Gn 12-22

Gn 12-22 

Gênesis 12

O Plano de Deus sobre o homem é esboçado em Gn 1-11. O homem está no centro da atenção do Criador, chamado por Ele a desenvolver em si a sua imagem e semelhança. A forma correta desse desenvolvimento  é a de cultivar a condição criatural que lhe é própria, tornando-se fiel guardião e zeloso cultivador da terra, mantendo sempre uma atitude de obediência ao Criador. Sendo que o homem não é capaz de se conduzir dessa forma, Deus decide suscitar uma Descendência dentro da própria humanidade que, depois de restaurar a criação desestruturada pelo pecado, será o Princípio, o Primogênito entre os mortos (Cl 1,18). A gravíssima condição em que se encontra o homem e que o leva a merecer o castigo da ira de Deus até o ponto de se tornar merecedor de  extermínio, é descrita em Gn 4 e 6. A intervenção de Deus que dá continuidade à promessa de uma Descendência salvadora é apresentada em Gn 4,26 e em Gn 6 a partir do momento em que se fala de Noé (v. 8), clara figura de Cristo realizador da profecia de Gn 3,15.
Com a vocação de Abrão o Autor sagrado passa a descrever a maneira pela qual a Descendência se realizará, acompanhando a história de um único povo que Deus escolheu. É importante notar, desde já, que isto não significa que a salvação prometida em Gn 3,15 se destine somente ao povo de Israel e sim, que, através do povo de Israel, Deus quer levar a salvação a todos os povos da terra. Desde já, por isso mesmo, Abrão se apresenta como figura de Cristo chamado a ser aquele que dá origem ao novo Israel no qual e pelo qual todos os povos da terra são salvos. Os detalhes da história de Abrão servem para entender melhor a figura de Cristo. A primeira exigência de Deus, em relação a Abrão é a de estabelecer uma nítida separação entre si e a tradição humana  em que domina a idolatria. Essa exigência é cumprida por Abrão que sai da sua terra e vai à procura de uma nova pátria, segundo a ordem de Deus. Abrão, assim, se apresenta, da forma que  foi também a de Noé, como o adão (= homem) obediente que atua o Plano de Deus pela obediência. É figura de Cristo, portanto, que pela sua obediência ao Pai caminhou, ao longo de toda a sua existência terrena, até a Pátria celeste. É pela obediência que Cristo Jesus se torna o Cabeça de um grande povo, a Igreja, da forma que se tornou Abrão, que deu origem ao povo hebraico que é, por sua vez, figura da Igreja. É Cristo Jesus, do qual Abrão é figura, que, após a obediência até a morte, recebe do Pai a glorificação, um grande nome, e se torna uma benção para todos os povos.
A vocação de Abrão é um texto claramente profético que tem a sua plena realização em Cristo Jesus que, único, pode ser uma benção em virtude da sua condição divina e em virtude de uma obediência até a morte e morte de Cruz, pelo que recebe um Nome que está acima de todo nome e todo mundo proclama, Jesus Cristo é Senhor (Fl 2,6-11). É em relação a Jesus Cristo que Deus se reserva, também, de abençoar quem dele diz: "Bendito aquele que vem em nome do Senhor" (Mt 23,39) e de amaldiçoar quem o blasfema. É em Jesus que todos os clãs da terra são abençoados, enquanto essa promessa pode ser aplicada a Abrão somente pelo fato de que é do povo, ao qual ele dá origem, que surge o Messias destinado a ter as nações como herança, os confins da terra como propriedade (Sl 2,8).
Com Gn 12,4, inicia a história do povo hebreu que contempla a sua origem na viagem de Abrão saindo de Harã, na Mesopotâmia, para chegar à terra dos cananeus. É o Autor sagrado que, inspirado, a interpreta como vontade divina, porque só podia ser por vontade divina que Abrão sairia da sua terra, uma vez que, por causa disso, surgiu um povo ao qual o Deus verdadeiro se revelou, operando em favor dele tantos prodígios ao longo de toda a sua história. Pela mesma razão, ao ver que a terra que Israel conquistara tinha-se tornado um reino poderoso, o Autor sagrado, ao constatar que tudo isso se realizara por clara intervenção de Deus na história de Israel, supõe uma intenção de Deus em querer dar a terra de Canaã como herança à descendência de Abrão e a apresenta descrevendo uma série de visões nas quais Iahweh se compromete nesse sentido. A história de Israel assume, dessa forma, um cunho sagrado desde as suas origens que, todavia, se tornou manifesto somente depois que tudo aconteceu. O povo hebraico vê, na origem da sua história, uma clara vontade de Deus em fazer da descendência de Abrão o seu povo. O próprio Jesus reconhecerá esse fato, todavia, exortando os seus irmãos segundo a carne a agirem segundo o espírito que o Autor sagrado atribuiu a Abrão, para que toda a sua descendência visse em Abrão o modelo a ser imitado: "Sei que sois a descendência de Abraão...Abraão, vosso pai, exultou por ver o meu Dia. Ele o viu e encheu-se de alegria" (Jo 12,37.39.56). Essa perspectiva leva a uma interpretação mais profunda, ainda mais que o texto parece ter sido escrito no tempo do exílio, quando toda grandeza terrena de Judá tinha desaparecido. São a profecias de Isaias, do Emanuel e do Servo de Iahweh, a profecia do Filho do Homem de Ezequiel e do Rei-Pastor que inspiram a visão da grandeza de Israel.
            Abraão é filho deTaré, um dos patriarcas da descendência que Deus suscitou ao conceder a Eva o filho que esta chamou de Set (4,25). Com ele a descendência começa a se evoluir num povo ao qual são reservadas as mesmas bênçãos dos patriarcas. Isto liga necessariamente o descendente da linhagem dos patriarcas ao seu povo. A sua sorte, será a sorte do povo. É uma chave para interpretar a estrita ligação entre a sorte do Filho do homem e o povo dos santos do Altíssimo (Dn 7,14.27). No patriarca Abraão, os hebreus devem encontrar o modelo da sua vida de serviço a Deus. Devem ter a fé dele. O itinerário descreve a terra que será dos hebreus, porque a eles Deus a dará. Os altares que Abraão constrói lembram o Deus a quem o povo hebraico prestará culto para sempre. Os lugares são os que, mais tardes serão a sede dos templos dedicados ao Deus de Israel.
            A idade de Abraão é definida por uma simbologia numérica. Setenta é a plenitude. Cinco é o seu múltiplo. Significa que numa condição de plena disposição em servir ao Deus que o chamava, Abraão estava disposto a servi-lo pelo tempo que Deus quisesse (plenitude dinâmica).
            A descida de Abrão ao Egito por causa da fome, a prepotência dos egípcios que dispõem arbitrariamente dos estrangeiros, a intervenção de Deus que salva, a forma com que os egípcios são despojados antecipam, na vida do ancestral, aquilo que acontecerá a Israel como um povo, quando do seu êxodo da terra do Egito. Nessa perspectiva, deve-se interpretar a atitude de Abrão como uma tentativa do homem em querer se salvar, embora fracasse diante da prepotência do mais forte. Mas aquele que Deus escolheu para ser instrumento da realização do seu plano tem como aliado o próprio Deus. Não somente é salva a vida de ambos, Abrão e Sara, como, também, os que Deus protege acabam saindo do Egito, cheios de bens. Por essa antecipação na vida de Abrão daquilo que acontecerá ao povo de Israel, resulta claramente que tudo o que aconteceu, seja a Abrão como a Israel, é fruto de uma intervenção de Deus e dom gratuito dele.

