Manual de teologia bíblica




           Manual de teologia bíblica





Índice

1)  Premissas
2)  A Bíblia, manual antológico da Tradição
3)  A linguagem literária da Bíblia
4)  A linguagem sapiencial
5)   A linha teológica da Bíblia
6)   Inspiração
7)    Gêneros literários
8)  O enredo histórico
9)  Os dados historiográficos de Israel
10) Gn 12-50 As "origens" de Israel
11) Origem da nossa religião
12) Reflexão sapiencial da Igreja Apostólica
13) A linguagem bíblica da Catequese Apostólica
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          1) Premissas

          Ia) O processo do conhecimento

        Estaríamos perdendo o nosso tempo se estivéssemos praticando uma religião que não nos relacionasse com o Deus Único, sobretudo se ele não existisse.
Para chegarmos a ter esta certeza, devemos assumir, como ponto de partida, o que nos ensina a filosofia.
  Ela nos prova, em primeiro lugar, a realidade objetiva da nossa existência. Descartes afirma: “Cogito, ergo sum”(= se penso, existo). Em segundo lugar, Aristóteles e São Tomás de Aquino definem qual é o processo de conhecimento: ele tem como princípio a nossa interação com o mundo exterior (Piaget provou cientificamente esse processo). A figura imaginativa, que é conseguida pela experiência sensorial, é processada pelo intelecto. Surgem as ideias que Kant chama de categorias. Pela conexão que o homem é capaz de atuar entre as categorias, é produzido o pensamento, que formula hipóteses. Quando as hipóteses são testadas, o homem chega a um conhecimento objetivo da realidade. Quanto mais o homem aprofunda o seu conhecimento objetivo, tanto mais domina cientificamente, isto é, tanto mais se torna senhor da criação, e reina sobre ela.
 É por meio desse processo específico do homem que o Criador quer se revelar. São Paulo diz que o homem poderia ter chegado ao conhecimento de Deus a partir da contemplação da criação (Rm 1,19s; Sb 13,1-9). De fato, o Homem falhou e falha nesse processo, porque não aplica o processo do conhecimento de forma precisa. Acaba tirando conclusões antes mesmo de ter filtrado as impressões sensoriais e cria ídolos com a sua imaginação. As criaturas que ele contempla se tornam os seus deuses. Troca, como diz São Paulo, a Glória do Criador pela glória da criatura.
Para vir em socorro do homem, incapaz de conhecer Deus pela criação, o Criador se revela pela própria História do homem. Israel se torna o povo escolhido e, em favor dele, Deus opera prodígios. Quando, afinal, o povo hebraico se vê constituído num reino, com o seu templo, as suas leis, o seu culto, pela experiência que fez do seu elohim, tem a firme convicção que o seu deus é o verdadeiro Deus. A esta convicção subjetiva, Deus acrescenta a prova objetiva do profetismo. Pelos seus profetas Deus anuncia o que vai acontecer e o faz acontecer. Depois do exílio de Babilônia, o povo hebraico não tem mais dúvidas de que o seu Deus é o único existente. É o “Sou”, o Criador, o Senhor da História, o Santo a quem todos devem servir, excluído todo e qualquer outro ídolo (Is 40-41).
Os sábios de Israel refletem sobre os dados do profetismo e os aplicam à História do seu povo. Seus escritos sapienciais acabam descobrindo sempre mais os atributos de Deus e as causas do fracasso de Israel.
Com isso, Deus criou para nós um campo experimental com o qual podemos interagir e obter a prova objetiva da sua existência e a compreensão da doutrina do Desígnio de Deus sobre o homem. É pela reflexão dos sábios em Israel que é detectada a linha pedagógica de Deus, por ele atuada desde a escolha de Israel para ser o seu povo. Fundamentados na firmeza da pregação profética, os sábios desenvolvem a doutrina sobre o Criador e definem o caminho da realização do homem. A volta do exílio leva a conhecer que Deus é o todo poderoso que, por não querer se prevalecer do seu poder, permitiu que um Resto voltasse. Os sábios intuem, diante disso, qual é o Plano de Deus sobre o homem. A história de Israel torna-se paradigmática a esse respeito. Os sábios intuem, também, que Israel, porque conhecedor do Deus único e verdadeiro, é o povo de escolha. Gn 12-50 desenvolve este princípio doutrinário. Fala da “origem” do povo que Deus escolheu e da terra que ocupou. Liga a descendência deste povo ao Plano de Deus anunciando que um salvador surgirá entre os homens. Com o Êxodo descreve a maneira pela qual o povo de Deus, uma vez libertado, deve caminhar até a pátria prometida. Esta já era para o judeu “o lugar do repouso” no qual entram os que confiam em Deus e perseveram nas tribulações.
Esta maneira de interpretar a lição do exílio nos permite descobrir que o ensinamento doutrinal é comunicado por enredos históricos. A própria história dos reis, a partir de 1Sm é desta natureza.
Os livros didático-sapienciais mostram ainda mais claramente este tipo de literatura.
Provérbios e Sabedoria visam somente o aspecto moral e doutrinal.
          A escatologia de Daniel, por sua vez, é um ensinamento moral e doutrinal.
Os Salmos exploram o enredo histórico para cantar as maravilhas que o Senhor operou.
A literatura da Igreja Apostólica desenvolve-se segundo a tradição da literatura vétero-testamentária. Chega até a utilizá-la como linguagem para explicar que em Cristo se realizou a profecia, por ela acrescentando a apresentação da condição divina de Jesus que a sua ressurreição manifestou.

Quando os sábios aprofundam a sua reflexão sobre o Deus da criação conseguem descrever nele uma vida que transcende a nossa. Deus é a Bondade que, com Poder e Sabedoria, tudo criou. Em todas as coisas está essa marca trinitária. Mas é particularmente no homem que está a “imagem e semelhança” (Gn 1,27) com Deus.
Para apresentar uma análise do homem, os sábios se fundamentam na História de Israel, “o filho” que “Deus chamou do Egito” (Os 11,1), que, não obstante toda a predileção de Deus, logo caiu na idolatria. O homem só pode ter feito o mesmo com Deus, desde o início. Esquecido de todos os benefícios recebidos de Deus e da sua condição de criatura, que poderia desenvolver-se apenas em harmonia com o Criador prestando a ele o serviço da louvação e vivendo segundo os seus mandamentos, enveredou o caminho da idolatria, equivocado sobre da maneira de se tornar igual a Deus (Gn 3,5), e conheceu a degeneração pela multiplicidade das culpas (Gn 3-4).
A escolha que Deus fez de Israel faz com que o sábio deduza que, desde sempre, Deus, por livre desígnio de sua Bondade, determinou suscitar uma Descendência pela qual a humanidade seria resgatada do seu processo de morte. Ao longo dessa reflexão, os sábios produzem textos de conteúdo eminentemente profético (cf. Gn 3,15). De fato o seu sentido só pode ser entendido à luz da Redenção que Jesus Cristo, o Verbo encarnado, realizou. Advertimos, a essa altura, que Deus está utilizando uma terceira forma de se revelar e é aquela da reflexão sapiencial. Com isso notamos que Deus é fiel, em se revelar, à maneira pela qual o homem é capaz de conhecimento. No campo do mundo criado, o homem constrói o conhecimento pela formulação de hipóteses; no campo do mundo sobrenatural, pela comparação de verdades reveladas. Isto implica a inspiração. Compreendemos, portanto, quanto Deus respeita e valoriza a capacidade de entendimento do homem, e quanto o homem pode conhecer de Deus, caso aplique a sua reflexão àquilo que Deus revela de si pelos profetas, pela criação, pela história e por Jesus Cristo.
A Descendência prometida (Gn 3,15) permite ver que, embora Israel seja um povo privilegiado por Deus porque é o povo da Revelação, da Lei, da Glória, dos Patriarcas, ele é a forma histórica pela qual Deus quer perpetuá-la, até chegar o Redentor. Mais uma vez, o povo hebraico se torna paradigmático para mostrar de que forma o Redentor será o Cabeça do verdadeiro povo, da “raça escolhida e nação santa” (1Pd 2,9), que será a Igreja. 
Com a vinda de Jesus se renova o fenômeno profético, pelo qual Deus, de forma direta e extraordinária, se revela aos homens. Jesus atua na linha dos profetas, e é até testemunhado pelo último dos profetas, João Batista. Ambos, como profetas, são, juntamente com os outros profetas, testemunhas da existência de Deus. No nome dele, eles têm certeza que estão falando e anunciam um futuro que se realiza. Jesus, contudo, transcende a própria condição profética porque revela ser o próprio El. Ele é Iahweh, Deus que se revela pela Encarnação, o “Sou” que veio a este mundo para visitar o seu povo e tirar “os que jazem nas sombras da morte para guiá-los no caminho da Paz” (Lc 1,79), “com braço forte e grandes julgamentos” (Ex 6,3-6).
Em Jesus Cristo, a Revelação, que Deus iniciou pela História de Israel, acentuou pelos profetas, e que a reflexão sapiencial aprofundou pela reflexão, se torna plena. Mais uma vez, isso se atua no campo experimental adequado ao homem para que o homem, aplicando o seu conhecimento, possa chegar, à semelhança dos sábios, à verdade e, assim, servir o verdadeiro Deus. O primeiro esforço sapiencial é atuado pelos Apóstolos, expressamente enviados por Jesus para anunciar o Evangelho. Os Atos dos Apóstolos ressaltam, contudo, que o Espírito Santo assiste de forma peculiar a Pedro e a João com os dons da sabedoria e revelação (At 4,8). Vemos também que na Igreja surgem evangelistas que suprem a deficiência literária dos Apóstolos. São eles que redigem a pregação apostólica. Há verdadeiros sábios que aprofundam de tal forma os conteúdos da pregação apostólica que escrevem textos inspirados, à semelhança dos sábios do AT: Efésios, Hebreus, Apocalipse, 1Pd, 2Pd. O Apocalipse é um exemplo singular de reflexão sapiencial. Espelha-se em Daniel. Ao mesmo tempo utiliza com maestria toda a Sagrada Escritura chegando aos píncaros da reflexão sobre a revelação, sob iluminação do Espírito Santo, a ponto de nos falar da sorte dos santos. O autor atribui tudo a Jesus, Senhor da Igreja que fala pelo seu Espírito.
Com Jesus temos a recapitulação de toda a Revelação que Deus foi atuando ao longo da história do homem, particularmente pela escolha do povo hebraico. Contudo, com Jesus, Deus estende o conhecimento do homem à própria natureza de Deus. Ele é Trinitário. Dessa forma é possível uma releitura da Revelação que permite um conhecimento único de Deus. Mas, os conteúdos novos que Jesus Cristo traz, por si, transcendem todas as figuras que preparavam a sua vinda, de forma que ao fiel é dado conhecer o Criador de uma maneira sem precedentes. Ele é a criatura daquele que é a Bondade infinita do Ser e que sempre age no Amor. A Bondade possui uma vida transcendente, na qual as prerrogativas pelas quais a criatura humana se torna imagem do Criador, isto é, ser, saber e poder, são hipóstases. Delas, a Sabedoria, a Palavra, se fez carne para que o homem chegue a participar da natureza de Deus. Cristo Jesus tem em si a plenitude da Divindade da qual torna participante, antes de tudo, a humanidade assumida no seio de Maria, da forma mais plena, num processo de santificação, no qual ele atuou pela obediência até a Morte de Cruz. Por essa humanidade, que a Ssma. Trindade glorifica pela Ressurreição e Ascensão, o Espírito de Deus é comunicado à Igreja em plenitude, chamada para ser o povo de Deus herdeiro da vida eterna pela pregação apostólica e pela prática dos sacramentos, enquanto não cessa de celebrar os grandes feitos do seu Criador, particularmente no dia do Senhor.


           IIa) O fundamento último da nossa certeza
           
A partir do momento em que a Igreja nos apresenta o Cânon, estamos de posse de uma compilação teológica inspirada, apresentada de autoridade. A sua interpretação tem como fundamento o que a Igreja Apostólica nos ensina e que nós podemos conhecer através dos escritos que nos deixou. É evidente que a mesma Igreja que, de autoridade, nos apresenta os livros da Bíblia como canônicos é aquela que sempre deve orientar a interpretação dos textos, em virtude da autoridade que lhe é própria, até porque é a Tradição que guarda o sentido da fé, enquanto a Escritura é a sua antologia.
 Na visão da Igreja Apostólica há uma clara linha teológica que percorre a Bíblia toda e que pode ser resumida da seguinte forma: o homem, em lugar de se relacionar com o seu Criador na condição de quem, como criatura deveria reconhecer a sua condição de dependência, esquecido, como o filho pródigo, de todos os benefícios com que Deus o favorece, envereda o caminho da sua autodeterminação, o que provoca nele um processo de degradação moral, a ponto de merecer a sua destruição. Diante disso, Deus que, por definição, é a Bondade, fiel a si mesmo, vem em socorro da sua criatura e decide resgatá-la. Na verdade, em virtude da sua onipotência e infinita sabedoria, recria-a porque determina que ela se realize não mais segundo a simples relação de criatura com o seu Criador, mas como filha adotiva. Este processo começa a se atuar quando, ao longo da história de humanidade, Deus escolhe Israel para que seja o seu povo e leve o conhecimento do verdadeiro Deus a todos os povos. No tempo preestabelecido, isto se torna definitivamente possível em virtude de Jesus que na condição de Emanuel (Is 7,14), realiza em si a profecia da Descendência (Gn 3,15). O Israel novo que ele funda, tendo reconhecido nele a condição divina de Filho, anuncia a todos os povos que nele se realizou o que os profetas perscrutaram (1Pd 1,10). O anúncio profético está resumido na pregação de João Batista, o Precursor: Jesus é aquele que vem depois dele, mas que existia antes dele, o Eterno; ele vem com o Espírito Santo de forma que os homens são regenerados em virtude da sua Morte redentora, pela ação vivificadora do Espírito. Pelo Memorial da Morte redentora que Jesus instituiu, a cada comunidade cristã é dado se erguer em templo de Deus no Espírito (Ef 2,22), segundo o processo ascético definido em 2Pd 1,3-11. Os fiéis aspiram possuir a herança dos santos.


