historicamente, não deve ser
registrada esta visita de magos. Na narrativa tudo tem sentido alegórico. Isto
vale, também, pela fuga em Egito. Os dois quadros têm a sua explicação na
teologia do Apocalipse que evoca a teologia de Daniel (Dn 7-8). A leitura de
Mateus deve continuar sempre tendo presente o sentido teológico das suas
apresentações de Jesus e do seu ensinamento.
Em João temos a confirmação de que
estamos, quando lemos a Bíblia, diante de uma linguagem sapiencial quando os
evangelistas nos apresentam Jesus na condição de realizador da profecia, para
que, “crendo nele, tenhamos a vida em seu nome” (Jo 20,31). Jesus é Deus, a
Palavra criadora que deu a si mesma uma tenda para habitar entre nós, o
Unigênito Deus cheio de graça e verdade. João Batista é o seu precursor que o
anuncia na condição de Cordeiro que tira o pecado do mundo. Chegou o Dia do
Senhor. Esse dia é caracterizado pela alegoria das Bodas de Caná, que têm a sua
realização “no terceiro dia” (Os 6,2). O esposo que vem chegando presenteia a
sua esposa com a água transformada em vinho. É a manifestação da Glória que
será plena na “Hora”.Preparam-na os sinais que Jesus realiza.
As
palavras de Jesus, como conclusão do gesto da purificação do templo (Jo
2), confirmam o sentido da narrativa das Bodas de Caná: “...em três dias o reedificarei”.
Em relação a Mateus, o evangelho de João nos certifica a respeito da
interpretação da multiplicação dos pães. Ambas as narrativas (Mt 14,21; Jo 6)
querem ser uma catequese sobre a Eucaristia: a de Mateus, em vista da sua
instituição; a de João, para ilustrar o sentido do Memorial da Morte do Senhor.
Jesus evoca o maná que Moisés deu como alimento. Dt 8,3 o lembra na sua
significação espiritual. Jesus põe “a sua carne dada para a vida do mundo” (Jo
6,51) em relação a este elemento da narrativa catequética de Ex 16. A
insistente significação simbólica lembrada pelos evangelistas em relação à
atitude de Jesus, aos seus gestos e palavras, à ação dos apóstolos, nos alertam
quanto ao sentido catequético da narrativa que se inspira na lembrança dos gestos
de Elias e Eliseu.
A partir do momento em que especificamos
a natureza da linguagem bíblica, os textos adquirem seu preciso sentido. Os
evangelhos são apresentações de blocos catequéticos que têm como figura central
a Pessoa divina de Jesus. João tem até um tema único para a sua obra: Jesus é o
Filho do Homem. Trata-se de um título que reúne em si as características da
novidade, que somente os Apóstolos conheceram, com as profecias que anunciaram
o Salvador.
A Carta aos Hebreus e o Apocalipse
são textos que muito nos ajudam a entender a linguagem bíblica. Notamos que os
autores têm a clara percepção do sentido exato daquilo que eles citam das
Escrituras Sagradas. Quando o aplicam à Pessoa de Cristo, simplesmente assumem
o sentido teológico daquilo que citam, sabendo perfeitamente que, em si, é parte de uma narrativa catequética.