Gênesis 13

Abrão, ao sair do Egito, volta para a terra que Deus lhe tem destinado e, no lugar aonde já tinha erguido um altar, quando da sua primeira passagem (12,8), invoca o Nome, isto é, o Deus que a ele se revelou na terra dos Caldeus e que começa a mostrar quem Ele é, isto é, a revelar que o seu nome é "Aquele que é e faz as coisas acontecer": Iahweh. Deus, de fato, o tinha salvado das mãos dos egípcios e o tinha enriquecido.
Mas as riquezas acabaram tornando-se um perigo de divisão e contenda. Nesse momento, Abrão revela ter espírito de longanimidade e cede ao seu sobrinho a região das pastagens que ele escolher. Ao v. 8 encontramos uma preciosa elucidação do termo "irmão" que nos ajuda a entender o sentido de Mc 6,3, aonde se fala de Tiago, Joset, Judas e Simão irmãos de Jesus. Abrão chama a Lot de "irmão", embora este seja seu sobrinho (12,5), filho de Arã, seu irmão (11,27). Isto nos permite sustentar que o termo de "irmão" utilizado por Marcos pode ser entendido em sentido lato, ainda mais que Mc 15,40.47 define que Tiago e Joset são filhos de uma outra Maria, distinta de Maria, a mãe de Jesus (Jo 19,25).
            Quando Abrão está totalmente desligado de qualquer vínculo com a sua parentela, porque "Ló se separou dele"(Gn 13,14), sabe, de Deus, que a terra que pisa será posse exclusiva da sua descendência. Trata-se de uma promessa divina que, enquanto se refere ao povo hebraico como herdeiro da mesma, alude para uma verdade mais profunda: herdeiros da verdadeira Pátria serão aqueles que se comportarão como verdadeiros descendentes de Abrão, que acreditou em Deus. De fato, esses filhos de Abrão estão em todos os quatro cantos da terra (v. 14), numerosos como os grãos da poeira da terra inteira (v. 16).
            Mediante o artifício de visões, o Autor sagrado desenvolve a convicção que o povo hebraico tem de que Deus sempre quis realizar sobre ele um plano, a partir da vocação do seu ancestral e que tem, na terra, o sinal da sua origem divina. Mas o plano vai além das realizações terrenas de um reino esplendoroso, qual se concretizou nos tempos de Davi e Salomão. Ao mesmo tempo em que devemos ver no reino de Davi e Salomão a realização da promessa feita a Abrão, devemos estar abertos aos intuitos universais que a promessa contém. Aliás, são os próprios profetas que nos induzem a ver nos reinos de Davi e Salomão a figura de um reino universal que o Messias instituirá. Por sua vez, a forma inesperada pela qual o Messias realiza o Plano de Deus e os seus conteúdos que transcendem qualquer expectativa humana, nos revelam que a verdadeira forma de atuação da promessa feita a Abrão é aquela que Cristo Jesus realizou. Ela não é mera repetição, no plano terreno, do que era saudosisticamente, esperado segundo uma expectativa humana. O próprio Deus preparou a realização da promessa feita a Abrão segundo os termos nos quais Cristo Jesus a atuou ao purificar de conceitos demais terrenos o seu povo mediante o exílio da Babilônia depois do qual desapareceu o rei, voltando em plenitude o sistema teocrático. Desapareceu o reino, tendo-se reduzido o seu território à mera Judéia; desapareceu a nação, tendo voltado de Babilônia somente um resto. Valorizou-se ao extremo o conhecimento da Torah (= a Lei), a prática do culto, vivido com profunda piedade, e a implementação das tradições. É neste clima vivido pelo Resto de Israel, os pobres de Iahweh, que desponta o Messias, celebrado por Zacarias como "Poderoso Salvador" e, ainda por esse e, depois por Simeão, "como "Luz das Nações", o próprio Jesus Cristo, que proclama a universalidade do Reino, que se atuaria pela sua elevação de Cruz.