           IIIa) As diferentes maneiras que formulam o processo da revelação divina

Quando entramos no campo da religião instintivamente achamos que Deus é o objeto da nossa reflexão. Deveríamos, pelo contrário, advertir, em primeiro lugar, que nós somos as criaturas das quais o Deus criador cuida e que podemos constatar quão poderosa é a sua ação sobre nós na medida em que sintonizamos com ele através da nossa procura, a partir da descoberta da sua ação pedagógica para que, pela nossa interação, seja pela história das civilizações, como, também, pelo fenômeno do profetismo, cheguemos a compreender que ele existe e iniciemos a compreendê-lo através da contemplação das suas obras.
A presença de Deus na história do homem foi notada pela reflexão sapiencial, em Israel. Foram os profetas Oseias, Amós, Miqueias e Isaias, Jeremias e Ezequiel que a impulsionaram, o que permitiu dar início à compilação de um manual teológico, a Bíblia, que se abre com uma aula catequética sobre o Criador. No ambiente judaico este foi sempre pensado a partir do Deus que tinha dado origem a Israel. Ele, contudo, segundo a visão teológica da reflexão sapiencial, logo foi visto como o Deus de todos os homens, aos quais devia chegar a salvação através de Israel, o povo de escolha.
A ligação entre Israel e todos os outros povos é ilustrada através da genealogia que remonta de Abraão até o adão da criação.
A teologia bíblica apresenta esta doutrina dentro de uma moldura cronológica. O comportamento do homem, de fato, é ilustrado através da história de Israel, o povo que, não obstante todos os benefícios recebidos, logo se esqueceu do seu Deus e enveredou o caminho da rebeldia,  o que provocou a sua degeneração e o consequente castigo.
Por causa disso, devemos considerar Gn 1-11 o prefácio de toda a Bíblia, onde são apresentados os temas da nossa teologia: 1º) Deus criador; 2º) O homem criatura de Deus que encontraria a sua realização, qual é aquela de reinar, no reconhecimento da sua dependência e preservaria a sua condição através do louvor que prestaria ao criador através da contemplação das suas obras; 3º) A degeneração do homem causada pela sua insensatez, exatamente porque se afastou do seu Criador; 4º) a promessa de um Redentor que Deus, fiel a si mesmo, suscita na sua misericórdia, para que resplandeça em toda a sua Glória e o homem o encontre, na contemplação das suas obras que a Descendência leva a termo, o motivo da sua obediência e da sua louvação ao seu Deus (infelizmente, advertimos que os homens, nem diante do Maravilhoso que aconteceu com o Emanuel tomaram consciência para seguir o caminho da vida); 5º) O castigo do dilúvio; 6º) O princípio de uma nova humanidade, prefigurada em Noé com quem Deus  estabelece uma Aliança definitiva; 7º) A condição em que se encontram os povos quando Deus inicia a sua ação redentora com a vocação de Abraão.
A história da origem de Israel é traçada em Gn 12-50 através das vicissitudes de figuras de três patriarcas: Abraão, Isaac e Jacó, unidos pelo vínculo da consanguinidade.
O Poder de Deus, a sua Sabedoria e a sua Bondade são apresentados em toda a sua glória através das narrativas da libertação de Israel da escravidão do Egito. Estamos diante de uma compilação de narrativas catequéticas, sugeridas pela experiência da escravidão de Babilônia. Ela aconteceu a um povo que, depois de ter recebido de Deus uma terra onde corre leite e mel, foi sempre mais se afastando do seu Deus, a ponto dos seus reis conhecerem a corrupção, os juízes a falsidade, os ricos a prepotência, os sacerdotes o descaso, deixando que o povo todo caísse na idolatria.
A narrativa da conquista da terra prometida, a partir da conquista de Jericó é uma epopeia que quer exaltar a benignidade do Deus de Israel. Vemos que ela é colocada depois do Pentateuco, enquanto interpretada segundo a linha teológica da Bíblia. A humanidade decaída, em Êxodo, é representada por Israel na escravidão. Dela o salva o Deus misericordioso. As características deste povo são a Páscoa que será o memorial perpétuo, a travessia do mar que o faz passar definitivamente da escravidão para uma condição de povo liberto; o alimento que Deus providencia; a Lei que Moisés traz do alto da montanha, a Aliança pela aspersão do sangue; a tenda da Presença.
A linha teológica que a reflexão sapiencial foi construindo, tendo como paradigma a história de Israel, foi perfeitamente entendida pela Igreja apostólica. Dessa forma, temos que entender que são os escritos do novo testamento, enquanto eles estão em perfeita sintonia com o AT, a chave de leitura de toda a Bíblia, segundo esta precisa característica: Jesus realizou em si a Profecia.
Eis o inimaginável de quanto Deus transcende a nossa capacidade de entendimento e como devemos confiar nele, enquanto nos colocamos à sua disposição como instrumentos de realização do seu Desígnio. Logo, com isso, resulta quão insignificante é a nossa cooperação que, contudo, ao mesmo tempo, é condição de uma ação gigantesca, em nós, do seu Poder de “graça e verdade” (Jo 1,17).
A Carta aos Hebreus apresenta a clássica maneira do judeu interpretar as verdades da Revelação. O seu autor está a par do sentido catequético das narrativas do Êxodo. Sabe que elas são composições catequéticas sugeridas pela experiência da destruição do Reino de Samaria e do exílio de Babilônia. Quando as utiliza quer simplesmente explorar o ensinamento doutrinal nelas contido.
Quando os evangelistas narram a multiplicação dos pães, estão se referindo ao maná. O alimento que Deus providenciou ao longo de toda a caminhada no deserto até chegar à pátria prometida era a figura mais conveniente para apresentar o alimento que Aquele que desce do céu e dá a vida ao mundo queria deixar aos seus discípulos para administrá-lo em favor de todos. Não há figura melhor para ilustrar o Memorial que Jesus quis deixar à sua igreja e que apresenta dizendo: “Não foi Moisés que vos deu o pão descido do Céu. O Filho do Homem é aquele que vos dá o verdadeiro pão que desce do céu e dá a vida ao mundo”. Quando advertimos que esta formulação foi, de fato, o resultado da reflexão sapiencial da comunidade fundada por João, por ela entendemos claramente o que Jesus ensinou acerca da Eucaristia e como devemos compreender que realmente o pão que Jesus quis nos dar é “a sua Carne para a vida do mundo” (Jo 6,51). Esta realidade do Mistério que Cristo instituiu é a doutrina que somos chamados a professar. É sobre ela que João insiste na peroração final de Jo 6:
                      
“Se não comerdes a minha carne e não beberdes o meu sangue não tereis a vida em vós, porque a minha carne é verdadeira comida e o meu sangue é verdadeira bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e eu o ressuscitarei no último dia... Este é o pão que desceu do céu. Ele não é como o que os pais comeram e pereceram; quem come este pão viverá eternamente” (6,53-54.58)

            É possível estabelecer a engrenagem que desenvolve a teologia bíblica na Escritura nos seguintes termos: a experiência histórica de uma volta da escravidão em virtude de Ciro, considerado o servo ungido por Deus (Is 45,1), levou Israel a reconsiderar a sua conduta em relação ao Deus da sua história; um Deus que já tinha dado sinais da sua presença através de tudo o que acontecera pelo pronunciamento de profetas por ele enviados. Eles tinham-se esquecido que lhes tinha dado uma terra e foram atrás de outros deuses. A falta do seu culto tinha trazido a desintegração da nação, a partir da corrupção dos costumes. Eles teriam perecido por causa dos seus crimes, não os tivesse o seu Deus resgatado da escravidão. As águas do dilúvio os teriam submergido, como aconteceu com as dez tribos da Samaria. O Resto que voltou reconheceu que o seu Deus era o Deus da vida, bondoso e compassivo que não se prevalece da sua força, mas que trata com carinho e proteção o seu povo. Esta convicção provocou a volta ao culto sabático, alimentado pela louvação celebrada pela contemplação das obras do Senhor, a partir da criação. A bondade e a fidelidade de Deus agora tinham como fundamento a libertação da escravidão em Babilônia. O Livro do Êxodo é a sua celebração perpétua.
            A reflexão sapiencial pós-exílica levou a ver que as vicissitudes de Israel eram paradigmáticas para descrever as vicissitudes do homem que abandou o Criador para se entregar à idolatria, o que deflagrou a desordem moral e as consequências da prática da maldade, na perversão e na injustiça. A reação do Deus Criador, de fato, pode ser descrita com a reação que ele teve com o povo do qual mostrou ter predileção. Fiel a si mesmo ele quer realizar o seu plano de glorificação do homem através de um enviado, capaz de resgatar o homem da escravidão do mal. Isto ocorrerá através de um filho de homem que nascerá no tempo estabelecido.
            A Igreja Apostólica acompanhou a reflexão sapiencial e até utilizou o seu ensinamento para falar de Jesus Cristo como Messias, enquanto anunciava a novidade do mistério da sua Pessoa divina.
            Por causa disso devemos ter o cuidado de não transformar em informação histórica aquilo que foi utilizado, dentro de uma alegoria, para apresentar a verdade teológica da condição de culpa em que todos os homens caem; de não transformar em história o que os autores bíblicos criaram como enredo histórico, no intuito de nos transmitir verdades doutrinais; de não atribuir erros de interpretação a Jesus e à Igreja apostólica quando citam as Escrituras e de não perder tempo com argumentações descabidas porque, no nosso despreparo, lemos textos escritos milênios atrás achando que seus autores estavam se expressando da mesma forma que nós adotamos.
            Outra tipificação 
            No Tempo Litúrgico da Páscoa, lemos as narrativas da Ressurreição do Senhor. Literariamente, elas são o ápice de uma literatura da tradição judaica que utilizou a linguagem figurativa, catequeticamente considerada a mais conveniente, para transmitir verdades doutrinais, anunciando-a com precisão e interpretando-as com fidelidade. Quando as interpretamos prescindindo da sua característica literária, de fato, desvirtuamos o seu sentido pleno. Lemos como crônicas textos de cunho eminentemente teológicos. Estamos preocupados em querer saber se anjos falaram a Maria de Cléofas e a Maria Madalena, se Jesus lhes apareceu, como, também aos discípulos de Emaús, a Pedro, aos Apóstolos no cenáculo e, se, oito dias depois, lá voltou para repreender Tomé. Por que não pensar que estamos diante de um Mistério que se realizou e que deve encontrar a sua ilustração nas Escrituras, exatamente como lembra 1Cor 15,3-7: “Morreu segundo as Escrituras e ressuscitou segundo as Escrituras”? Da mesma forma que para a Igreja Apostólica interessa ver na morte de Jesus sobretudo a realização de uma redenção e, por causa disso, reconhecer que o “Santo não podia conhecer a corrupção” (At ), nós, também, devemos reconhecer que, por ter Jesus realizado a redenção através de uma imolação que o levou à perfeição (Hb 2,10), ele conheceu a glorificação a partir do momento em que, na Cruz, exclamou: “Tudo está consumado! Pai,  em tuas mãos entrego o meu espírito”. A narrativa que ouvimos pelo evangelho proclamado no dia da Páscoa (Jo 20,1-9) aponta para esta direção. Quando o “discípulo amado” entra no túmulo vê e acredita. E o evangelista comenta: “os outros não chegaram a crer porque não tinham ainda entendido as Escrituras que dizem que Ele devia ressuscitar dos mortos”.
            As narrativas dos evangelistas perpetuam a forma catequética utilizada pelos Apóstolos quando ensinavam nas suas comunidades e apresentavam o Mistério que é Cristo, em quem se realizavam as promessas, a partir de uma Descendência da Mulher que esmagaria a cabeça da serpente. Nesta vitória está a vitória de Jesus sobre a morte, a condição da sua glorificação, a manifestação do poder extremo pelo qual Deus o “ressuscitou dos mortos para constituí-lo Cabeça da Igreja” (Ef 1,20.22-23), em quem temos a condição de participarmos da herança dos santos. A vitória do Cristo de Deus sobre a Morte teve, para o autor de Gn 3,15, a sua inspiração no cântico do Servo de Iahweh, cujo tema está em Is 53,10: “Se oferece a sua alma em sacrifício, multiplicará os seus dias, conhecerá uma descendência e fará deslanchar o Plano de Deus”. Disso resulta que é a compreensão do sentido redentor da morte que leva à aceitação da glorificação de Jesus, apresentada por uma ressurreição. É a ordem estabelecida por Paulo em 1Cor 15, 3-7.
            Atentos ao gênero literário dos textos que nos falam da ressurreição, não podemos, todavia, ignorar os elementos do núcleo histórico que está na base das narrativas catequéticas da ressurreição e que se apresentam de forma clara. Há um sepulcro que é visitado. Há uma constatação de um túmulo vazio (Jo 20,1-8). Há uma informação extremamente indicativa, de cunho catequético, que aponta para o caminho da elucidação do mistério para o qual o sinal aponta: “Não tinham entendido as Escrituras, segundo as quais Jesus devia ressuscitar dos mortos". Os discípulos de Jesus chegam a entender, então, o que o seu Mestre e Guia tinha profetizado, algo insistentemente lembrado por Jesus quando catequizava os Apóstolos após o reconhecimento por parte dos mesmos de ser ele o Messias, o Filho de Deus. Pela ressurreição realiza-se em Jesus a condição resumida no título divino-messiânico de “Filho do Homem”. Não é este o título que João tornou tema do seu Evangelho?
            As narrativas catequéticas das aparições no Cenáculo do Evangelho de João, fundamentadas sobre o sinal do sepulcro vazio, ponto de partida a ser interpretado através da compreensão das Escrituras, são textos que devem ser associados à narrativa da pesca milagrosa de Jo 21, à narrativa da aparição de Jesus aos discípulos de Emaús (Lc 24,35) e aos quadros de cunho midrashico, inspirados pela condição de Senhor que Jesus alcançou pela sua ressurreição, da Anunciação e da Visitação (Lc 1).
            A luz que nos traz a ilustração do Mistério que é Cristo, manifestação da Glória e esperança da Glória (Cl 1,27), nos ajuda a entender mais uma característica das narrativas catequéticas da ressurreição do Senhor: a habilidade literária com que os evangelistas construíram o enredo histórico das suas narrativas, a ponto de nós as interpretarmos como crônicas de um fato. Quando, todavia, ao ler as suas catequeses, temos presente os seus específicos elementos que as constituem, devemos dizer que de fato, a forma midrashica que eles adotaram, é a mais catequética de todas porque, através de uma linguagem figurativa apresentam integralmente os pontos doutrinais relativos ao Mistério. A respeito disso, Lc 24,36-49 é particularmente esclarecedor,  adiantando até a apresentação da narrativa midrashica, qual a do Pentecostes (v.49), capaz de ressaltar enormemente a presença do Espírito Santo na vida da Igreja. 




              2) A Bíblia, manual antológico da Tradição

A Bíblia é constituída de textos escritos ocasionalmente, ajuntados ao longo dos tempos segundo uma linha teológica, até chegar a compor o atual manual catequético. Dessa forma, ela chega a ser uma antologia onde encontramos a mais vasta literatura relativa à tradição de fé da nossa religião. Gn 1-11 é o seu prefácio em que é apresentado, em primeiro lugar, o Criador. Em segundo lugar, é apresentado o homem na condição de criatura que, a diferença de todas as outras, é chamado a viver uma relação pessoal com Deus. Infelizmente, o homem não vive à altura da sua vocação. Rebela-se contra o seu criador e envereda o caminho da autodestruição, tornando-se, por causa disso, merecedor de morte. Pelo fato que o Criador, por natureza, é Bondade, não abandona a sua criatura ao seu destino de morte. No seu amor, vem em seu socorro, para levar a termo, pela realização de um plano que revela a sua misericórdia, a perfeição da qual o homem é capaz. É por isso que, a final, ele mesmo assume a natureza humana, para levá-la à perfeição e se tronar, para todos aqueles que lhe dão a sua adesão de fé, princípio de justificação.
Este processo é fruto de uma descoberta gradativa da reflexão sapiencial, ao longo da história de Israel, impulsionada pela revelação profética. Ela ocorre enquanto Israel afunda sempre mais no pecado. Nesse contexto, Deus prepara a realização da salvação do homem que acontece com Jesus Cristo. Nele se realiza a profecia. Ele é a Descendência prometida (Gn 3,15). A Igreja Apostólica no-lo anuncia, enquanto proclama a sua condição divina e todos os benefícios que o Plano de Deus, realizado em Jesus, nos trouxe.
A Tradição encontra nos textos da Bíblia o mais valioso suporte, quanto à doutrina da nossa fé. Trata-se de um manual catequético, compilado segundo uma linha teológica, contida dentro de uma moldura cronológica, fruto da reflexão sapiencial dos seus autores. Vemos que, dessa forma, atua-se uma revelação por parte do Deus que quis se tornar conhecido a Israel seja segundo uma tradição oral como através de escritos que a refletem em si. Pelo seu trabalho de reflexão, os sábios acabam, também, nos oferecendo as condições de falar de uma revelação que Deus faz de si segundo uma linha pedagógica, que somente ele foi capaz elaborar, na condição de Criador.
Podemos dizer que são fontes de revelação divina: 1º) a tradição religiosa que tem como origem a ação pedagógica de Deus; 2º) a reflexão teológica da Bíblia que sistematiza, dentro de uma moldura cronológica, a exposição do Plano de Deus sobre o homem; 3º) o fenômeno profético, do qual jorram verdades divinas fundamentadas na autoridade daquele que envia os seus profetas; 4º) a catequese apostólica que explicita o sentido cristológico da doutrina da tradição judaica, da Profecia e da reflexão sapiencial que nos foi preservada pelos textos da Bíblia, enquanto nos anuncia Jesus de condição divina.
A essa altura torna-se oportuna uma precisação...
O livro do Gênesis se abre com uma parênese catequético-sinagogal, que o autor do prefácio de toda a Bíblia, Gn 1-11, utiliza para começar a falar de Deus, apresentando-o como Criador. Gn 2 é uma segunda aula catequética sobre o homem que é ensinado a viver a sua dependência do Criador pela observância dos seus mandamentos, condição da sua realização. Gn 3 é uma reflexão sapiencial que quer falar da condição de pecado em que se encontra o homem e da salvação que Deus entende realizar, a partir de uma alegoria que, inicialmente, pretendia descrever a culpa de Israel, rebelde ao seu Deus.
As primeiras duas parêneses catequéticas e a alegoria de Gn 3 nos revelam que a reflexão sapiencial da Escritura visa apresentar a salvação do homem, tendo como paradigma a história de Israel.
Gn 4 é uma reflexão sapiencial que apresenta a história da humanidade através de uma genealogia que envereda o seu caminho de aparente realização, mas que, de fato, caminha para a morte, por causa da sua degradação moral.
Gn 5 opõe à descendência de Caim a descendência que Deus suscita e que terá a sua continuidade em Noé. Amigo de Deus, este escapa da morte para dar continuidade a uma humanidade que Deus, na sua bondade, quer levar à sua plena realização porque o seu amor é fiel.
Gn 6-8 é uma longa narrativa que tem a sua inspiração na experiência dolorosa do exílio em Babilônia. Ela ensina quão dolorosa é a experiência de um castigo que Deus tem que infligir para corrigir o homem da sua condição de maldade.
Gn 9-10 é uma forma literária muito hábil para sintetizar a história da humanidade em vista de uma ligação que o autor quer estabelecer do povo de Israel com a humanidade toda. Ela expressa uma teologia qual descoberta pela reflexão sapiencial, a partir da sua reflexão sobe a história do seu povo.
Gn 11 é uma maneira para justificar a condição da humanidade dividida em muitos povos.
Gn 12-50 é uma síntese, aglutinada entorno de três personagens, que quer falar da vocação de Israel por parte de Deus, para que seja o seu povo. De fato, quer ser uma interpretação teológica daquilo que aconteceu com as migrações de tribos que acabaram ocupando, ao longo de séculos, a terra da Palestina, aonde chegaram a se constituir numa confederação e conheceram até a monarquia com Saul, Davi e Salomão.