A linguagem bíblica deve ser,
particularmente, advertida diante do mistério da ressurreição de Jesus. Em
primeiro lugar, o sinal humanamente constatado é somente aquele do túmulo
vazio. Vemos que para João ele é o ponto de partida que remete quanto ao
mistério, à interpretação que as Escrituras oferecem. Jesus ressuscitou, como
indica o túmulo vazio porque, de fato, se realizou tudo o que as Escrituras
falam quando anunciam um Descendência que esmagará a cabeça da antiga serpente,
do diabo, satanás. Contudo, logo deve ser dito que a ressurreição de Jesus nada
tem a ver com a ressurreição de Lázaro, um homem que voltou a recuperar as
condições de uma forma de existência que, necessariamente voltaria a cessar. A
ressurreição de Jesus implica a posse de uma condição gloriosa, definitiva, que
envolve a sua humanidade, também, como aponta o sinal da tumba vazia. Os
elementos que são utilizados para criar um quadro plástico, catequético,
portanto, querem, simplesmente, afastar a idéia de subtração mediante violação
de um sepulcro: o lençol dobrado, o sudário num lugar a parte. Isto se torna
ainda mais evidente quando é criado o quadro dos anjos que dialogam com as
mulheres. A linguagem figurativa de Mateus e Marcos, que talvez nos escape por
causa da sua perfeição literária, é evidenciada pela forma com a qual Lucas a
traduz para nós, sobretudo quando multiplica as aparições acrescentando,
àquelas experimentadas pelas piedosas mulheres, a aparição de Jesus aos
discípulos de Emaús. A linguagem mistagógico-catequética de Lucas, de fato, nos
permite captar o ensino doutrinário que a Catequese Apostólica quer nos
transmitir através dos escritos dos seus evangelistas. A condição gloriosa dos
anjos da ressurreição visam nos esclarecer sobre a realidade escatológica que
se realizou segundo o Plano sapientíssimo de Deus que glorificou o Adão
verdadeiro. Ele deve ser encontrado no topo do Monte das Oliveiras, onde poderá
ser reconhecido no esplendor da Glória de Iahweh, porque se apresentará na
condição do Filho do Homem de Ez 1,26-28, digno de toda adoração. É lá que
entenderão quem é o Senhor da igreja, aquela que ela celebra pelo Memorial da
sua Morte, que ele instituiu na ceia pascal. O Apocalipse é o texto que nos
mostra como o podemos contemplar na sua condição atual, exatamente, pelas
Escrituras proclamadas no Dia do Senhor. Naturalmente, serão capazes do
contemplar Jesus Cristo em todo o seu poder e glória aqueles que a ele estão
unidos na realeza, em virtude do testemunho que dão da sua palavra e da sua
pessoa (Ap 1,9), perseverando até o fim (Mc 8,38).
Lc
24
24,1
A informação inicial parece ser um dado objetivo não fossem aqueles “aromas”
que as piedosas mulheres estão carregando e a lembrança de que se trata do
“primeiro dia da semana”. Os dois dados nos orientam a pensar em como os
cristãos devem santificar o “Dies Domini”
que o Apocalipse apresenta com todas as letras como o dia em que, reunidos
em assembléias litúrgicas, os fiéis de cada comunidade devem fazer memória do
Senhor da Igreja, o “Filho do Homem que posicionado no meio dos candelabros de ouro”
(Ap 1,13), a partir da escuta da Profecia (v. 3). É nela que encontrarão aquele
que alcançou uma condição gloriosa após a consumação do sacrifício da sua vida
na obediência até a morte de Cruz (Lc 24, 44-52). De fato, é pela Profecia que
os discípulos de Emaús percebem seu coração arder, enquanto Jesus explica as
Escrituras: Moisés, Salmos e Profetas.
24,2 O sepulcro vazio é o sinal. O cadáver a
ser embalsamado lá não se encontra. Isto significa que não pode ser encontrado
entre os mortos aquele que está vivo. É a revelação dada do alto para aqueles
que pensam em Jesus de forma terrena. Mas ela não é compreendida.
24,7
Embora tivessem ouvido Jesus citar explicitamente as Escrituras, as mulheres
não tinham chegado a compreendê-las. É o mesmo que acontece para os fiéis que
se debatem nos seus arrazoados que resultam ser vãos. É inútil querer explicar
um mistério com as idéias amadurecidas pela interação com a realidade terrena.