Gênesis 14

Podemos dividir Gn.14 em três partes. Na primeira parte (1-11) e na parte central (12-16), são apresentados fatos e elementos que fundamentam a última parte. Reis poderosos rechaçam a revolta de povos por eles antes conquistados e que, depois de doze anos, se rebelaram. Entre esses povos estão os reinos de Sodoma e Gomorra. Todos os bens desses reinos se tornam propriedade dos conquistadores. Esse detalhe é ressaltado porque explica o direito de posse sobre todos os despojos dos reis que Abrão derrota e que o próprio rei de Sodoma reconhece (v. 21). Ao renunciar a esse direito (v. 24), Abrão se revela um homem desprendido e, sobretudo, prudente, porque, através desse gesto pelo qual entrega de volta homens, mulheres e alimentos ao rei de Sodoma, ele estende as suas alianças, até então limitadas aos amorreus (v. 13) e garante a segurança e proteção para Ló numa cidade estrangeira. A parte central sublinha o altruísmo de Abrão para com o seu consangüíneo, a favor de quem age com extrema liberalidade, embora Ló não tivesse mostrado muita complacência com o seu tio no momento de se separarem, sendo que escolheu para si aquilo que achava melhor (13,10s). Aqui, mais uma vez notamos, seguindo o texto hebraico, como o termo 'irmão' é utilizado indiscriminadamente, seja para significar o irmão como o sobrinho (v. 12.14). Segundo o v. 12, Ló é sobrinho de Abrão porque é "filho do irmão de Abrão" (ben-akí Abram). No v. 14, o sobrinho de Abrão é chamado simplesmente de "irmão dele" (akív). Isto prova, mais uma vez que Mc.6 não enumera os irmãos de Jesus como sendo necessariamente filhos da mesma mãe, ainda mais que, como já relatamos no artigo anterior, a mãe de Tiago e Joset (Mc.6,3) é outra Maria (Mc.15, 40.47), distinta da Mãe de Jesus. A parte central explica, também, o elemento surpresa que possibilitou, humanamente, a vitória de Abrão sobre os quatro poderosos reis que tinham arrasado os cinco reis revoltosos: não é para subestimar a habilidade de Abrão que se revela líder e estrategista militar; ele ataca "de noite, em ordem dispersa" (v. 15). Mas é a parte final que nos revela o pensamento do Autor sagrado no seu último intuito. Da mesma forma segundo a qual ele viu, nos acontecimentos anteriores da vida de Abrão, a intervenção de Deus, assim, agora ele entende que tudo o que aconteceu foi por intervenção providencial de Deus. Ele está tão certo acerca dessa interpretação que a põe na boca do próprio Melquisedec, rei de Salém: "Bendito seja o Deus Altíssimo que entregou teus inimigos entre tuas mãos"(v. 20).
A figura de Abrão acaba, assim, de ser apresentada num contexto histórico suficientemente pormenorizado para que seja entendida como a de alguém que tem tudo a ver com a humanidade com a qual interage. Abrão diz respeito ao Egito, no qual fez a experiência da arbitrariedade dos poderosos que todavia foram derrotados pelo seu Deus e diz respeito a todos os povos que o circundam, com os quais estabelece um contato por esta aventura militar em que Deus o assistiu. A história de Abrão, que se desenvolve dentro da história da humanidade, significa que a extraordinariedade da intervenção divina, que quer levar à frente o seu plano de salvação, não obstante toda a sua peculiaridade, não quer se distinguir de forma mirabolante diante dos olhos dos homens. Ela quer, pelo contrário, se realizar dentro do contesto normal da vida dos homens, sem, todavia, deixar de registrar a marca da sua extraordinariedade na história. É por este cunho de extraordinariedade que os homens devem entender a presença de Deus na história, que se revela 'extraordinária' na história do povo de Israel, que tem por fundador um nômade (v. 13), sem filhos, sem força militar adequada, mas que consegue sobreviver e se firmar entre povos estrangeiros, sair ileso das mãos do prepotente rei do Egito e que, quando empreende uma ação militar contra reis que já venceram outros reis, vence porque Deus está com ele. O Autor sagrado permeia essa narrativa, de cunho épico, com as convicções religiosas do seu povo que reconhece que toda a sua grandeza não depende dos seus recursos humanos, mas da complacência de Deus que o escolheu, em Abrão, para ser o seu povo.