Através da análise do primeiro livro da Escritura nos é dado constatar como os livros da Bíblia têm, por si, uma sua origem literária específica. Em seguida, adquirem uma sua específica finalidade na compilação teológica, que é a Bíblia, e que, enquanto relacionados a uma revelação, têm valor doutrinário e cristológico.


         3) A linguagem literária da Bíblia
A linguagem da Bíblia é linguagem figurativa, capaz, contudo, de transmitir verdades teológicas de forma plena, enquanto possibilita a apresentação dos diversos aspectos das mesmas. Em
Gn 1, o Deus criador se apresenta com os seus fundamentais atributos que as obras da criação ressaltam. Em
Gn 2 as obrigações do adão são apresentadas através da forma lendária com que é narrada a sua origem e a instituição do matrimônio. Em
Gn 3 é definida a culpa que leva o homem à condição de miséria moral em que se encontra. Em
Gn 4 é sintetizado o processo degenerativo do homem. Em
Gn 5 é celebrada a Descendência que revela a fidelidade de Deus a si mesmo. Por ela,
Gn 6, surgirá um novo cabeça da humanidade, que, por si, se torna merecedora de destruição.
            Uma vez que a exposição teológica, relativa ao Plano que Deus quer realizar em vista da salvação da humanidade, é descrita dentro de uma moldura histórica, a mesma linguagem figurativa é a ela aplicada. Os conceitos teológicos são carregados por um enredo histórico, habilmente formulado. Ele não é matéria de revelação. É simplesmente condição escolhida para transmitir uma revelação, um artifício literário que cada autor utiliza segundo a sua habilidade.
Gn 12-50 apresenta, por meio de narrativas relativas a três personagens idealizados, Abraão, Isaac e Jacó, a “origem de Israel”, chamado a ocupar a terra que Deus lhe prometeu. Em Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, o enredo histórico é construído, enquanto visa retratar a condição em que Israel caiu, da qual, contudo, o Deus misericordioso, já descrito no quadro ideal de Gn 1-11, entende libertá-lo. Sabemos, de fato, que a compilação constitui-se de narrativas catequéticas sugeridas, em Êxodo e Números, pela experiência do exílio de Babilônia.
Josué, por si, quer cantar a intervenção providencial de Deus que, ao longo da história dos hebreus, permitiu a ocupação da terra da Palestina. Está inserido depois do Deuteronômio como etapa de uma história que vai caminhando para o tempo dos reis, através do livro dos Juízes.
Juízes  volta a repetir a condição em que o homem sempre se encontra diante do seu Criador. O pecado da idolatria é a constante que provoca os castigos de Deus que, todavia, não extermina o seu povo porque tem sempre diante dos seus olhos a Descendência. Ela será o Novo Adão, prefigurado em Noé, que dará origem a uma nova humanidade.
1e2Sm voltam a apresentar esta constante, como, também
1e2Rs
            Não interessa a linha histórica. O fundamental é ter presente a linha teológica que reflete em si o Desígnio de Deus que quer a salvação de todos os homens.
            Esta maneira de fazer teologia tem sua continuação na reflexão sapiencial da Igreja Apostólica que a aplica a Jesus.
Mt 1 fala da “origem” de Jesus, o Cristo. Ele o chama de filho de Davi, filho de Abraão. Parece, então, ligar Abraão a Set, dando a impressão que a Descendência vai ter sua origem dentro de Israel. Mas não é assim, porque quando chega a José gerado por Jacó, nos diz, com todas as letras, que ele é concebido no seio de Maria por obra do Espírito Santo (1,18). A história de Israel ilustrada pela descendência de Abraão, embora esteja ligada a um Salvador prometido, de fato é o sinal que Deus concede, na sua misericórdia, a um povo que quer salvar. Dependesse da sua incredulidade, só mereceria perecer. Tudo isso é provado pela descontinuidade da própria descendência causada por membros seus pecadores.
            Com Jesus, volta a se repetir o quadro inicial de Gn 3. O homem continua na sua rebeldia, por si causa da sua destruição. Deus, todavia, fiel a si mesmo realiza a sua salvação para que o seu amor seja revelado na sua incondicionalidade. Num contexto hostil qual revelado pela figura de Herodes que quer matar o Menino recém-nascido Rei dos Judeus e pela “raça de víboras” dos escribas e fariseus, que, primeiramente, se recusam obedecer à pregação de João Batista e, depois, decidem levar à morte Jesus, ele realiza o seu Plano.
Jesus reflete, então, em si, na condição de Descendência à qual foram feitas as promessas, a figura de Moisés que dá a Lei ao seu povo, que opera prodígios, até caminhar sobre as águas, dar o alimento para quem o segue, para que não desfaleça. Volta a linguagem figurativa da catequese do Êxodo. Desta vez, como nos lembra o autor da Carta aos Hebreus, se Deus “falou outrora aos nossos pais pelas palavras proféticas dos autores sagrados, nos últimos tempos que são os nossos, nos fala pelo seu Filho, Jesus Cristo”. Não podemos “negligenciar tão grande salvação” (Hb 2,3).


4) A linguagem sapiencial
Quanto mais nos familiarizamos com as Escrituras, tanto mais adquirimos a condição de advertirmos as nuances da sua linguagem, que nos indicam que a sua linguagem figurativa é uma linguagem sapiencial que utiliza até a simbologia numérica, além de palavras alusivas a outras partes escritas anteriormente. Ao lermos as primeiras páginas da Bíblia, notamos, também, que devemos estar atentos aos temas que o autor desenvolve. Ao serem anunciados, eles conhecem uma primeira elaboração que somente é retomada depois que outros temas que, de fato, têm uma relação com os anteriores, são iniciados. Isto é muito claro sobretudo em Gn 1-11 onde temos a apresentação, em forma geral, como num prefácio de um livro, dos temas que serão desenvolvidos. Eles são apresentados de forma entrelaçada, devido à relação teológica que existe entre eles.
            Temos a narrativa inicial da Criação que, segundo a linha teológica da Bíblia, apresenta o Deus da história de Israel na condição de Criador. À luz do sentido do refrão que encontramos no fim da proclamação das obras de cada dia da criação, alusivo ao ensino catequético da narrativa do milagre das codornizes e do maná (Ex 16,6-7), entendemos que aquilo que parece ser um simples objetivo de uma catequese parenético-sinagogal, de fato, é, também ele, um ponto fundamental da teologia bíblica, que será oportunamente retomado. Isto é confirmado pelo que lemos em Ex 31,12-17, relativamente ao repouso sabático.
            Quando lemos acerca da promessa da Descendência (Gn 3,15) notamos que dela volta-se a falar somente depois de ter sido apresentado o crime de Caim e aquilo que aconteceu com a sua descendência. O autor entrelaça as duas descendências para ressaltar a relação que existe entre elas. É Noé, o Justo, que encontra “graças aos olhos de Iahweh” (6,8), aquele que dará continuidade à humanidade pelo Resto que será poupado. Noé e a explicitação da Descendência, seja no ato de salvar a sua família como, também, quando é descrito construindo um altar para oferecer o seu sacrifício e quando Deus estabelece uma aliança que tem o arco-íris como memorial.
Além de considerar o fruto da reflexão sapiencial em Israel texto inspirado, diante da sua aceitação por parte da Tradição judaica, de Jesus e da Igreja Apostólica, deve sê-lo, também pela profundidade das verdades que apresenta, pela plena sintonia que mostrará ter com a reflexão da Igreja, a ponto der ser considerado como parte, no mínimo complementar, daquilo que a catequese apostólica dirá de Jesus reconhecido Cristo-Deus. É evidente que estamos diante de uma inspiração divina que tem como origem um mesmo princípio, seja para os sábios do AT como para os Apóstolos, Profetas, Evangelistas e Doutores (Ef 4,11), que é o Espírito.
Constata-se que o texto inspirado é consequência de uma profunda reflexão teológica, que a sua linguagem é fruto de uma procura atenta de termos, de quadros e de erudita composição literária. O texto bíblico não merece uma interpretação de um despreparado que quer improvisar uma explicação, simplesmente reagindo àquilo que termos, figuras e formas literárias que ele, de fato, ainda não chegou a compreender, lhe sugerem.
Infelizmente, o esforço exegético parou por demais séculos na Igreja cristã. Quando foi retomado, a distância no tempo, o desconhecimento da cultura onde se originara a nossa religião, o próprio desenvolvimento alcançado pela Catequese Apostólica que interpretava a realização das Escrituras da tradição judaica à luz dos ensinamentos de Jesus e sob a inspiração do Espírito Santo, por ele prometido e concedido a partir da sua ressurreição dos mortos, acabaram provocando equívocos gravíssimos. A Revelação que acontece pelo esforço da reflexão sapiencial deve ser abordada tendo presente a precisão dos termos que os autores adotaram ao escrever a sua obra e a escolha oportuna da linguagem que eles utilizaram, que inclui todo tipo de gênero literário: antropomorfismos, lenda, alegoria, genealogia, simbologia numérica, narrativa didática, enredo histórico, aquilo que, em síntese, chamamos mashal. É então que começamos a descobrir as convicções doutrinais que os autores querem transmitir e que a sua linguagem é de extrema precisão teológica.
Ensaio exegético. Gn 1,1-5
Antes de abordar a leitura da abertura da Bíblia com a sua narrativa da criação, por si, condição perfeita para logo entendermos a natureza da linguagem que encontraremos utilizada em toda a Escritura, é bom advertir que o texto de Gn 1, embora fale das “origens” do universo e tente, através da contemplação da criação, falar do Deus criador (que na realidade é o Deus de Israel, o Deus que revelou por meio de toda uma sapiente ação, pedagogicamente conduzida, ser o único existente), foi escrito após o exílio. A forte ação reveladora dos profetas, particularmente de Isaias II, permitiu que a reflexão sapiencial em Israel, avançasse segura na sua especulação. Nestas condições, o rabino que preparou a parênese sinagogal, escolhida, mais tarde, pelo compilador do Prefácio da Bíblia (Gn 1-11), valeu-se da sua habilidade literária de forma destemida. Podemos, de fato, notar que ele não hesita em utilizar até figuras da mitologia de religiões pagãs, para falar do Deus de Israel. Tendo presente esta ‘origem’ da sua composição, é possível chegar perto do pensamento do autor. Gn 1,1 apresenta o Desconhecido, que, contudo, se revelou a Israel através da história e dos profetas, anunciando a sua obra enquanto utiliza o verbo criar (hbr.: barah). Exatamente, pelo fato que o termo diz respeito não a um único gesto, mas a toda uma obra conduzida com sabedoria e que resulta refletir em si o esplendor da Glória de Deus, ele não tem a mesma significação que lhe é atribuída pela cultura ocidental, que desenvolveu uma lógica dedutiva. Na base desta lógica dedutiva deduz-se um único conceito, qual o de atribuir a Deus a condição de Princípio, Causa primeira, excluído qualquer outro Princípio do qual poderia depender na sua existência. Neste caso, deve-se dizer que a lógica da filosofia ocidental empobreceu o conceito da linguagem semítica, que é linguagem figurativa, embora tenha conseguido especificar, com precisão, o seu elemento principal. Atribuindo ao Deus criador a condição de Princípio, determinou que a sua essência era a própria Existência. Deus é o “Eu sou”, aquele que existe desde sempre, o “Eterno”. É possível notar que Jo 8,58 chega a adotar esta interpretação quando apresenta Jesus exclamando: “Antes que Abraão fosse, Eu sou”. Trata-se de uma influência da filosofia grega que permite ao evangelista dar um segundo sentido ao título que Jesus atribui a si, segundo a mais pura tradição das Escrituras. Para o judeu do séc. V a.C., o conceito de Deus é aquele que a obra da criação demonstra ser. O judeu fala de Deus sem especular sobre a sua condição, quanto à sua “origem”, preocupado em ressaltar o seu poder, sabedoria e beleza. Através desta forma de falar de Deus ele diz que a Bondade é a condição mais profunda do seu Ser. Esta sua condição de perfeição aparecerá em toda a sua evidência quando resultará que o homem dela é incapaz. A sua bondade resplandecerá em toda a sua Glória, depois de ter-se manifestado através da obra da criação, ao atuar um plano de salvação em favor do homem decaído; salvação que implicará o gesto mais significativo daquele que é a Bondade que sempre age no amor: a entrega do Filho ao mundo [terminologia metafórica exprimida segundo uma linguagem antropomórfica, porque, de fato, a encarnação da Palavra da Vida, Vida, Vida eterna (1Jo 1,1-3), é, em si, a vinda do próprio Deus, da Bondade, do Bom Pastor que dá a vida pelas ovelhas, para que tenham vida em abundância: Ele que é “Um com o Pai” (Jo 10,30)].
            Torna-se necessário tentar entender o verdadeiro significado de Gn 1,1-2. Geralmente, a primeira palavra da Escritura, que na verdade é uma palavra precedida por uma preposição, é traduzida com o termo “princípio”. A narrativa da criação subsequente nos induz a pensar que o autor esteja querendo começar a sua narrativa com aquilo que ocorreu quando começou o universo. Há, contudo, exegetas que, motivados por Pv 8,22, onde a Sabedoria é chamada de Princípio, enquanto artífice de Deus, Aquela que Deus quer para si como uma esposa para com ela se alegrar, traduzem o termo hebraico “be-rechit”, necessariamente tendo que parafraseá-lo, dizendo: “Pela Sabedoria, Princípio da criação, Deus deu origem a tudo o que existe”. Esta tradução, em primeiro lugar esclarece melhor o termo “princípio”, que resulta vago quando interpretado como o momento em que Deus realiza a criação do universo. Em segundo lugar, é evidente que é uma interpretação derivada de uma interpretação equivocada do termo “barah” (criou), fruto esta da filosofia ocidental de cunho dedutivo que reduz a ação criadora de Deus a uma mera ação inicial, qual a de um Princípio, de uma Causa primeira. Em terceiro lugar, desvirtua o sentido do anúncio inicial, qual será explicitado logo em seguida, mostrando-se Deus agindo com a sua Palavra criadora, que se apresenta no começo de cada dia da criação:  “Vaiomer Elohim...” (Falou Deus). Em quarto lugar, ela é necessária para não desfigurar a imagem de Deus que o autor apresenta em linguagem antropomórfica. Tudo isto é claramente explicitado pelo Sl 33,6: “Pela palavra do Senhor foram feitos os céus, e pelo sopro de sua boca todo o seu exército”. A menção explícita do Espírito de Deus que vemos “pairando” sobre as águas, completa a figura de Deus, vista falando, enquanto a sua Palavra sai da sua boca, que a expira. A esta linguagem figurativa de cunho antropomórfico inspiram-se os quadros das teofanias trinitárias do Batismo de Jesus no Rio Jordão e da Transfiguração: o Palavra (Espírito e Vida) que age na potência do Espírito, que desce sobre ela e sobre ela permanece para realizar a nova criação. Também, a esta linguagem figurativa se refere Jesus quando fala a Nicodemos dizendo: “O vento sopra onde quer; ouves-lhe o ruído, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai. Assim acontece com aquele que nasceu do Espírito” (Jo 3,8). Neste caso, o “Espírito de Deus” está a significar o poder criador que, como nos ensina a Liturgia do Batismo, “pairava sobre as águas para que fossem capazes de gerar a vida”.
            O quadro da criação da luz (v.3) revela a perplexidade do autor que constata a pobreza da sua linguagem em relação à grandeza do Criador. Não obstante tudo isso, vemos que João, no prólogo do seu evangelho utiliza a figura metafórica da luz para falar da condição que a Palavra da Vida assume quando se encarna: “Nele havia a vida, e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam” (Jo 1,4-5).  A utilização que João faz da luz, como metáfora, nos esclarece quanto ao drama que o autor de Gn 1 descreve ao declarar que, logo, Deus separa a luz das trevas e chama a luz com o termo “dia”, enquanto a treva recebe o nome de “noite”. Estas conotações que carregam de simbolismo as duas realidades, opondo-as diametralmente uma contra a outra, indicam que por trás delas está toda uma concepção que foi amadurecendo enquanto evoluía a linguagem figurativa no campo da religião. Sempre nos referindo a João, no seu evangelho escutamos Jesus proclamando solenemente: “Eu sou a Luz do mundo. Quem me segue não anda nas trevas, mas terá a Luz da Vida” (Jo 8,12).
            Quanto mais a gente insiste em advertir a linguagem figurativa utilizada pelos sábios de Israel na redação dos seus escritos e em se familiarizar com ela, tanto mais clara se manifesta a sua relação com as verdades que quer anunciar e que dizem respeito a uma revelação que vai se processando seja pela ação pedagógica de Deus, como pelos pronunciamentos proféticos daqueles que Deus envia em seu nome e pela reflexão sapiencial dos doutores da Lei que tentam ilustrá-la através dos seus escritos.