Como podiam entender quem esperava Jesus restaurar o reino de Davi para se
tornarem seus ministros. Não fugiram todos eles confusos, incapazes do
compreender o poder divino que se manifestava na Pessoa do seu Mestre. Não podiam
entender, enquanto Jesus, preparado por uma vida de reflexão e oração, sabe ver
na sua Paixão o momento em que deve “beber o cálice que o Pai lhe preparou” . É
isto que o leva a dar os passos versus a
sua glorificação que redundará em glorificação do Pai.
24,11
Também Pedro não entende. Nele não amadureceu o amor não obstante o seu ardor.
O prova o fracasso quando do momento do testemunho. O raciocínio humano é ímpar
diante do divino.
24,13
Estão na mesma condição os discípulos que reconhecem ter sido Jesus “um Profeta
poderoso em obras e palavras”, mas que não sabem interpretar a sua morte,
mostrando, até depois da infame condenação sofrida pelo seu Mestre pelas mãos
dos sumos sacerdotes e mestres da Lei, respeitoso apego às suas tradições
religiosas.
24,22
O elemento sobrenatural que deveria esclarecê-los acerca da Pessoa de Jesus é
demais tênue e não ajuda: “É verdade que as mulheres viram anjos “os quais
asseguravam que ele está vivo”
24,25-32
É neste versículo que começa a catequese lucana. É pela Profecia que podemos
ver claramente qual foi o destino de Jesus que foi morto, uma vez que ela nos
ensina, com todas as letras que “o Cristo devia sofrer para entrar na glória”
(cf. Hb 2): Servo de Iahweh; Serpente levantada da terra; o Justo sofredor. É a
Escritura que nos leva a aceitar aquilo que aflora pelos gestos de Jesus,
quando repetimos o que ele fez na última Ceia, porque então, o sinal
sacramental do pão partido coroa a fé amadurecida pelo entendimento com a graça
merecida pelo sacrifício, agora, reconhecido. A cruz de Cristo se tornou Poder
de Deus, Sabedoria de Deus (1Cor 1,2..).
24,34
A aparição a Simão é algo atestado por Paulo que certamente pensa que aquilo se
deu da forma que a ele aconteceu. Trata-se de um fenômeno sobrenatural que
marca de tal forma o sujeito que o torna capaz de testemunhar de forma inequívoca
que, realmente, ele esteve em contato com alguém que veio visitá-lo do além.
24,36
A narrativa da aparição ao grupo dos Apóstolos parece ser uma narrativa
didática que apresenta os pontos doutrinais de uma ressurreição que as
aparições às mulheres que recebem a ordem de relatar o acontecimento a Pedro e
ao próprio Pedro já indicam, tendo como fundamento o túmulo vazio. Isto pode
ser deduzido por Jo 20, 1-9. Como ensina a catequese sobre a Eucaristia, em Jo
6, a Igreja deve reconhecer na “carne dada para a vida do mundo” (6,5..), Jesus
que anunciou a sua imolação e que, por ela se tornou o “Filho do Homem”,
sentado com o Pai no seu trono (Ap 3,..), porque, realizada a purificação dos
pecados, sentou-se à direita da Majestade” (Hb 1,3), tendo recebido “um Nome
que está acima de todo nome.
24,50
A clara definição do lugar a Ascensão, indica o intuito catequético de associar
o monte àquele que a Glória de Iahweh escolhe quando abandona a cidade para ir
morar no templo que ela mesma construirá para si diante do monte de Sião,
porque o seu templo conheceu a “abominação da desolação”. (Ez 10,..).
Certamente as narrativas catequéticas de Lucas, e as narrativas de cunho
apocalíptico de Mateus, no que diz respeito à ressurreição do Senhor,
inspiraram a apresentação, ainda mais sofisticada que encontramos em João que,
todavia, é aquele que mais claramente estabelece o ponto de partida para
apresentar a doutrina acerca do mistério de nosso Senhor Jesus Cristo,
“constituído abertamente, Filho de Deus com poder, em Espírito de santidade (Rm
1,4).
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