Gênesis15

A fé de Abrão que, desde o início da sua vocação se transformou em atos de obediência, faz com que Deus lide de forma familiar com ele (coisa que Deus teria gostado de fazer sempre desde o primeiro adão). Em visão, Deus ensina a Abrão o que acontece quando ele confia: Deus se torna para o homem escudo e recompensa (v. 1). Quando o povo de Israel chegar a conhecer o auge da sua história, falar-se-á de muralhas e torres: isto será Deus para o seu povo! (Is.26,1). E o profeta Zacarias, falando da Jerusalém messiânica, chegará a dizer que o próprio Deus será "uma muralha de fogo ao redor e glória dela" (Zc.2,9). Abrão é chamado a crer, mais uma vez, porque essa é a condição para ter a Deus como seu escudo e recompensa. O dom de Deus será a Descendência: uma realidade exclusiva de Deus, todavia, obtida através da cooperação humana, pela fé. Nesse caso, a figura de Abrão ilustra a maternidade de Maria: a concepção de Jesus é obra exclusiva de Deus, obtida através da cooperação humana, pela fé. O Autor sagrado, no caso de Abrão, utiliza uma situação hipotética para sublinhar que se houve uma descendência pela qual Deus leva em frente a realização da promessa de Gn.3,15, ela é mero fruto da atuação de Deus sem nenhum mérito da parte do homem. Quando Mateus e Lucas acentuam a condição virginal de Maria, visam mais sublinhar a gratuidade da Descendência do que atrair nossa atenção sobre a concepção virginal. Se Abrão era velho e Sara já não podia mais ter filhos, Isaac é tão fruto de Deus quanto Jesus em Maria. Como Deus possa realizar o que é inimaginável para o homem não é um mistério, uma vez que Ele é o onipotente Criador. A forma com que é apresentado o nascimento de Isaac e o de Jesus quer sobre tudo sublinhar que a Redenção dos homens deu-se, exclusivamente, por uma vontade divina que operou ao longo de toda a história da humanidade. De fato, Israel tem clara consciência de ser fruto de uma ação providencial de Deus, perfeitamente ilustrada por essa Descendência que sai de Abrão por intervenção divina, em virtude da fé: "Acreditou em Deus que lho imputou a justiça" (v. 6). No caso de Maria, a fé dela ao anúncio do anjo proporcionou a ação de Deus que a tornou mãe, antes que coabitasse com José (Mt.1,18). Isso só pode ser pela Potência criadora do Altíssimo (Lc. 1,35). Não se trata mais de um caso hipotético, todavia, porque seja Mateus como Lucas fazem questão de apresentar a condição virginal de Maria como uma realidade histórica (Mt.1,18) de uma virgem de Nazaré "e o nome da virgem era Maria" (Lc.1,27). No caso de Maria devemos unir os dois sentidos que a sua maternidade virginal inclui: 1o) a gratuidade da Descendência, obra exclusiva de Iahweh; 2o) o nascimento de Jesus, Filho de Deus, de uma virgem, para que resulte inconfundível a condição divina daquele que ao assumir a condição humana daria  origem à nova estirpe dos filhos de Deus.A partir do v. 7 estamos diante de uma interpretação teológica que Israel faz da sua história. Simulando uma profecia, dentro de um contexto de uma aliança entre Deus e Abrão atuada mediante um juramento imprecatório, pelo qual quem faltasse aos compromissos se tornava merecedor da sorte indicada por animais partidos ao meio, o Autor sagrado analisa tudo o que aconteceu a partir do seu ancestral, Abrão, até o seu tempo: Israel se tornou um povo porque esta foi a vontade de Deus que se manifestou na extraordinariedade da libertação da escravidão do Egito e da conquista da Palestina. Esse artifício literário será