           5) A linha teológica da Bíblia
            É o profetismo que, com a sua segurança doutrinal, impulsiona a reflexão sapiencial a ponto desta produzir um manual teológico segundo uma clara visão do Plano de Deus sobre o homem. Gn 1-11, prefácio de toda a Bíblia, apresenta a sua linha de pensamento.
            O homem “criado à imagem e semelhança de Deus”, que deveria, portanto, através da contemplação das obras da criação chegar à contemplação da Glória de Deus para depois, motivado pelo reconhecimento da sua grandeza, dos benefícios dele recebidos e da conveniência dos seus mandamentos, tornar a sua vida um sacrifício espiritual oferecido ao Criador, “pelo louvor dos seus lábios”, na liturgia do Dia do Senhor, esquecido, infelizmente, de todos os benefícios recebidos, se entrega às concupiscências, querendo ser o único árbitro da sua existência.
            Diante da culpa, embora se torne necessário um castigo de purificação, Deus, na sua misericórdia, promove um Plano que resultará na sua maior glória. Este vai se realizando ao longo da história do homem, pré-anunciado desde a vocação de Israel, destinado a ser, para todos os povos, o anunciador do verdadeiro Deus e da sua obra salvadora.
            Na visão da reflexão sapiencial em Israel, a sua História religiosa se torna paradigmática para interpretar de que forma está se realizando o Desígnio de Deus relativo a toda a humanidade. O autor do Apocalipse é aquele que se torna o seu interprete: 1º) pela visão teológica da Cidade, segundo os termos do profeta Ezequiel, enquanto descreve a destruição de Jerusalém;  2º) pelos castigos corretivos infligidos, segundo os termos das narrativas dos castigos infligidos a Israel quando das invasões assírias e babilonenses;  3º) ao sugerir ao Novo Israel que viva o seu testemunho segundo o ensinamento do livro de Daniel.
            A figura de Abraão está em relação a Adão, enquanto apresenta o homem que vive o ideal da criatura em relação ao Criador. Ele obedece, aceitando sair da sua terra, ele confia em Deus, acreditando na promessa de uma numerosa descendência. Por causa da sua obediência chega a possuir a Terra. Por causa da sua confiança conhece uma longa vida, vê uma descendência e faz deslanchar o plano de Deus.
            O livro do Êxodo quer mostrar de que forma Deus realiza a sua promessa feita a Adão e Eva, depois da sua rebeldia, que é apresentada por uma alegoria que ilustra o pecado de Israel que se rebela e se inclina a seguir os costumes idolátricos dos outros povos. Israel é por ele socorrido, quando vive a escravidão no Egito. Movido pela compaixão, decide libertá-lo “com braço forte e mão estendida”. A páscoa será o memorial perpétuo da manifestação da sua Glória e do seu Poder. A narrativa épica da travessia do Mar Vermelho ressalta a importância da libertação que Deus realiza no seu poder irresistível. A peregrinação no deserto quer lembrar aos ouvintes, no dia do Senhor celebrado pela assembléia litúrgica na sinagoga, a perseverar no serviço do Senhor para poder “entrar no repouso prometido”: um ensinamento moral claramente captado pelo autor da Carta aos Hebreus (Hb 3-4). A Lei que Deus faz conhecer ao seu povo, numa teofania que revela de forma terrificante a sua Glória, deve ser assumida como código moral, condição da continuidade da Aliança que Deus realizou quando da vocação de Israel para ser o Seu povo. O quadro da relação entre Deus e Abraão define os termos: fé e obediência: “Abraão creu em Deus e isto lhe foi levado em conta de justiça” (Rm 4,3). “Porque tu me obedeceste e nem sequer poupaste o teu próprio filho, eu faço de ti uma benção para todos os povos da terra” (Gn 22,15-18).
            O livro de Josué, colocado logo em seguida ao Livro da Lei, a Torah, o Pentateuco, segundo o enredo histórico criado para dar sustentação às verdades apresentadas segundo a linha teológica, quer enfatizar a convicção à qual chegou a reflexão sapiencial de que a Palestina foi a terra, a pátria que Deus destinou ao seu povo. A forma da sua ocupação apresentada seja pelo livro de Josué como pelo livro dos Juízes, ressalta, de um lado, a displicência do povo de Deus, as suas infidelidades à Aliança, enquanto, de outro lado, mostra qual é a paciência de Deus que é bondoso e compassivo, que tem misericórdia e sempre suscita um libertador que alivia os sofrimentos que o próprio povo causou para si, voltando-se para os ídolos.
            Os livros até aqui citados, mostram qual é, de fato, a maneira segundo a qual a Escritura apresenta as verdades da nossa fé. Trata-se de uma reflexão sapiencial que, impulsionada pelo profetismo e sobre ele profundamente alicerçada, apresenta uma visão teológica do Plano do Criador em relação ao homem. A História religiosa de Israel é o paradigma sobre o qual se fundamenta a sua teologia pela qual chegamos a ver qual é a linha pedagógica de Deus, enquanto se revela e enquanto processa uma santificação do homem, a partir de uma condição de justificação que terá a sua plena realização quando Jesus realizar em si a Descendência prometida.

           6) Inspiração
Diante da atuação de Oseias, Amós, Isaias, Jeremias, Ezequiel e dos outros profetas que nos deixaram os seus escritos, deles sabemos que aquilo que nos transmitiram foram ensinamentos e revelações de Deus. Abalizados pelo carisma da profecia, nos transmitiram, com fidelidade e na sua íntegra, tudo aquilo que Deus lhes revelara, eles sabendo perfeitamente que eram simples enviados. Dessa forma, entendemos que aquilo que por ele chegamos a conhecer é revelação de Deus a nós dirigida. Os textos proféticos caracterizam-se por ser fruto de uma inspiração direta.
Diante de todos os outros textos, a certeza de estarmos diante de uma obra inspirada, em última análise, somente nos é dada quando, de autoridade, a Igreja hierárquica, ou na pessoa do papa ou pela convocação por parte dele de um concílio, os seus membros se pronunciam em comunhão de fé com ele. É o cânon estabelecido pela Igreja que nos garante quais são os livros inspirados. O critério que leva a Igreja a reconhecer um livro como inspirado é o reconhecimento, por parte da Tradição, de que ele contém uma doutrina conforme à fé comum. Isto aconteceu, antes de Cristo, com os textos que a tradição judaica considerou como tais. Depois da vinda de Cristo, impõe-se o reconhecimento que Jesus mostrou a respeito dos escritos que ele cita como Escrituras e o reconhecimento da Catequese Apostólica que cita as Escrituras segundo o ensinamento de Cristo. Quando, portanto, os escritos são fruto de uma reflexão sapiencial, vemos que a inspiração ocorre por uma ação divina, enquanto o sábio coopera com o esforço de ensinar o povo de Deus, dentro da fidelidade à tradição. Os textos do AT, portanto, caracterizam-se como inspirados por ter sido aceitos pela tradição judaica, por Cristo Jesus e pela Igreja Apostólica.
Os textos do NT foram reconhecidos pela Igreja como inspirados e, portanto contendo a verdadeira tradição da Igreja de Cristo porque resultaram em plena sintonia com a doutrina da tradição judaica; porque, também, falavam de Cristo Jesus em plena sintonia com o conceito da sua messianidade qual contido nas Escrituras; enfim, porque, segundo a linha teológica da tradição e, também, utilizando as Escrituras como linguagem para falar do Cristo de Deus, anunciaram a sua condição divina, o sentido redentor da sua Morte e a sua doutrina que levava à perfeição aquela que “foi dita aos antigos” (Mt 5).


            7) Gêneros literários
O nosso manual teológico, isto é, a Bíblia abre-se com uma parênese catequético sinagogal. A linguagem é didático sapiencial. A narrativa da criação utiliza o mito egípcio do ganso que rompe o ovo da criação enquanto emite o seu grito descrito em forma onomatopéica (RE-RA), como resulta claro na lingua hebraica (hbr.: bereshit barah). Também, a linguagem mítica está na insistência em separar o dia da noite, a luz das trevas.
Gn 2 utiliza o mito para descrever o lugar no qual Deus coloca o homem e para simbolizar, através da árvore da ciência do bem e do mal que é pela obediência aos mandamentos do seu Criador que o homem terá condições de sempre ter a vida; estas, também, expressas pela figura da árvore da vida no meio do Paraíso.
Gn 3 utiliza uma alegoria que originariamente descrevia as vicissitudes de Israel que provocaram o castigo do despojamento de tudo. Os castigos são descritos com os quadros da vida do homem: as dores do parto para a mulher, o suor da fronte para o homem. A figura do querubim é uma clara alusão à angelologia babilonense representada nas paredes externas dos templos.
A genealogia é mais um gênero literário que em Gn 1-11 é abundantemente utilizada, seja para apresentar a descendência de Caim, como aquela dos patriarcas e, depois da narrativa do dilúvio, a descendência de Noé.
Ao celebrar os patriarcas, o autor de Gn 5 descreve a descendência dos patriarcas utilizando a simbologia numérica.
Quando o autor sagrado sintetiza a história das origens do povo hebraico aparece, com ainda mais evidência, o enredo histórico. Trata-se da apresentação, em forma literária, de um momento da história que carregará consigo um ensinamento doutrinal, habilmente construída pelo autor. A genealogia faz parte desse gênero literário. Vemos que, por ela, o autor liga a figura de Abraão à descendência dos patriarcas para que a descendência de Abraão continue a representar o propósito de Deus de levar em frente o seu plano de salvação. Este é, até, bem sinalizado através da esterilidade das mulheres de Abraão, Isaac e Jacó. Temos, então o que Gn 12-50 quer apresentar, enquanto ligado ao desígnio de Deus formulado no prefácio da Bíblia.
No Êxodo, o enredo histórico é muito claro. Ele serve para ilustrar de que forma Deus intervém para salvar o homem da sua condição de escravidão. O enredo histórico, no início, inspira-se na experiência da escravidão de Babilônia e na gloriosa libertação que o Deus de Israel realizou. A Páscoa, instituída por Ezequias, fim do séc. VIII, como celebração a ser realizada no templo de Jerusalém, torna-se o seu memorial perpétuo. A peregrinação no deserto é uma figura em que há narrativas parenéticas com quadros em que lembram as instituições da Lei e da Aliança.
No livro dos Números temos uma coletânea de parêneses que completam os ensinamentos contidos no Êxodo.
O Deuteronômio apresenta, em forma de discursos exortativos, a síntese de todo o ensinamento contido nos livros da Lei, sendo ele a parte conclusiva da própria Torah.
O enredo histórico é claro em Josué, um livro que quer exaltar a providência de Deus que deu a Israel uma pátria. Tudo aconteceu desde as primeiras migrações, tipificadas pela figura de Abraão. Quando Israel ainda não era um povo Deus o transportava como sobre asas de águia e o protegia com amor de Mãe [El Shaddai (Gn 49,25; Ex 6,3)]. Depois de libertá-lo “com braço forte e mão estendida”, conduziu-o pelo deserto até lhe dar a terra, porque ele é Iahweh. É por isso que a conquista de Jericó e da Palestina é colocada depois da peregrinação no deserto. A conquista nunca ocorreu. A narrativa é épica e imaginária. Historicamente, no momento em que Jericó resulta, segundo a Bíblia, ter sido conquistada pelos hebreus, ela já era uma simples aldeia, resquício de uma cidade já conquistada e destruída há séculos.
No livro dos Juízes o enredo histórico é imaginário porque associado a uma coletânea de lendas. A sua narração é uma forma de instrução acerca dos atributos do Deus de Israel, paciente com o seu povo que continuamente volta à idolatria, tornado-se merecedor dos castigos que Deus lhe inflige para corrigi-lo, até enviar, mais uma vez, um libertador.
O enredo histórico continua presente também quando a história de Israel já é capaz de oferecer as datas dos seus acontecimentos. A utilização deste gênero literário é simplesmente aquele de transmitir ensinamentos morais. Isto se torna claro nos livros didático sapienciais como Jonas, Tobias, Judith e Ester.
Os livros dos Provérbios e da Sabedoria são eminentemente sapienciais. Daniel, também, é um livro sapiencial, embora apresente traços de enredos históricos. Ele se caracteriza, de fato, pelo gênero apocalíptico segundo o qual foi escrito.
Os Salmos são poesia que celebram os feitos do Senhor da forma que são lembrados na Escritura.
Os profetas são, de forma eminente, revelação, embora eles não deixem de escrever, cada qual, segundo o seu estilo literário.
A tradição literária do judaísmo continua nos livros do NT. Dessa forma, podemos dizer que nos evangelho temos um enredo histórico, suporte para tudo o que é revelação de verdades divinas, cuja linguagem é sapiencial.
Em Mt temos, adotada da tradição literária do judaísmo, a genealogia, o midrash, o enredo histórico e o mashal.
Em Mc sobressaem as narrativas.
Em Lucas temos reflexões sapienciais de cunho midrashico sobre a “origem de Jesus”, apresentada por Mt 1,18-23. Não é difícil constatar, na narrativa da Anunciação a relação que Lucas estabelece entre Isabel e Sara que tem um filho, embora estéril, porque “nada é impossível para Deus” (Cf. Gn 18,14). A esterilidade é, portanto, uma condição atribuída a Isabel para ressaltar o acontecimento esperado da Descendência.
Em João é evidente a preocupação de aprofundar os conceitos doutrinais acerca da Pessoa de Jesus, que já Paulo chamava Mistério de Deus. Jesus é a Palavra criadora, a Vida, Luz que resplandece nas trevas. Realiza em si a Profecia que o anunciava na condição de Cordeiro que carregaria sobre si os nossos pecados, o Filho do Homem, Glória de Iahweh que recebe do Pai o poder de julgar. O Templo do qual jorra o Espírito, a Fonte da Água da Vida, o Senhor do sábado, o alimento que desceu do céu e dá a vida ao mundo, o “Eu sou”. Ele, o Verdadeiro que é Vida, cura o cego de nascença, ressuscita Lázaro. A eminência da sua santidade prepara o sentido da sua Morte e a própria ressurreição. Pouco interessa a João aquilo que tanto nos preocupa saber de Jesus. A própria cronologia é simbólica: “No dia seguinte...No dia seguinte... No dia seguinte”. Não se trata de três dias, e sim, de um só Dia, o Dia do Senhor repetido segundo a simbologia numérica do três. O simbolismo volta a se repetir em Jo 2,1: “E no terceiro dia...”. É o dia da manifestação da Glória de Deus, a partir dos sinais, aos quais Maria, pela sua mediação, dá início, a Mulher, a Mãe do Filho do Homem que, aos pés da Cruz, é chamada a ser a Mãe da Igreja.
A apresentação de Jesus, na condição de Cordeiro que realiza o Dia do Senhor, o quadro das Bodas de Caná, momento em que Jesus manifesta a sua Glória com o primeiro dos sinais, nos indicam que João constrói a apresentação teológica de Jesus através de narrativas que se caracterizam pela linguagem figurativa. Isto volta a acontecer no episódio da purificação do templo (Jo 2,13-22). A simplicidade dos elementos narrativos do encontro de Jesus com Nicodemos, evidencia a forma literária adotada por João, ou melhor, pela reflexão da escola joanina. A narrativa didática volta a estar presente em Jo 4 com os elementos do poço, da água, dos dois dias ao longo dos quais Jesus permanece com os samaritanos, porque no terceiro dia é o segundo sinal, na Galiléia, em Caná.
A cura do paralítico com os seus 38 anos de espera, que quando volta a reencontrar Jesus recebe a recomendação de não mais pecar para que não lhe aconteça o pior, introduz o ensinamento do Senhor do Sábado, o Criador que “faz o que vê o Pai fazer”. É uma sinalização da condição divina do Filho do Homem, Aquele que como “Unigênito Deus vive voltado para o Pai” (Jo 1,18).
A catequese sobre a Eucaristia de Jo 6 está toda fundamentada na condição divina argumentada em Jo 5. Jesus é Aquele que desce do céu e dá a vida ao mundo, na condição de enviado do Pai, o Filho do Homem, consagrado pela unção do Espírito. Ele será o Templo do qual jorrará o Espírito, em virtude da sua imolação. Simbolismos, todos eles ligados à festa das tendas, à serpente levantada da terra, ao maná, que sustentam a apresentação da teologia da necessidade do novo nascimento, na água e no Espírito, da Morte redentora de Jesus, da Eucaristia.
Assim é da cura do cego de nascença, que, evidentemente, está relacionada aos cegos que são curados, segundo a narrativa sinóptica. Assim é da ressurreição de Lázaro relacionada à filha de Jairo, em Mt e Mc, e ao filho da viúva de Naim, em Lc.
O gênero literário não nega a historicidade do fato. Detectado, contudo, focaliza a doutrina que, pela linguagem figurativa ou pela narrativa, quer ser apresentada.

A Igreja medita o Mistério da Pessoa divina do seu Mestre e Senhor por meio das Escrituras, o manual antológico de toda a tradição da fé judaica. O Apocalipse é uma escatologia explicada em linguagem apocalíptica que explora a Escritura a ponto de torná-la sua linguagem.

8) O enredo histórico
                Após termos falado da linguagem sapiencial, merece a nossa atenção, entre os gêneros literários que os compiladores da Bíblia utilizam, o artifício literário do enredo histórico. De fato, quem não fica perplexo diante da narrativa de Gn 12,10-20? Isto não aconteceria se lembrássemos o artifício literário da genealogia que o redator de Gn 1-11 utilizou. Trata-se, em ambos os casos de situações históricas construídas com a finalidade específica de transmitir, através delas, ensinamentos doutrinais. Pela genealogia, Abraão é ligado à Descendência, que é apresentada através de uma alegoria que retrata originariamente a rebeldia de Israel ao seu Deus, mas que, de fato, é o “Cordeiro imolado contemplado desde antes a criação do mundo”, alguém que esmagará a cabeça da serpente para resgatar a humanidade do domínio do Maligno. A genealogia é um elemento cultural, utilizado pelo autor para lembrar que há uma continuidade de ação desde que Deus  determinou-se, no seu Desígnio, salvar a humanidade mediante um dos seus membros, alguém que a reflexão sapiencial chega a profetizar, inspirada pela profecia de Is 7,14; mistério que somente será desvendado por Jesus Cristo, a partir do momento em que a condição divina manifestada pela sua ressurreição explicitará a sua Encarnação. A genealogia desta descendência é celebrada com a solene proclamação da tríplice benção que Deus efunde sobre os Patriarcas, através da linguagem da simbologia numérica. Ela continua a ser utilizada com a descendência de Noé, até chegar a Abrão, filho de Taré.
                Entendemos claramente que estamos diante de um elemento de um enredo histórico quando notamos que é lembrado, juntamente com os nomes programáticos de Abrão e Sarai, o nome do avo de Rebeca, Nacor (Gn 11,29; cf. 24,24). O enredo histórico é, portanto a maneira de formular uma situação, utilizando a habilidade literária de explorar as condições das civilizações em que será colocada uma narrativa didática. A narrativa de Gn 12,10-20 visa ressaltar a assistência de Deus sobre os seus servos. Nem o mais poderoso homem do mundo consegue impedir que se realize o plano de Deus. Quando Israel nem sequer era um povo, Deus o protegia com asas de águia (Dt 32,11).
                O enredo histórico é uma constante na Bíblia. Aparece de forma clamorosa na narrativa do sacrifício de Isaac (Gn 22), no sacrifício de Jefté (Jz 11).
                Ele se apresenta na apresentação das “origens” do povo de Israel. Os patriarcas Abraão, Isaac e Jacó, são nomes que representam os grupos das tribos que, em diferentes épocas, migraram da Mesopotâmia até à Palestina. A percepção deste artifício literário nos ajuda a entender o artifício da condição estéril das respectivas esposas. Serve para transmitir o conceito da unilateralidade da ação de Deus na realização do seu Plano de salvação. O enredo histórico se apresenta de forma contundente no Êxodo. Nunca, tribo nenhuma de Israel esteve no Egito. Simplesmente, a condição de escravidão e libertação do jugo de Babilônia, é projetada numa condição de escravidão naquele território. Sinal claro disso tudo é o fato que as condições de vida vividos pelos judeus naquela terra são descritas segundo os costumes do tempo pós-exílico. Este sentido alegórico é claramente sinalizado por Ap 11,8, onde a Cidade a Grande, que representa a Besta que persegue os mártires, é chamada de Babilônia ou Egito. O Livro de Daniel é uma amostra clara de um enredo histórico construído. O seu intuito é valorizar a interpretação profética dos acontecimentos do tempo de Antíoco IV Epífanes do séc. II. A desenvoltura com a qual os autores constroem o enredo histórico nos mostra que ele é um simples instrumento para falar de verdades doutrinais. Ao mesmo tempo a sua habilidade literária nos revela quanto dominavam este gênero literário e, consequentemente, quanto ele se tornou oportuno no ensino catequético. Torna-se necessário nos familiarizarmos com ele, para que saibamos reconhecê-lo, também, nos autores do NT. Eles nos transmitiram verdades segundo o estilo da reflexão sapiencial da tradição judaica.
                Jo 2,1-12 é fruto de um trabalho literário onde temos, em primeiro lugar, a intenção de anunciar a ação irresistível de Deus ao dar início à realização do seu Plano. Em segundo lugar, de ressaltar a função da Mãe de Jesus, na condição de Mulher, enquanto são apresentados os elementos da “hora”: Maria, a mãe de Jesus chamada a ser Mãe da igreja, a manifestação da Glória, o dom do Espírito que o Esposo faz à sua Igreja. O enredo histórico é criado e é parte de uma narrativa alegórica.
                Quando chega o momento da Morte de Jesus, a narrativa das Bodas de Caná é determinante para entender qual é o sentido doutrinário de ambos os quadros e quanto eles se complementam.
                Praticamente, o evangelho de João é um manual catequético que visa promover a nossa fé em Jesus Filho de Deus, para que tenhamos vida em seu Nome (Jo 20,30-31).
                A purificação do Templo (Jo 2,13-22) deve ser valorizada como um quadro que catequeticamente ajuda entender de que forma Jesus julgava a prática do seu comércio. Temos uma dramatização que, ao mesmo tempo, serve para anunciar o que Jesus se tornará pela morte que os seus inimigos lhe infligirão: “Destruí este templo e Eu em três dias o reedificarei” (2,19). É importante notar, enfim, que, em relação aos sinóticos, João apresenta o episódio, por razões catequéticas, no início da vida pública de Jesus que, ressuscitado, sempre no terceiro dia, subirá ao céu do monte que se confronta com o monte de Jerusalém (Ez 11,23), o Monte das Oliveiras.
                Através desta análise é possível relativizar a historicidade dos milagres, para ressaltar o conteúdo doutrinal que a sua ocorrência, lembrada, quer transmitir. Admiti-los simplesmente, cria um desequilíbrio que acentua demais o poder taumatúrgico de Jesus. Deveríamos ver neles, sobretudo, “os sinais” que nos levam a nos interessarmos pela doutrina de Jesus que, através das suas narrativas, o evangelista quer expor.


9) Os dados historiográficos de Israel
A terra de Canaã conhece, ao longo do segundo milênio a.C., a progressiva ocupação do seu território por parte de tribos nômades vindas da Mesopotâmia. A história da Palestina, por sua vez, conhece tribos confederadas que chegam a viver debaixo da égide de um rei. A monarquia, com a morte do rei Salomão conhece a separação entre Samaria e Judá. Apresentam-se, então, no cenário histórico, dois fenômenos importantes: o profetismo e a reflexão sapiencial que produz, no reino do norte o núcleo central do Deuteronômio. Os assírios ocupam a Samaria em 722. O Deuterônomio é então conhecido, também, no reino do sul e provoca a centralização do culto, tendo como ponto de referência o templo, no reino do de Ezequias, fim do século VIII. No fim do século VII, Josias empreende a reforma religiosa em Judá. Nabucodonosor conquista Jerusalém em 587 a.C. Com a volta dos judeus do exílio de Babilônia, para a Judeia, em 538 a.C., e a reconstrução do templo de Salomão, desenvolve-se um processo religioso que se relaciona ao Deus da história de Israel e o reconhece como o seu único Deus. Os profetas dele falam de uma forma segura, que permite o desenvolvimento da fé monoteísta entre os judeus.
            A reflexão sapiencial dos escribas descobre, então, a linha pedagógica do Deus de Israel, a quem atribui o dom da terra. Intui, também, que a vocação de Israel é aquela de anunciar o verdadeiro Deus a todos os povos e, enquanto reflete sobre a vocação de Israel, a sua rebeldia, o castigo e a purificação pelo exílio, descobre que a história de Israel é paradigmática em relação à história da humanidade que, portanto, precisa de um Salvador. A reflexão sapiencial dá origem a um manual teológico que fala de uma condição da qual Deus quer resgatar o homem. Surge a intuição de uma condição ideal traída, de um Salvador exigido pela própria natureza do Deus Criador. Os conceitos fundamentais estão no prefácio de toda a Bíblia: Gn 1-11. 1º) O criador revela ser a Bondade onipotente e sapientíssima que manifesta o seu esplendor na beleza do universo. 2º) O homem encontraria a sua realização pela contemplação das obras de Deus porque, por ela, encontraria a motivação para viver segundo os seus mandamentos. 3º) A história da humanidade mostra que esta se afastou do seu caminho. A sua culpa pode ser tipificada pela história de Israel, o povo que Deus chamou para ser o seu povo, a quem deu a terra, prometeu a vida sob a condição de que observasse os seus mandamentos. Por não ter feito isso, conheceu o castigo. Deus, contudo, porque fiel a si mesmo, desde sempre pensou numa redenção através de um membro da descendência da mulher.  4º) Enquanto, portanto, por causa da sua rebeldia, o homem deveria, por si,  conhecer o castigo da morte e da destruição, Deus se compraz com o homem Justo que encontra graça diante dos seus olhos: Noé, figura que desenvolve o conceito inicial de Descendência de Gn 3,15. A relação de Israel com esse Plano de Deus é estabelecida através do artifício literário da genealogia. Por meio do artifício literário do enredo histórico, que apresenta as “origens” do povo de Israel através das figuras de Abraão, Isaac e Jacó, Abraão é ligado à descendência de Adão por parte de Set. A genealogia dos patriarcas não significa que necessariamente a Descendência da mulher esteja ligada ao povo hebraico. Significa somente que, enquanto Deus a perpetua, ela é o sinal da fidelidade que Deus tem com a sua promessa. Segundo esta promessa ele poderá até nascer entre os da estirpe da Davi, filho de Abraão, contudo, será Deus que a suscitará segundo o seu Poder (Mt 1,18).
            A linha teológica da Bíblia, depois de ter apresentado a “origem” do povo eleito, tem a sua continuidade na teologia apresentada pelo livro do Êxodo. Sempre através da história de Israel, que é aquela da história da salvação e não aquela apresentada pelo enredo histórico, as narrativas catequéticas ilustram a condição de escravidão, a ação de Iahweh que liberta, a instituição da Páscoa, como memorial perpétuo, a travessia do Mar Vermelho, a presença do Espírito que conduz o povo pelo seu líder, Moisés, pelo alimento providenciado e a presença estabelecida com a tenda. 
 Vemos que o Deuteronômio considera as narrativas do Êxodo de natureza catequética. De fato é o seu núcleo central que as inspira. Há exegetas que peremptoriamente negam ter tribo alguma de Israel descido ao Egito em tempo algum, sobretudo porque aquilo que parece ser uma vitória em relação ao faraó, a dizer, a saída do Egito, é narrada pelo autor do Êxodo segundo um enredo histórico que supõe condições históricas para um tempo em que o Egito forçava a saída de povos estrangeiros da sua terra. A própria Bíblia de Jerusalém, nas notas de rodapé, observa que o enredo histórico das narrativas, construído pelo autor, não é do tempo em que teria ocorrido o êxodo, e sim do tempo da composição literária do texto, portanto de séculos posteriores. A linguagem bíblica será perfeitamente entendida pela Igreja Apostólica. Será, portanto, segundo esta mesma linguagem que anunciará a Boa Nova da salvação (1Pd 1).
 No tempo em que o autor situa a conquista da cidade de Jericó, esta era um lugar sem muralhas, porque conquistada por outro povo, há muito tempo. A narrativa do livro de Josué é colocada depois do Pentateuco, porque é ali que se encaixa na moldura cronológica da Bíblia. A mesma coisa acontece para a coletânea das narrativas lendárias do livro dos Juízes.  Temos que entender que o enredo histórico é o elemento literário construído pelo autor que visa, de fato, por ele, nos transmitir as suas convicções doutrinárias. É dessa forma que devemos entender as narrativas que se apresentam também quando parece que a história está sendo citada de forma mais precisa, como acontece nos livros de 1,2Sm e 1,2Reis. Estas características da historiografia bíblica devem ser advertidas, também, nos livros do NT, porque, de fato, estamos diante de autores que dão continuidade à linguagem sapiencial segundo a qual os autores dos textos bíblicos se expressaram desde o seu início.
Insistir em querer tirar informações de cunho histórico de textos que visam apresentar doutrinas religiosas, a fim de montar uma historiografia, é um equívoco que chega a ser erro grosseiro quando são desclassificados textos da Escritura porque não correspondem aos nossos anseios. Uma pretensão temerária que reduz textos teológicos inspirados a meras biografias.


10) Gn 12-50. As “origens” de Israel, o povo no qual Deus dá continuidade às condições de um surgimento da Descendência.
            Esta segunda parte de Gênesis visa ligar Israel ao Desígnio de Deus de realizar a glorificação do homem através de um povo de escolha, pelo qual começa a se realizar a determinação de Deus de suscitar um salvador entre os membros da própria humanidade.
            A genealogia é o artifício literário que liga Israel ao Redentor, vislumbrado na narrativa eminentemente teológica de Gn 3. A figura do redentor está presente na mente do autor que em Gn 12-50 fala, de forma precípua, do povo do qual ele brotará. O sacrifício de Isaac não deixa de lembrar o Servo de Iahweh que Isaias II tinha anunciado.
            A natureza teológica dos textos se torna evidente quando consideramos que: 1º) a figura de Abraão é a idealização do hebreu que agrada a Deus; 2º) a condição de consaguineidade de Abraão, Isaac e Jacó é um mero artifício para definir quem é realmente Israel como povo; 3º) aquilo que parece ser historiografia é simplesmente um enredo histórico criado pela habilidade literária do autor.  Deve ser reconhecida a genialidade do autor que é capaz de sintetizar a origem de Israel com rápidas pinceladas, apresentando, ao mesmo tempo, com clareza, a sua função dentro do Plano de Deus, que visa a salvação do homem, para a manifestação da sua Glória (Ef 1,3-14). O intuito teológico do autor sobressai, também, pela repetida característica das mulheres dos patriarcas. Elas, todas, são apresentadas na condição de serem estéreis. DE fato, elas o são, não porque historicamente foi assim, mas porque o autor das “origens” de Israel as quis assim, a fim de ressaltar a unilateralidade da ação de Deus na realização do seu Desígnio. Esta peculiaridade é lembrada, no primeiro quadro que encontramos em Lucas, quando também Isabel é apresentada na condição de ser estéril.
            Apresenta-se Gn 12-50 como uma coletânea de narrativas didáticas pelas quais Abraão é a figura do perfeito israelita, obediente às ordens de Deus. Ele é amado por Deus que o protege fazendo que, contra toda esperança, ele prevaleça contra os poderosos. A característica da narrativa didática permite que seja acrescentada a episódios de tradição mais antigas a narrativa do dízimo que Abrão paga a Melquisedec. A prática da circuncisão é incutida como um sinal de pertença de cada israelita ao povo de Deus. Segundo a sua origem religiosa, qual pretendida pela narrativa de Gn 17, se torna motivo de empenho em viver na fé no Deus da história de Israel, à semelhança de Abraão a quem Deus concedeu a descendência e a terra. O sacrifício de Isaac visa exaltar ainda mais a fé de Abraão, porque Deus, por não ter o seu servo recusado em sacrificar o seu único filho, o torna pai de uma multidão de povos.
            As narrativas chegam a ter a beleza encantadora de contos literariamente aprazíveis, a ponto do leitor quase esquecer o seu intuito didático. A procura de Rebeca para que se torne esposa de Isaac, como também a labuta de Jacó para ter Raquel visam incutir que se evitem casamentos com mulheres de religião pagã.
            A história de José acaba sendo colocada no livro das “origens” de Israel porque existe um paralelismo entre a sua e a história de Abraão. Deus reverte a sorte dos seus servos de uma forma tão inesperada, qual poderia ser cogitada somente por ele, a ponto de suscitar nos israelitas a veneração daquele que deve ser chamado de “El shaddai”: o Deus que, no seu poder, protegeu os seus servos, quando ainda não eram um povo, animado por uma ternura de um amor maternal (Gn 49,24-25). 