utilizado de forma mais ampla pelo profeta Daniel ao fazer a análise teológica da história de Israel, a partir da deportação para Babilônia até o seu tempo (sec. II A.C.). Outro aspecto teológico aqui presente é a definição de quando Deus castiga os povos (v.14): é quando a iniqüidade atinge o seu cúmulo (v. 16). É o critério que o Apocalipse assume para justificar a rejeição de Jerusalém por parte do Cordeiro: "porque seus pecados se amontoaram até os céus" (Ap.17,5).

Gênesis 16

A descendência prometida por Iahweh não é mais esperada. O homem, impaciente, decide concretizá-la à sua maneira. Mas essa é uma maneira que visa um herdeiro de bens materiais, enquanto a Deus interessa um descendente que seja mais um elo, ao longo da história humana, que perpetue a Descendência, até chegar Àquele que esmagará a cabeça da Serpente (Gn.3,15). A Deus interessa criar um povo para si constituído por uma humanidade regenerada através da obra do Redentor prometido, nascido da Mulher que Ele fará nascer numa condição de inimizade total com a Serpente. O homem está tão longe dos pensamentos de Deus (Is.55,10) que faz nascer a sua descendência de uma escrava, legitimando como filho seu aquele que dela nasce, simplesmente por meio de uma convenção legal. O quadro de ciúmes e arbitrariedades que se segue acaba, todavia, apresentando uma verdade importante para nós: Deus está continuamente observando a história de cada homem e de cada mulher e está pronto a encontrar a solução para cada problema, por quanto difícil que ele seja. Naturalmente, o caminho d' Ele é sempre radical. A Agar, Iahweh ordena de voltar a ser submissa a Sarai: é a única forma para salvar a sua vida e a do menino e, subseqüentemente, a forma, embora árdua, de se tornar um povo ligado a Abrão:
um resultado extremamente compensador, não obstante o grande ato de submissão exigido.
O gesto pelo qual a própria Sarai dá Agar a Abrão para que engravide e suscite para ela um filho e para Abrão um herdeiro, merece uma análise atenta porque explica seja a atitude de Sarai como a atitude de Iahweh em relação a Agar. O Autor sagrado, de início menciona que Sarai é "esposa" (v. 1) de Abrão. Como "osso dos seus ossos e carne da sua carne" (Gn.2,23), e, portanto, como aquela que Adão chamou de "Ela", porque tirada dele, Sarai permite que Abrão vá até à sua serva (v. 2) para que ela (Sarai) dê um filho a ele. É nesses termos, segundo uma lei mesopotâmica, que Abrão atende ao pedido de Sarai. É nessas condições, insiste o Autor sagrado, que Sarai "toma Agar...e a dá a Abrão (v. 3), "osso dos seus ossos, e carne de sua carne", portanto o Ele dela (ishah), na condição de Ela dele (isshah). Agar é, juridicamente, a própria Sarai para Abrão, quando a ela se une para que por ela, sendo que foi até então impossível por meio de Sarai, seja concebido o herdeiro. Quando Agar chega a se vangloriar diante de Sarai até ao ponto de desprezar a sua senhora, torna-se necessária uma correção para que Agar reconheça o seu lugar, correção que o próprio Iahweh exige que Agar aceite.
Temos que prestar atenção, também, a um outro detalhe: Deus é descrito dialogando com Agar como se o fizesse por um anjo. É o momento de revertermos à concepção de anjo que nós temos e que é fruto de uma angelologia que foi se desenvolvendo ao longo das gerações. "Anjo de Iahweh" (v. 7) significa o próprio Iahweh. Anjo significa, portanto "Deus enquanto se manifesta". Pode Deus manifestar-se pelo vento ou, até por um homem que ele suscita para realizar a sua vingança. Toda e qualquer criatura pode ser enviada, pode ser, portanto, anjo (particípio passado passivo, do verbo grego angello) para executar a sua vontade. Nesse sentido, pode ser, enfim, até uma criatura "angelical", mas esta é assumida para sinalizar, de forma eminente, o próprio Deus enquanto manifesta ao homem, de forma inconfundível, a sua vontade. O anjo Gabri-El = Forte é Deus, porque "nada é impossível para Deus" (Lc.1,26-38).

Gênesis 17

Em contraste com a atitude humana de Abrão e Sarai (Gn.16), eis a intervenção de Deus. Embora anunciada por um número de anos que apontam para uma velhice de Abrão, essa se dá no momento em que Deus decide agir. Volta a simbologia numérica, desta vez com surpreendente ambigüidade. Noventa e nove, duas vezes múltiplo de três: número que diz respeito à divindade.
Todo o capítulo e solene. A abertura é soleníssima: "apareceu Iahweh a Abrão e lhe disse: Eu sou El Shaddai (o Deus do amor maternal Gn.49,25-) ...Eu instituo minha aliança entre mim e ti" (Gn.17,1s). Enquanto o homem, com toda a sua preocupação, mal e mal consegue um herdeiro e, este, só por vias legais, Deus vem com o seu amor poderoso e faz de Abrão uma multidão de povos. A iniciativa é unilateral: é Deus que propõe a Aliança com os seus termos, sempre. Todavia, em favor do homem. Abrão se torna Abraão: "Pai de uma multidão de povos"(v. 5). Até reis serão parte da descendência de Abraão: um detalhe que nos indica o tempo da composição do texto e define a natureza do mesmo. Estamos diante de uma teologia da história do tempo da realeza que reconhece na origem e ao longo das gerações do povo hebraico a intervenção da poderosa mão de Iahweh, o Deus que é e que faz as coisas acontecer. Estabeleceu-se uma Aliança eterna entre Deus e Israel. O sinal dessa Aliança foi, de fato, a terra que Deus prometeu a Abraão e que, no tempo dos reis era o vasto reino de Davi. Diante dessa prova, Israel está convicto que o verdadeiro Deus quer ser o seu Elohim ( o deus que os tornará vitoriosos contra todos os inimigos da terra). O Autor sagrado lembra, todavia, que a Aliança está ligada a claras obrigações das quais o sinal da circuncisão é contínua lembrança. A observância das leis que Deus impôs ao povo da Aliança e das quais a circuncisão lembra a obrigação, será, portanto, a condição da proteção de Iahweh dos exércitos.

No momento solene em que Deus estabelece a sua Aliança com Abraão e lhe muda até o nome para significar a que é destinado, Deus muda também o nome de Sarai em Sara (princesa) e ela é preconizada mãe do filho da promessa, mãe de povos de reis e de nações. Eis a prosperidade que Deus reserva aos seus servos, infinitamente superior àquela que eles poderiam arranjar com seus esforços. Incrível que pareça, o homem está mais propenso a julgar uma situação e a resolvê-la segundo seus critérios do que confiar em Deus, não obstante todas as provas do seu Amor e do seu Poder! Abraão ri desconfiado. Mas, enquanto ri, sem saber, profetiza: chama de Princesa a Sarai que será mãe no tempo de Deus que se completou (aos noventa anos: múltiplo perfeito de três). Para sua eterna confusão, Deus exigirá que o nome do filho da promessa seja Isaac (= ele ri). O nome lembrará para sempre a gratuidade do dom para aquele que desconfiou de Deus. 