11) Origem da nossa religião
            A nossa religião tem sua origem na experiência que o povo hebraico teve do Deus único e verdadeiro.
            A ação profética do tempo do reis que, sobretudo, se acentuou com as deportações (Samaria, 722 a.C; Judá 587 a.C), definiu, para sempre, de forma objetiva a certeza de Israel de que ele vinha sendo objeto de uma revelação. O Deus que se revelava era aquele que vinha se manifestando ao longo da sua história e que não podia ser considerado simplesmente um dos deuses entre as divindades de todos os outros povos.
            A reflexão sapiencial dos escribas, a partir da revelação dos profetas, ao longo do exílio  da Babilônia e depois, aprofundou a compreensão do Deus de Israel seja refletindo sobre a história do seu povo, como, também, ilustrando os seus atributos pela celebração das obras da criação, os feitos de Iahweh que levaram à formação de um povo, os que nem sequer podiam ser considerados como um povo. A reflexão sapiencial dos escribas conseguiu ver nas migrações das tribos dos ancestrais de Israel, que depois acabaram constituindo as tribos de Israel, da Mesopotâmia até à Palestina, a maneira pela qual o Criador foi aglutinando numa nação os que eram destinados a ser o povo que anunciaria a todos os povos o verdadeiro Deus, Único existente.
O material que acabou sendo escrito acerca desse assunto, peneirado por escolas e redatores, veio a formar a coletânea dos livros das Escrituras Sagradas. A sua compilação não responde aos anseios de quem procura nela uma resposta ao desejo de conhecer a origem da humanidade. Ela visa somente apresentar uma visão teológica pela qual é possível entender que o mundo depende da ação criadora daquele Deus que, ao revelar-se a Israel como Criador de tudo, pela sua criação manifesta ser onipotente, sapientíssimo, resplendor e glória e bondoso.
            Uma vez que o sábio hebreu intui que a história de Israel é paradigmática quanto à história da humanidade, toma aquilo que era uma simples alegoria para ilustrar a história de Israel (Gn 3), para explicar de qual culpa o homem se mancha diante do seu Criador e qual é a condição na qual acaba caindo. Enquanto a alegoria ilustra todo o amor paciente do Deus de Israel com o seu povo, ela serve para anunciar uma profecia de valor inestimável: a humanidade será salva pela ação de um dos seus membros que, inexplicavelmente, porém até que tudo se realize no homem Cristo Jesus, libertará os seus irmãos da escravidão do Mal.
            No quadro grandioso do dilúvio, que é uma figura daquilo que aconteceu a Israel quando varrido da face da terra que Deus lhe deu, a figura da Descendência da Mulher é representada por Noé que, no Plano de Deus, é destinado a ser o “Princípio, o Primogênito dos mortos” (Cl 1,18b). Estamos diante de uma linguagem figurativa que quer expressar uma altíssima teologia, surpreendente pelo tempo em que ela é formulada. Tudo, Criador, promessa de uma Descendência, humanidade destinada a ter um Cabeça por quem Deus estabelece uma aliança eterna com a mesma, a ponto de garantir que nunca a destruiria, varrendo-a da face da terra, constitui-se no prefácio da Bíblia. Estamos diante de uma premissa da visão teológica que os livros das Escrituras Sagradas irão paulatinamente desenvolver, a partir da história dos patriarcas. Deus, que é a Bondade que sempre age no amor, porque fiel a si mesmo, não abandona o homem, não obstante a sua rebeldia e a perversão na qual, consequentemente, se lança e pela qual decai. Pelo contrário, desde sempre, considera enviar um Redentor, segundo o “Desígnio da sua infinita sabedoria, para que o homem chegue a ser seu filho adotivo no Amado” (Ef 1,3-14).
            O Plano de Deus tem seu começo com a escolha de Israel para ser o seu povo. O escriba ilustra o processo histórico das migrações das tribos nômades de um único clã com as figuras de Abraão, Isaac e Jacó. A interpretação da história é teológica. A esterilidade das mulheres dos patriarcas serve para ilustrar a ação unilateral de Deus em levar em frente o seu plano.
            A história da libertação do Egito de tribos que para  lá migraram inicialmente constitui-se numa narrativa que resume em si a ação providencial do Deus de Israel em favor do seu povo. A ocupação da terra que se deu de forma gradativa, em tempos diferentes, é celebrada sob a forma de uma conquista que Deus promoveu em favor do seu povo (Sl 44,2-9).
            A peregrinação no deserto, no tempo do exílio e após o exílio, é explorada caqueticamente, enquanto é preenchida de episódios que visam admoestar o povo de Deus, purificado pela dolorosa experiência das deportações, para que sirva com fidelidade o seu Deus, em vista, agora, de uma Pátria definitiva. Moisés, que na história da libertação do Egito e ao longo da peregrinação no deserto, tem uma ligação com um possível líder, de fato é uma figura que ajuda entender quanto Deus agiu para levar “aquele que nem sequer era um povo, a se tornar o Israel de Deus”.
Adão, Noé, Abraão, Moisés não são personagens históricos e sim caracteres de uma História que a reflexão sapiencial constrói embasada num núcleo histórico. Esse núcleo é interpretado teologicamente, à luz da revelação que Deus fez de si ao longo de toda a história de Israel. O Deus invisível agia pedagogicamente, provocando uma interação do homem com ele, através das suas progressivas manifestações. O sábio as detectou e as apresentou, criando uma teologia que sistematizou da forma que nós encontramos na Bíblia, que deve se tornar o nosso manual catequético. Nas Escrituras Sagradas está exposto, teologicamente, o Plano de Deus em relação ao homem, a partir da criação do mundo. É dessa forma que conhecemos a Deus, que não é um Deus abstrato, e sim, o Deus da História de Israel que, em síntese, começou a se revelar um Deus de amor maternal (El Shaddai) (Gn 49,25) nos alvores daquele que “ainda não era um povo”. Carregou-o, como uma águia, sobre as suas asas. A sua apresentação acontece com a criação de personagens da História, a fim de oferecer uma interpretação teológica de tudo o que o único Deus existente quis fazer acontecer em favor de Israel para que, na condição de povo escolhido, fosse o seu arauto para todos os povos. A História dos Patriarcas é uma teologia que visa apresentar a ação de Deus que, de forma unilateral, vai realizando o seu Plano. As tribos nômades que, ao longo dos séculos se deslocaram da Mesopotâmia até a Palestina e lá, gradativamente, se estabeleceram, estavam sendo conduzidas pelo seu Deus, em vista de um Plano que devia se concretizar. Essa visão teológica é apresentada, em síntese, com as figuras de líderes ideais que, até, são interligadas entre si por meio de uma genealogia: Jacó, filho de Isaac, filho de Abraão.
 A partir do momento em que a reflexão sapiencial intui que Israel é o povo que o Deus Criador de tudo escolheu para ser o seu povo, a genealogia remonta até às origens da humanidade. Trata-se de um artifício literário que utiliza a genealogia para estabelecer a estrita e necessária ligação do instrumento da salvação que Deus escolheu, com toda a humanidade. Abraão, portanto, é filho de Lamec, filho de..., até chegar a incluir todo e cada homem. A forma pela qual todo e cada homem está incluído no plano de Deus explora a procriação, no que diz respeito à sua origem e multiplicação.
Vemos, aqui, claramente, como a teologia utiliza imagens para expressar uma verdade. Elas são tiradas da vida do homem, sem se importar se realmente aquela foi a forma original do princípio da humanidade. Atentos portanto a sempre advertir a distinção entre a história cronológica e a forma histórica adotada para apresentar a ação de Deus em relação à humanidade, estamos em condições de entender o que a reflexão sapiencial quer nos transmitir através da literatura que produziu. Também, o esquema teológico das escolas que compilaram as Escrituras Sagradas, para torná-las o nosso manual catequético, deve ser levado em conta para que possamos compreender que as Escrituras Sagradas querem, antes de tudo, nos transmitir uma teologia que, nesse caso, através do relato de tudo que os profetas anunciaram em nome do Deus de Israel e a reflexão sapiencial que interpretou o patrimônio da fé do povo de Deus, é o próprio pensamento de Deus. Dessa forma, o homem é enriquecido com verdades seguras acerca do Criador, do homem, da Redenção que se tornou necessária diante da rebeldia do homem, da condição divina do homem Cristo Jesus, da vocação da humanidade à participação da própria vida de Deus.
À luz dos princípios gerais acima lembrados, as Escrituras Sagradas se tornam ainda mais inteligíveis quando temos presente a origem histórica e literária das suas partes:
Gn 1, na sua origem, é uma proclamação das obras da criação que visa motivar os fiéis a observar o repouso em dia de Sábado, para, uma vez por semana, nutrir o seu espírito através da contemplação das obras de Deus.
Gn 2 é uma teologia antropológica que estabelece a relação de dependência da criatura do seu Criador como condição do seu crescimento e realização.
Gn 3, na sua origem, é uma alegoria que retrata a história de Israel que, em lugar de escutar o seu Deus, deu ouvido à voz do Maligno, “a antiga serpente, o Diabo, Satanás” (Ap 12,9). Isto acarretou a expulsão da Terra. A alegoria é assumida pelo compilador das Escrituras Sagradas que quis fazer da Bíblia um manual catequético. Por ela ilustra a condição em que se lançou a humanidade, como o sugere a sua história de devassidão, perversão, miséria e idolatria.
Gn 4 apresenta, em síntese, a história do homem, feita de realizações e de culpas sempre mais numerosas.
Gn 5 é um canto à Descendência, através da linguagem da simbologia numérica, que quer celebrar a tríplice benção que Deus lançou sobre cada patriarca.
Gn 6-9 é a apresentação do fim ao qual, por si, seria destinada a humanidade por causa da sua perversão e iniquidade. Dela a preserva exatamente o último membro da genealogia que vem a ilustrar de que forma se realiza o Plano de Deus em relação ao homem. Noé explicita o que  a figura da Descendência da Mulher (Gn 3,15) já quis indicar. A humanidade que Deus quer criar para si tem origem de uma Cabeça pela qual Deus quer estabelecer uma aliança eterna com a humanidade (Gn 10-11).
Gn 12-50 é uma reflexão teológico-sapiencial que narra “as origens” do povo de escolha. A ação unilateral de Deus em levar em frente o seu plano é claramente estigmatizada pelas figuras de Sara, Rebeca e Lia, as mulheres estéreis, respectivamente, de Abraão , Isaac e Jacó.
Êxodo e Números são coletâneas de parêneses catequético-sinagogais. Os rabinos as compuseram tendo como pano de fundo a peregrinação no deserto que as tribos que saíram do Egito tiveram que empreender até chegar à terra prometida.
O Deuteronômio expõe os ensinamentos das narrativas de Êxodo e Números em forma de discursos parenéticos.
A reflexão sapiencial de cunho histórico continua com os livros dos Juízes.
Também, 1 e 2Sm são reflexões sapienciais. Constatamos que os elementos históricos se  tornam mais ligados à realidade dos acontecimentos do que à lenda.
1 e 2Rs nos mostram claramente qual é a relação entre fatos e teologia. O fato serve para ilustrar qual é a vontade de Deus ao longo da história de Israel, enquanto apresenta a condição do homem que Deus quer salvar, na fidelidade ao seu amor, porque ele é Bom.
            A leitura teológica que os judeus faziam da sua história se torna a condição ideal para a Igreja apostólica ver nas figuras do AT a ilustração profética de tudo o que aconteceu com Jesus: à luz da sua ressurreição, foi entendida a teologia contida nas Escrituras Sagradas, expressa em linguagem figurativa de cunho semítico.
            Os gentios, aos quais a Igreja Apostólica transmitiu o anúncio do verdadeiro Deus, têm que entender que devem se inteirar com a natureza da linguagem bíblica, porque é por ela que o Deus único existente falou de si. Do próprio Deus, se queremos aprofundar a sua compreensão, devemos conhecer as suas prerrogativas através de tudo aquilo que o antigo Israel captou pela revelação dos seus profetas, pelas reflexões dos sábios sobre as suas origens, pelos feitos que Deus realizou, por tudo aquilo que Israel celebrou com seu culto no templo e expressou através dos salmos (teologia expressa em forma de oração).
            A Bíblia é, antes de tudo, uma teologia que visa ilustrar a salvação que Deus quer realizar em favor da humanidade, não obstante a sua atitude rebelde. Ao longo da história da salvação, Deus vai revelando o seu Nome, isto é, aquele que Ele é, na condição de Criador. Com Jesus, chega até a nos falar da sua Vida Trinitária. Em relação ao homem, a informação é imensa. Um dom que podemos avaliar em toda a sua preciosidade quando o comparamos àquilo que o próprio homem chega a falar de si pela filosofia, pelas intuições religiosas de uns ascetas e, ultimamente, pela psicologia. Ao homem é dado compreender, pela revelação, que é criatura. Deus o conhece em cada fibra do seu ser; a ele fala pelos seus profetas e pelas intuições dos sábios do seu povo, para lhe indicar o caminho da sua realização. Em Jesus, na condição de Pessoa divina do Filho que assume a natureza humana, se torna o Modelo dessa realização que declara conduzir pessoalmente pelo seu Espírito, a partir do momento em que o homem decide segui-lo carregando a cruz de cada dia, isto é, tornando o seu corpo um sacrifício espiritual, ao procurar sempre o que é bom agradável e perfeito aos olhos de Deus (Rm 12,1-2). Em Jesus o homem tem, também, a condição de entender o extremado amor daquele que é a Bondade. Fiel a si mesmo, Deus entrega seu próprio Filho, mostrando qual é a natureza do seu amor ao mundo. Pela Lei que nos relata, a Bíblia apresenta ao homem a vontade de Deus. Obedecendo a tudo aquilo que lhe prescreve, o homem terá a vida. Com Jesus, o Mestre e Guia que leva a lei à perfeição, isto se realizará de forma plena. Puro de coração, verá a Deus; pela mansidão, como um cordeiro levado ao matadouro que não murmura, herdará a terra; perdoando as ofensas, alcançará misericórdia. Se chegar a sofrer perseguições por causa de Cristo e do Evangelho, garantirá para si o Reino, isto é, reinará com Cristo.