O momento dessa Aliança é tão solene que até Isaac é nela incluído enquanto é lembrada, em geral, toda a sua descendência (v. 19).

Chega enfim o momento da benção de Ismael (v.20). É o momento da grande recompensa para Agar que foi obediente ao Anjo de Iahweh (Gn.16,10.15). Tanto quanto Israel, o povo que descende de Ismael será capitaneado por doze príncipes: será portanto um povo perfeito no número e na sua realização. É bom lembrar aqui a simbologia desse número que reaparece com toda a sua significação em Ap.7. É o número que indica perfeição: tudo o que Deus faz é perfeito.

Todas as pessoas que estão incluídas na Aliança são, para Deus, igualmente importantes. Sobre elas Ele quer atuar o seu Plano tanto quanto o atua com o Cabeça. Isto significa que quando somos tornados membro do Corpo de Cristo, em virtude do Batismo, do qual a circuncisão era figura, para todos os efeitos, o destino de Cristo Jesus se torna Princípio e Modelo do nosso destino.

Gênesis 18 (I)

A forma abrupta com que é introduzido, bem no início desse capítulo, o verdadeiro protagonista da aparição de Mambré, nos esclarece sobre a personagem tão misteriosa que se apresenta, de repente, a Abraão que descansa na entrada da sua tenda. Iahweh, mais uma vez se revela a Abraão. A forma com que é descrita essa visão é um conto didático que os ouvintes da sinagoga sabem perfeitamente interpretar. A personagem representada por três peregrinos, que ao longo da narrativa se tornam um só (v. 3.10), pode ser somente Iahweh porque o quadro da narrativa é o lugar sagrado do Carvalho de Mambré "que está em Hebron, onde Abraão construiu um altar a Iahweh" (Gn 13,18). A forma trina nas pessoas está em relação a Gn 15. Enquanto Deus lá faz um juramento por meio de um sacrifício imprecatório, aqui o faz na presença de duas testemunhas que resultam ser, mais tarde os anjos enviados para salvar Lot em Sodoma. Nesse caso, o Autor sagrado quer apresentar uma manifestação que deve ser, inconfundivelmente, atribuída a Deus. A feliz narrativa tem o intuito de preparar o anúncio tão esperado, no qual, devido à sua fragilidade humana, seja Abraão como Sara deixaram de crer (17,17; 18,12). Iahweh se apresenta como o Deus Forte (o Gabri-El), para quem nada é impossível (18,14). Os homens são meros instrumentos para Ele. A expectativa exasperada pela qual tiveram que passar Abraão e Sara, e na qual sucumbiram, tinha a finalidade clara de provar que a Descendência seria fruto exclusivo da iniciativa de Deus. Abraão, tanto quanto Noé, é chamado por Deus, simplesmente porque achou graça aos olhos de Iahweh (v. 3; Gn 6,8). Isso deve ser claro para o povo de Deus. É Deus que suscita a Descendência para realizar uma restauração em favor da humanidade que dele se afastou e que, por si, não tem mais condições de voltar: "Porei inimizade entre ti e a Mulher" (Gn 3,15). Uma grande esperança é suscitada no povo de Deus mediante essa narrativa didática. Deus está agindo na história, nunca deixou de agir e nem deixará de fazê-lo. O nascimento de Isaac é a garantia dessa esperança. A Anunciação de Lucas (Lc 1,26-38) se inspira nos termos do diálogo dessa narrativa e os completa com a paráfrase do diálogo entre Iahweh e Agar (Gn 15,11). A esterilidade é, antes de mais nada, um artifício literário para sublinhar a gratuidade do evento que tem sua única origem em Deus. Nunca o homem poderia dar a si mesmo a Descendência que daria origem a um povo novo, regenerado na graça. Essa forma literária prepara a maneira pela qual é descrito o nascimento de Jesus. De forma eminente, a sua origem é uma intervenção gratuita de Deus na história do homem onde o maravilhoso divino é apresentado na pessoa do próprio Verbo que se encarna pela ação onipotente do seu Espírito que suscita no seio de uma virgem o novo Adão. Ele nada tem a ver, quanto à sua origem, com o velho adão. Dele somente assume a natureza e, segundo a potência criadora que lhe é própria, prepara para si a Mulher, "pré-remindo-a", para que seja sua digna habitação. Maria é da descendência de Adão, mas o Filho, no seu infinito poder, a preserva imune da mancha do pecado que tanto estrago transmite à geração do homem velho.