12) A reflexão sapiencial da Igreja Apostólica
            Jesus reconhece a inspiração das Escrituras. Cita-as no seu ensinamento e nos seus diálogos com os escribas e fariseus. Depois dele, os Apóstolos, sob a iluminação do Espírito Santo, retomam a Profecia e a reflexão sapiencial da tradição hebraica e, utilizando a mesma linguagem da Escritura, exploram a doutrina anunciada por Jesus para proclamar a sua condição messiânico-divina. Dessa forma a Escritura, que agora inclui, também, a reflexão sapiencial da Igreja Apostólica, na condição de manual antológico da Tradição, apresenta uma exposição teológica inspirada em toda a sua plenitude.
            O reconhecimento de Jesus quanto à origem divina da Escritura, uma vez que se torna incontestável diante da manifestação da sua condição divina pela sua ressurreição, torna-se, por sua vez prova da condição divina da doutrina proclamada pelos Apóstolos, uma vez que nos transmitem a sua mensagem na condição de quem Jesus chamou para que estivessem com ele desde o princípio. Com eles, o Espírito Santo age da mesma forma segundo a qual agiu com os profetas. Disto os Apóstolos têm plena consciência e no-lo ensinam citando a promessa que dela lhes fez Jesus e descrevendo a forma pela qual ela se realizou após sua ressurreição. Na condição de Apóstolos e profetas, eles anunciam tudo o que Deus quer que saibamos acerca da realização da profecia (1Jo, 1,1-3;4,6), enquanto os evangelistas o sintetizam nos seus escritos, segundo a mais pura tradição da reflexão sapiencial em Israel.
Pode-se resumir, segundo o seguinte esquema, a doutrina que os Apóstolos nos transmitiram:
1º) O Deus criador é Espírito (Jo 4,24) que se manifesta pela ação do Pai e, até de forma visível, pela ação do Filho (perspectiva inspirada por Is 40-41).
2º) O Deus criador, não abandona o homem aos seu destino de morte; o socorre (Prece eucarística VII), para que se revele em toda a sua Bondade, pela fidelidade a si mesmo. A largura, a altura e a profundidade do seu amor se manifestam em Jesus, o Filho que o Pai consagra e envia. O Justo leva à perfeição a humanidade assumida pela encarnação e pela obediência até a morte de Cruz. Dessa forma leva consigo os seus no triunfo, enquanto arrasta acorrentados, atrás de si, Principados, Potestades, Tronos  Dominações e Virtudes. Anjos, Arcanjos e Querubins o servem. E os Serafins o adoram.
3º) A natureza do Redentor é anunciada por Is 7,14: Jesus é o Emanuel, prefigurado pela Descendência da Mulher (Gn 3,15), por Noé, o Justo que, pela arca, salva o Resto.
4º) Israel é o povo que Deus escolhe para realizar a salvação da humanidade (a universalidade da salvação e a vocação de Israel são intuições que devem ser atribuídas à reflexão sapiencial dos homens de fé do AT, que a fundamentaram nos anúncios proféticos).
5º) No livro do Êxodo, a intuição sapiencial desenvolve a condição de escravidão em que o homem caiu por causa da sua rebelião. Deus mostra de que forma realiza a libertação do homem da escravidão, enquanto peregrina rumo à terra prometida. É a retomada de Gn 3 onde a história da humanidade é retratada, de forma paradigmática, pela alegoria de Adão e Eva no Éden. O sentido catequético das suas narrativas é lembrado pelo Deuteronômio (Dt 31,16-18) e explorado pelo autor da Carta aos Hebreus (Hb 3-4).
À luz da experiência do exílio, os compiladores do manual teológico, enquanto utilizam parêneses catequético-sinagogais, descrevem a intervenção de Deus em favor da humanidade escravizada pela Cidade terrena (Ap 11,8). A História religiosa de Israel, neste caso, se torna paradigmática em relação à história da humanidade que Deus quer salvar. A ação irresistível de Deus terá como memorial perpétuo a Páscoa. Deus faz atravessar o Mar Vermelho, enquanto o seu Espírito conforta Israel. No Monte Sinai é celebrada a aliança selada com o sacrifício e a aspersão do sangue dos animais sacrificados. O maná é o alimento que Deus dá para o sustento do seu povo. A tenda marca a presença do Deus de Israel que já esteve no meio do seu povo a partir da consagração do templo de Salomão.
 O Levítico é incluído no Pentateuco para registrar as leis do culto. O livro dos Números é uma complementação do Êxodo, na condição de coletânea de parêneses catequético-sinagogais.
 O Deuteronômio apresenta, em forma de exortação, tudo o que foi ensinado pelo Gênesis, Êxodo, Levítico e Números.          Em relação a tudo o que foi ensinado pelos livros que o precedem é uma coletânea de reflexões atribuídas a Moisés que visam ressaltar a grandeza e a importância dos ensinamentos. É lembrado a Israel o privilégio de conhecer o único Deus. Por isso, deve fugir da idolatria. É lembrado a Israel que deve observar os mandamentos de Deus, condição para lhe agradar e ser abençoado por ele. As lembranças das peregrinações e dos acontecimentos de Êxodo e Números têm esta finalidade.
 6º) O livro de Josué, dentro da compilação da Bíblia, apresenta o momento do seu enredo histórico em que se realiza a promessa da terra por parte de Deus. De fato, é exaltação do que a reflexão sapiencial considera a ocupação da Palestina que se deu em virtude de migrações de tribos que acabaram constituindo a confederação das mesmas sob a égide de Saul, Davi e Salomão. Celebração épica que reconhece o dom da terra que Deus fez a Israel. Retoma, neste caso, o conceito teológico apresentado quando da vocação de Abraão (cf. Cr 20,7-8).
  7º) O livro dos Juízes está atrelado à teologia do Êxodo, enquanto sublinha ainda mais a compaixão,a paciência e a bondade do Deus de Israel com o seu povo.
 (8) 1-2Sm; 1-2Rs descrevem a degeneração de Israel provocada pela conduta de reis, juízes, ricaços prepotentes, sacerdotes displicentes e povo idólatra. Condição que provocou a reflexão que encontramos em Gn 3 e a consequente literatura religiosa do Êxodo, Números, Levítico e Deuteronômio, material literário que ajudou o autor do Apocalipse a escrever Ap 8-9.
(9) Os Profetas revelam a presença do Deus de Israel que, segundo a sua ação onipotente e sapientíssima, é capaz de regenerar um povo idólatra até torná-lo instrumento de salvação para todos os outros povos.
(10) O Livro de Daniel sintetiza em si todos os elementos deste processo chegando até a apresentar o desfecho definitvo. A sua teologia é levada às suas últimas conseqüências pelo Livro do Apocalipse.
(11) Os livros sapienciais revelam a perfeição do pensamento religioso do povo judaico, claro sinal de uma ação do Espírito.
(12) Para a Catequese Apostólica, a Igreja é o Novo Israel que tem sua origem na ação de Jesus, o grande profeta que surgiu em Israel e que revelou ser o  Justo que não podia conhecer a corrupção. Ele é a Pedra que os construtores rejeitaram e que tornou-se a pedra angular.
(13) A Igreja Apostólica vive a sua história sob a lida de Jesus, “que esteve morto, mas agora está vivo” (Ap 1,..), instruída pelo Espírito, santificada pelos sinais sacramentais do Batismo, Eucaristia, Confirmação, Perdão dos pecados, Ordem, Unção dos enfermos, Matrimônio.

13) A linguagem bíblica da Catequese Apostólica

É por meio dos escritos dos autores finais da Bíblia, isto é dos autores do NT que podemos melhor advertir qual é a linguagem que os autores dos livros nela contidos adotaram.
O Evangelho de São João é uma composição do fim do 1º século. O seu autor é um evangelista-doutor que agiu segundo um carisma específico, como sugere Ef 4,11. Ele tinha diante de si um ensinamento apostólico que tinha tido o seu início com a pregação de São João e que tinha conhecido uma evolução através das reflexões ao longo das assembléias dominicais, onde a Palavra meditada servia para a exortação e a admoestação. No Evangelho de São João vemos uma tipificação daquele processo que Paulo, na sua Carta aos Romanos, descreve presente na comunidade de Roma e que quer promover através da sua reflexão. O material da igreja de Éfeso foi o da catequese de João.
O Prólogo é a apresentação de Jesus há decênios contemplado na condição de Senhor da igreja, exatamente nas condições segundo as quais é descrito nos quadros das aparições à Maria Madalena, aos Apóstolos reunidos no Cenáculo e quando da sua volta de uma infrutuosa pescaria, depois de uma noite passada num barco sem nada pescar. O Prólogo quer ressaltar as condições divinas de Jesus, o Unigênito Deus que vive no seio do Pai, voltado para o Pai. Segundo o que diz Gn 1,1-3 em linguagem antropomórfica, ele é a Palavra criadora, que sai da boca do Pai juntamente com a potência do Espírito e que suscita a vida. Na condição de Luz, ele veio ao mundo para iluminar os que jazem nas trevas e na sombra da morte e para, dessa forma, “guiar nossos passos nos caminho da paz” (Lc 1,79). Acrescentou à graça do caminho da Lei, que o Deus de Israel concedeu ao seu povo por meio de Moisés, a reconciliação e a santificação segundo o Espírito da Verdade, tornando possível o nosso conhecimento de Deus.
A obra da “Palavra da Vida, que é Vida, Vida eterna” (1Jo 1,1-2), após o Prólogo, nos é apresentada através do quadro do precursor, João Batista, com a sua mensagem acerca d’ Aquele que vinha depois dele, mas que já existia antes dele, que batiza no poder do Espírito, porque ele é o Filho de Deus (Jo 1,30-34). É claro que os elementos do quadro são construídos pelo evangelista, segundo a sua habilidade literária. Constitui-se no enredo histórico que lhe permite a exposição clara e abrangente da pregação de João Batista. É o seu anúncio de cunho doutrinal que deve ser captado por nós.
Seguem-se, então, três quadros sob a luz de uma metáfora consagrada  na literatura profética, qual é aquela do Dia do Senhor, lembrada através de uma tríplice formulação, para indicar que estamos diante de uma ação divina. O protagonista desta ação é o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (1,29), Aquele que os próprios discípulos de João são exortados a seguir para ficar com ele, porque, como anunciam as Escrituras, ele é o Messias (1,41.45). Ele terá que ser conhecido, como lembra o próprio Jesus, através da figura divino-messiânica do “Filho do Homem” (1,51), do qual fala o profeta Ezequiel (1,25-28; 11,22-23) e, como lembra o Apocalipse, o profeta Daniel (7,13-14).
O quadro das Bodas de Caná quer ilustrar de que forma se realizará a manifestação da Glória do Filho do Homem. Será como o “banquete das núpcias do Cordeiro”, tinha dito o autor do Apocalipse em 19,9. Não é difícil, de fato, advertir a relação proposital, que o evangelista estabelece, das Bodas de Caná com a Morte de Cristo, momento em que Jesus se torna o Templo da Glória de Iahweh, o Filho do Homem, de cujo lado direito transpassado pela lança sai sangue e Água. É o Templo de que fala Jesus quando lança o desafio aos anciãos, interpelado acerca do seu gesto de expulsar os vendilhões do templo de Jerusalém: “Destruí este Templo e Eu em três dias o reedificarei” (2,19).
Notamos, até aqui, como a linguagem é figurativa e como, pelos quadros que ela apresenta, anuncia uma doutrina sempre precisa acerca de Jesus. Vai dele tecendo as prerrogativas divino-messiânicas para nutrir a nossa fé em Jesus “Messias, Filho de Deus, para que crendo nele tenhamos a vida em seu Nome” (Jo 20,31). A Pessoa de Jesus é apresentada, em seguida, na sua condição de Filho do Homem, fonte do Espírito, enquanto é “elevado da terra”, de Filho a quem o Pai entregou todo poder, o Esposo que está com a Esposa (Jo 3,29). Em Jo 4, é apresentado como o Messias que, pelas suas palavras que contêm o Espírito sem medida, oferece a Água que dessedenta de forma definitiva, o Filho que, diante da abundância de messes que o sacrifício da sua vida produzirá, mostra ter uma única aspiração, aquela de cumprir a vontade do Pai. Jo 5 é doutrinal, enquanto mostra Jesus anunciando abertamente a sua condição divina. O pretexto, contudo, é o sinal da cura do paralítico da piscina de Betesda. A característica de uma literatura, segundo a linha da reflexão sapiencial em Israel, aparece clara, também, na catequese de Jesus sobre a Eucaristia (Jo 6). O quadro da multiplicação dos pães é construído em paralelo com o momento em que Deus manifesta a sua Glória e revela o seu poder quando dá o maná ao povo faminto que peregrina no deserto, enquanto é lembrado ao homem de guardar o repouso sabático (Ex 16). As figuras de Elias e Eliseu que multiplicaram os alimentos para muita gente, ressuscitaram mortos e até andaram sobre as águas, corroboram o intuito catequético da narrativa de João, que parafraseia a narrativa do mesmo sinal que encontramos em Mt 14.
O enredo histórico perde de intensidade e se torna um mero pretexto para apresentar a doutrina de Jesus nos capítulos que se seguem porque os seus ensinamentos são transmitidos através de intensos debates com os mestres da Lei. É-nos dado, então, constatar quanto a Igreja Apostólica discutiu de forma destemida a sua fé e conseguiu apresentar aos defensores da tradição judaica a legitimidade do seu reconhecimento da messianidade de Jesus, tornada fundamento da sua fé na divindade por ele proclamada da sua Pessoa. Esta segurança doutrinal é aquela que a leva a produzir as narrativas da Paixão, Morte, Ressurreição e Ascensão ao céu.
            At 1,1-11, que lemos no dia da Ascensão do Senhor, revela como, de fato, Lucas, constrói narrativas catequéticas a partir do momento que desloca de 40 dias a Ascensão do Cristo Senhor, em relação ao dia da sua ressurreição. A própria apresentação da Ascensão é feita com elementos que já encontramos na narrativa da ressurreição em Mateus e com uma forma explicativa da natureza do Reino que os fiéis devem esperar. A esse respeito, é possível notar quanto Mateus é superior, linguisticamente falando, a Lucas, de origem grega, que dele aprendeu a linguagem da tradição sapiencial judaica.
            Hb 9-10 nos revelam em que consideração o autor da carta tinha os relatos do Êxodo acerca da Tenda. Para ele eram narrativas catequéticas. Há exegetas que detectaram, nos detalhes da construção da tenda, as medidas do templo de Salomão. O autor da Carta aos Hebreus sabia, portanto, que os detalhes que ele ia lembrando, já eram, para o autor das narrativas que encontramos no Êxodo, elementos fantasiosos de um templo que ele tornava presente em forma de tenda enquanto criava uma parênese catequética a ser proclamada na sinagoga. Isto significa que nós temos que entender que a linguagem figurativa tem uma finalidade teológica nas Escrituras. Ao autor de Hb não interessa saber se teve ou não uma tenda no deserto. Ele simplesmente a cita porque a considera um elemento valioso para tratar da superioridade do sacerdócio de Cristo em relação ao sacerdócio da Lei judaica.
            A atitude do autor de Hb nos leva a pensar acerca da atitude de Mateus quando escreve o seu evangelho. Vemos que utiliza a genealogia (Mt1), o midrash (Mt 2), os quadros das tentações (Mt3). Advertimos que o Discurso da Montanha tem uma estrutura teológica construída para comparar Jesus a Moisés e mostrar a sua autoridade divina (Mt 5-7). Com que intuito, então, nos perguntamos, Mateus narrou a multiplicação dos pães? Certamente, em Êxodo, a narrativa paralela do maná é catequética. O prova Dt quando a ela se relaciona (Dt 8,3). Mt que escreve segundo a forma da tradição sapiencial, quer simplesmente apresentar, pela sua narrativa, um ensinamento de natureza catequética. Vemos que os termos utilizados visam ilustrar os gestos da instituição da Eucaristia, na última ceia. Tudo isso se torna evidente quando lemos Jo 6 que relaciona a Eucaristia ao pão descido do céu que Moisés garantiu para o povo de Israel, no deserto (Jo 6,32.58).
            As considerações até aqui apresentadas nos permitem pensar na linguagem bíblica que encontramos na Escritura em termos de linguagem figurativa, enquanto apresenta uma teologia. Esta linguagem tem um nome específico: “mashal”. Ele é um gênero literário que inclui diversas formas literárias quais a parábola, a metáfora, a alegoria, a narrativa midrashica, o provérbio, o enigma, etc.
            A linguagem bíblica apresenta-se no texto escrito que reflete um elemento da tradição oral. Dessa forma ela reflete uma mentalidade semítica, onde prevalece a linguagem figurativa, como forma de expressar um pensamento. Ela não deixa de ser lógica, pelo contrário, ela é uma linguagem capaz de apresentar os conceitos com todas as suas nuances.

            A linguagem figurativa da Bíblia começa a se apresentar com a narrativa da criação, pela qual, o autor da Bíblia quer falar do Deus da história de Israel, dele ressaltando a condição de Criador, enquanto celebra os seus atributos de poder, sabedoria, beleza e bondade, através da obra da criação.
            A linguagem antropomórfica, um aspecto da linguagem figurativa, consegue, de forma única e original, relacionar o homem com Deus, a ponto de, por ela, permitir ao homem uma compreensão luminosa do seu Criador: ele é Imagem e Semelhança da sua criatura. A partir deste princípio, é possível falar de Deus como se fosse um homem que decide, manifesta o seu pensamento e o realiza com o sopro da sua boca. Sb 13,5 define, nos termos da lógica grega, que o homem é capaz de chegar ao seu Deus por “analogia e sublimação”.
            Na linguagem figurativa da Bíblia devemos sempre advertir esta sua condição para termos sempre presente que se trata de uma linguagem eminentemente teológica. Temos que reagir à tendência de interpretá-la como uma forma de simples narrativa que nos informa sobre elementos que devemos assumir como históricos. Não é história a apresentação do Éden. Através de elementos lendários, o autor quer apresentar Deus que, em relação à sua criatura, no momento de chamá-la à existência, a ela proporciona as condições do seu crescimento: o reconhecimento da sua dependência, estando o mundo à sua disposição para reinar sobre ele. Com o quadro da criação da mulher, o autor quer simplesmente definir as condições de relacionamento e a igualdade, em dignidade, do homem e da mulher. Para isso, utiliza o que a realidade da vida humana lhe sugere.
            A linguagem bíblica de Gn 3 explora a alegoria que descreve, em primeiro lugar, o que de fato aconteceu a Israel quando se esqueceu do seu Deus para dar ouvido à voz dos ídolos. O autor da Bíblia a utiliza para descrever a rebeldia do homem ao seu Criador, esquecido dos seus benefícios e da obrigação da sua dependência (Cf. Dt 31,16-18).
            A essa altura já começamos a advertir a complexidade das verdades teológicas que a Bíblia quer tratar. Notamos quanto a linguagem figurativa contribui para apresentá-las com precisão e propriedade. A história de Israel é paradigmática. A religião da qual a Bíblia quer falar diz respeito à humanidade. Deus reage segundo a natureza que a criação revelou Ele possuir. A Bondade se revelará pela Misericórdia através de uma redenção que se realizará por uma Descendência que o próprio Deus suscitará.
            Aparece a genealogia que, em relação à descendência de Caim, representa a história do homem com a sua progressiva degeneração. Esta o levará à morte. Em relação ao povo que Deus quer suscitar, quer ilustrar a sua fidelidade.
            O hino à Descendência (Gn 5) a celebra com a tríplice benção concedida aos primeiros dez patriarcas. A linguagem utilizada é a da simbologia numérica. Seja em relação a esta como em relação ao dilúvio estaríamos equivocados se interpretássemos os seus elementos como informações históricas.
            Na Bíblia, aquilo que consideramos história é simplesmente um enredo histórico que o autor constrói para apresentar conceitos teológicos. Não podemos pensar em um Noé acolhendo na sua arca toda espécie de animais da terra. Consequentemente, temos que advertir que quando Jesus cita Noé, está se referindo ao ensinamento da narrativa, sem pretender afirmar a sua historicidade (Mt 24,38). O autor da compilação da antologia bíblica quer simplesmente apresentar a sua teologia. A liga à Descendência da qual Noé é o décimo elo. Dele, através de Sem, surgirá Abraão, o ancestral do povo de Deus.
            Toda a estrutura teológica montada dentro de uma moldura cronológica é fruto de uma reflexão sapiencial estimulada pelos escritos proféticos. Quando a estudamos, notamos que a história da nossa redenção é fruto da ação pedagógica do Deus Criador. Depois de ter apresentado em Gn 1-11 o Criador e as linhas fundamentais segundo as quais desenvolverá o seu plano, o autor da Bíblia sintetiza a origem do povo hebraico com a apresentação de três personagens: Abraão, Isaac e Jacó. Trata-se de idealizações. Abraão é modelo de cada hebreu na obediência da fé; Isaac é o filho que vive a obediência até a imolação. Jacó é a figura gloriosa de Israel com os seus doze filhos, chefes das doze tribos de Israel. A linguagem é teológica. O enredo histórico carrega o ensinamento teológico através de narrativas. A história das migrações nos revela a natureza de Gn 12-50, enquanto nos diz que a ocupação da Palestina ocorreu ao longo de séculos. Tribos nômades foram gradativamente se estabelecendo naquela terra suplantando os povos que ali habitavam. Eram tribos de religião politeísta. Quando nela prevaleceu o monoteísmo foi natural o reconhecimento de uma ação providencial que os estabeleceu naquela terra. A celebração épica da conquista é lembrada em Josué. A colocação de Js e Jz na Bíblia segue a linha teológica, enquanto Êx Lv Nm e Dt estabelecem o enredo histórico que, por sua vez, sustenta toda uma narrativa catequética que retoma e desenvolve os conceitos teológicos apresentados no prefácio da Bíblia: pecado, escravidão, promessa, libertação, pátria.
            A linguagem que se apresenta bem caracterizada ao terminarmos a leitura de Jz é aquela que deve ser assumida pelo leitor também quando lê 1-2Sm; 1-2Rs. A linguagem bíblica é linguagem teológico-figurativa.
            A linguagem do NT é da mesma natureza. Nos evangelhos encontramos o enredo histórico que situa a ação divina de Jesus, assim reconhecida à luz da sua manifestação gloriosa pela ressurreição. As obras da sua vida terrena são lembradas, ou lhe são atribuídas para, através delas, alcançar o ensinamento, segundo a doutrina que ensinou. Não é de interesse dos autores relatarem informações que nos ajudariam a localizar fatos ou a determinar momentos. Aos escritores interessa comunicar uma doutrina que os detalhes dos quadros que eles criam ajudam a entender. Isto não significa que tudo não esteja fundamentado em núcleos históricos. Pelo contrário, é o núcleo central da Encarnação, momento em que “chegada a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho nascido de mulher... para que recebêssemos a adoção filial” (Gl 4,4), que, pela sua historicidade, sustenta a validade do ensinamento que, em casos específicos, dependem de fatos reais, impossíveis a serem desligados do ensinamento: a sua vida pública, o testemunho de João Batista, o anúncio profético da sua Morte, segundo as Escrituras, o túmulo vazio que levou a entender as Escrituras, no sentido de que Jesus devia ressuscitar dos mortos e ser entronizado à direita de Deus, a ação do Espírito na vida da Igreja.
            Mateus quer falar de Jesus a quem foi entregue todo poder. Dele fala a partir da sua “origem”. Esta transcende toda expectativa, qual apresentada pela genealogia de um povo escolhido para anunciar a todos os povos o verdadeiro Deus e a Salvação, porque Maria concebe pela ação direta de Deus. A sua concepção só tem adequada explicação à luz da profecia (Is 7,14;Gn 3,15) que, por sua vez, tem sua explicação somente no anúncio do anjo Gabriel à virgem de Nazaré (Lc 1,27). As narrativas do sonho de José e da Anunciação devem ser apreciadas pelo seu valor teológico, fundamentado em fatos da história da salvação, qual intuída pela mesma reflexão sapiencial que produziu Gn 3. A visita dos Magos é um midrash que tem como núcleo histórico o nascimento de Jesus e a pessoa de Maria, sua mãe (Mt 2). O seu anúncio, contudo, é a universalidade da realeza daquele que devia nascer em Belém da Judeia. Neste caso, dizemos que, historicamente, não deve ser registrada esta visita de magos. Na narrativa tudo tem sentido alegórico. Isto vale, também, pela fuga em Egito. Os dois quadros têm a sua explicação na teologia do Apocalipse que evoca a teologia de Daniel (Dn 7-8). A leitura de Mateus deve continuar sempre tendo presente o sentido teológico das suas apresentações de Jesus e do seu ensinamento.
            Em João temos a confirmação de que estamos, quando lemos a Bíblia, diante de uma linguagem sapiencial quando os evangelistas nos apresentam Jesus na condição de realizador da profecia, para que, “crendo nele, tenhamos a vida em seu nome” (Jo 20,31). Jesus é Deus, a Palavra criadora que deu a si mesma uma tenda para habitar entre nós, o Unigênito Deus cheio de graça e verdade. João Batista é o seu precursor que o anuncia na condição de Cordeiro que tira o pecado do mundo. Chegou o Dia do Senhor. Esse dia é caracterizado pela alegoria das Bodas de Caná, que têm a sua realização “no terceiro dia” (Os 6,2). O esposo que vem chegando presenteia a sua esposa com a água transformada em vinho. É a manifestação da Glória que será plena na “Hora”.Preparam-na os sinais que Jesus realiza.
            As  palavras de Jesus, como conclusão do gesto da purificação do templo (Jo 2), confirmam o sentido da narrativa das Bodas de Caná: “...em três dias o reedificarei”. Em relação a Mateus, o evangelho de João nos certifica a respeito da interpretação da multiplicação dos pães. Ambas as narrativas (Mt 14,21; Jo 6) querem ser uma catequese sobre a Eucaristia: a de Mateus, em vista da sua instituição; a de João, para ilustrar o sentido do Memorial da Morte do Senhor. Jesus evoca o maná que Moisés deu como alimento. Dt 8,3 o lembra na sua significação espiritual. Jesus põe “a sua carne dada para a vida do mundo” (Jo 6,51) em relação a este elemento da narrativa catequética de Ex 16. A insistente significação simbólica lembrada pelos evangelistas em relação à atitude de Jesus, aos seus gestos e palavras, à ação dos apóstolos, nos alertam quanto ao sentido catequético da narrativa que se inspira na lembrança dos gestos de Elias e Eliseu.
            A partir do momento em que especificamos a natureza da linguagem bíblica, os textos adquirem seu preciso sentido. Os evangelhos são apresentações de blocos catequéticos que têm como figura central a Pessoa divina de Jesus. João tem até um tema único para a sua obra: Jesus é o Filho do Homem. Trata-se de um título que reúne em si as características da novidade, que somente os Apóstolos conheceram, com as profecias que anunciaram o Salvador.
            A Carta aos Hebreus e o Apocalipse são textos que muito nos ajudam a entender a linguagem bíblica. Notamos que os autores têm a clara percepção do sentido exato daquilo que eles citam das Escrituras Sagradas. Quando o aplicam à Pessoa de Cristo, simplesmente assumem o sentido teológico daquilo que citam, sabendo perfeitamente que, em si,  é parte de uma narrativa catequética.

            A linguagem bíblica deve ser, particularmente, advertida diante do mistério da ressurreição de Jesus. Em primeiro lugar, o sinal humanamente constatado é somente aquele do túmulo vazio. Vemos que para João ele é o ponto de partida que remete quanto ao mistério, à interpretação que as Escrituras oferecem. Jesus ressuscitou, como indica o túmulo vazio porque, de fato, se realizou tudo o que as Escrituras falam quando anunciam um Descendência que esmagará a cabeça da antiga serpente, do diabo, satanás. Contudo, logo deve ser dito que a ressurreição de Jesus nada tem a ver com a ressurreição de Lázaro, um homem que voltou a recuperar as condições de uma forma de existência que, necessariamente voltaria a cessar. A ressurreição de Jesus implica a posse de uma condição gloriosa, definitiva, que envolve a sua humanidade, também, como aponta o sinal da tumba vazia. Os elementos que são utilizados para criar um quadro plástico, catequético, portanto, querem, simplesmente, afastar a idéia de subtração mediante violação de um sepulcro: o lençol dobrado, o sudário num lugar a parte. Isto se torna ainda mais evidente quando é criado o quadro dos anjos que dialogam com as mulheres. A linguagem figurativa de Mateus e Marcos, que talvez nos escape por causa da sua perfeição literária, é evidenciada pela forma com a qual Lucas a traduz para nós, sobretudo quando multiplica as aparições acrescentando, àquelas experimentadas pelas piedosas mulheres, a aparição de Jesus aos discípulos de Emaús. A linguagem mistagógico-catequética de Lucas, de fato, nos permite captar o ensino doutrinário que a Catequese Apostólica quer nos transmitir através dos escritos dos seus evangelistas. A condição gloriosa dos anjos da ressurreição visam nos esclarecer sobre a realidade escatológica que se realizou segundo o Plano sapientíssimo de Deus que glorificou o Adão verdadeiro. Ele deve ser encontrado no topo do Monte das Oliveiras, onde poderá ser reconhecido no esplendor da Glória de Iahweh, porque se apresentará na condição do Filho do Homem de Ez 1,26-28, digno de toda adoração. É lá que entenderão quem é o Senhor da igreja, aquela que ela celebra pelo Memorial da sua Morte, que ele instituiu na ceia pascal. O Apocalipse é o texto que nos mostra como o podemos contemplar na sua condição atual, exatamente, pelas Escrituras proclamadas no Dia do Senhor. Naturalmente, serão capazes do contemplar Jesus Cristo em todo o seu poder e glória aqueles que a ele estão unidos na realeza, em virtude do testemunho que dão da sua palavra e da sua pessoa (Ap 1,9), perseverando até o fim (Mc 8,38).
           
Lc 24
24,1 A informação inicial parece ser um dado objetivo não fossem aqueles “aromas” que as piedosas mulheres estão carregando e a lembrança de que se trata do “primeiro dia da semana”. Os dois dados nos orientam a pensar em como os cristãos devem santificar o “Dies Domini” que o Apocalipse apresenta com todas as letras como o dia em que, reunidos em assembléias litúrgicas, os fiéis de cada comunidade devem fazer memória do Senhor da Igreja, o “Filho do Homem que posicionado no meio dos candelabros de ouro” (Ap 1,13), a partir da escuta da Profecia (v. 3). É nela que encontrarão aquele que alcançou uma condição gloriosa após a consumação do sacrifício da sua vida na obediência até a morte de Cruz (Lc 24, 44-52). De fato, é pela Profecia que os discípulos de Emaús percebem seu coração arder, enquanto Jesus explica as Escrituras: Moisés, Salmos e Profetas.
 24,2 O sepulcro vazio é o sinal. O cadáver a ser embalsamado lá não se encontra. Isto significa que não pode ser encontrado entre os mortos aquele que está vivo. É a revelação dada do alto para aqueles que pensam em Jesus de forma terrena. Mas ela não é compreendida.
24,7 Embora tivessem ouvido Jesus citar explicitamente as Escrituras, as mulheres não tinham chegado a compreendê-las. É o mesmo que acontece para os fiéis que se debatem nos seus arrazoados que resultam ser vãos. É inútil querer explicar um mistério com as idéias amadurecidas pela interação com a realidade terrena. Como podiam entender quem esperava Jesus restaurar o reino de Davi para se tornarem seus ministros. Não fugiram todos eles confusos, incapazes do compreender o poder divino que se manifestava na Pessoa do seu Mestre. Não podiam entender, enquanto Jesus, preparado por uma vida de reflexão e oração, sabe ver na sua Paixão o momento em que deve “beber o cálice que o Pai lhe preparou” . É isto que o leva a dar os passos versus a sua glorificação que redundará em glorificação do Pai.
24,11 Também Pedro não entende. Nele não amadureceu o amor não obstante o seu ardor. O prova o fracasso quando do momento do testemunho. O raciocínio humano é ímpar diante do divino.
24,13 Estão na mesma condição os discípulos que reconhecem ter sido Jesus “um Profeta poderoso em obras e palavras”, mas que não sabem interpretar a sua morte, mostrando, até depois da infame condenação sofrida pelo seu Mestre pelas mãos dos sumos sacerdotes e mestres da Lei, respeitoso apego às suas tradições religiosas.
24,22 O elemento sobrenatural que deveria esclarecê-los acerca da Pessoa de Jesus é demais tênue e não ajuda: “É verdade que as mulheres viram anjos “os quais asseguravam que ele está vivo”
24,25-32 É neste versículo que começa a catequese lucana. É pela Profecia que podemos ver claramente qual foi o destino de Jesus que foi morto, uma vez que ela nos ensina, com todas as letras que “o Cristo devia sofrer para entrar na glória” (cf. Hb 2): Servo de Iahweh; Serpente levantada da terra; o Justo sofredor. É a Escritura que nos leva a aceitar aquilo que aflora pelos gestos de Jesus, quando repetimos o que ele fez na última Ceia, porque então, o sinal sacramental do pão partido coroa a fé amadurecida pelo entendimento com a graça merecida pelo sacrifício, agora, reconhecido. A cruz de Cristo se tornou Poder de Deus, Sabedoria de Deus (1Cor 1,2..).
24,34 A aparição a Simão é algo atestado por Paulo que certamente pensa que aquilo se deu da forma que a ele aconteceu. Trata-se de um fenômeno sobrenatural que marca de tal forma o sujeito que o torna capaz de testemunhar de forma inequívoca que, realmente, ele esteve em contato com alguém que veio visitá-lo do além.
24,36 A narrativa da aparição ao grupo dos Apóstolos parece ser uma narrativa didática que apresenta os pontos doutrinais de uma ressurreição que as aparições às mulheres que recebem a ordem de relatar o acontecimento a Pedro e ao próprio Pedro já indicam, tendo como fundamento o túmulo vazio. Isto pode ser deduzido por Jo 20, 1-9. Como ensina a catequese sobre a Eucaristia, em Jo 6, a Igreja deve reconhecer na “carne dada para a vida do mundo” (6,5..), Jesus que anunciou a sua imolação e que, por ela se tornou o “Filho do Homem”, sentado com o Pai no seu trono (Ap 3,..), porque, realizada a purificação dos pecados, sentou-se à direita da Majestade” (Hb 1,3), tendo recebido “um Nome que está acima de todo nome.
24,50 A clara definição do lugar a Ascensão, indica o intuito catequético de associar o monte àquele que a Glória de Iahweh escolhe quando abandona a cidade para ir morar no templo que ela mesma construirá para si diante do monte de Sião, porque o seu templo conheceu a “abominação da desolação”. (Ez 10,..). Certamente as narrativas catequéticas de Lucas, e as narrativas de cunho apocalíptico de Mateus, no que diz respeito à ressurreição do Senhor, inspiraram a apresentação, ainda mais sofisticada que encontramos em João que, todavia, é aquele que mais claramente estabelece o ponto de partida para apresentar a doutrina acerca do mistério de nosso Senhor Jesus Cristo, “constituído abertamente, Filho de Deus com poder, em Espírito de santidade (Rm 1,4).  









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