Não devemos estranhar a forma familiar com que é descrita a relação de Abraão com Deus, sobretudo porque esta aparição dá-se depois de muitas outras. Em todas Deus é apresentado numa grande determinação de realizar o seu Plano. Nessa última ele revela a grande familiaridade que tem com o seu servo porque quer anunciar-lhe a boa nova da vinda do Descendente. A forma atordoada com que Abraão e Sara recebem a notícia está a indicar que de fato é somente Deus que entende o seu próprio Plano, que todavia leva em frente no seu amor à humanidade enquanto tenta, de todas as formas, tornar consciente o homem acerca daquilo que ele está realizando.

Procuremos ver, portanto, no quadro da Anunciação de Lucas, o maravilhoso que Deus atuou pela Encarnação, conscientes de que Deus pode muito bem realizar o que é impossível, e inconcebível para o homem: "O que transcende a potência de Iahweh?" (Gn 18,14). A resposta de Maria se inspira na narrativa desse capítulo do Gênesis e revela que ela tinha apreendido a crer em Deus acima de toda e qualquer expectativa humana.

GÊNESIS 18 (II) (v.16-19)

A familiaridade com que Iahweh trata a Abraão é explicada pela predileção: Abraão encontrou graça aos olhos de Deus e é destinado a ser o princípio de um grande e poderoso povo (v. 18), a fonte de benção para todos os povos da terra. A essa altura, o Autor sagrado insere uma grave admoestação: como filhos e casa de Abraão, os israelitas devem praticar a justiça e o direito, isto é andar nos caminhos de Iahweh, se querem ser os realizadores daquilo que Deus prometeu a Abraão (v. 19). Não basta dizer: "somos filhos de Abraão" para pensar que estão à altura da vocação à qual foram chamados em Abraão. Das próprias pedras de um deserto Deus pode suscitar filhos de Abraão (Mt 3,9). Disto se esqueceu o povo no tempo dos profetas, de forma que sobrevieram os castigos das deportações. Disto continuou a se esquecer o povo do tempo pos-exílico de forma que, através de narrativas didáticas, os israelitas foram continuamente admoestados pelos seus sacerdotes e pastores. Fica manifesta, dessa forma, a verdadeira interpretação do Plano de Deus sobre Israel que o Autor sagrado nos dá através da história de seu fundador. Israel é uma grande nação porque constituída por Deus através da vocação de Abraão. Em virtude dessa vocação Israel tem o privilégio da Revelação do verdadeiro Deus, da Lei, do Culto, dos Profetas, dos Patriarcas (Rm 9,4s). Mas, pelo mesmo privilégio da escolha, Israel tem a grave obrigação de seguir os caminhos do Senhor, praticando a justiça e o direito, doutra forma desvirtuar-se-á a sua condição de povo eleito. É verdade que Deus nunca faltará à fidelidade do seu Amor, mas Israel não estará à altura de realizar a sua missão. A história de Israel mostra que, de fato, ele não esteve à altura da sua missão ao ponto de rejeitar a voz do todo e qualquer profeta que Iahweh lhe enviasse. O próprio João Batista é rejeitado pelas autoridades religiosas e, enfim, também Jesus que por elas é até levado à morte (Mt 23,31s). O Autor sagrado, que também interpretou a história de Israel, viu nesse comportamento o paradigma do comportamento do homem e nos deu a doutrina contida nos primeiros onze capítulos do Gênesis. 
São Paulo, escrevendo aos Romanos, soube detectar, no Espírito, doado por Cristo Jesus em virtude da sua Redenção, o princípio que torna o homem capaz de responder ao Plano de Deus sobre o seu povo (Rm 8,26s). A Igreja é, portanto, o Novo Israel que tem em Jesus o seu Cabeça, e, no Espírito, a força para poder andar segundo os caminhos do Senhor, na verdade e na justiça. Aberta a todos os povos, a Igreja quer fazer deles um só povo quanto à observância da Lei do Senhor, mantida a diversidade de cada nação.
À luz da história do homem, da história de Israel e, agora, também, da própria história da Igreja, duas coisas são claramente previsíveis: o homem voltará a fracassar enquanto Deus continuará a salvar e a levar em frente o seu Plano. Isso porque, não obstante o dom do Espírito, o homem facilmente volta a sucumbir aos atrativos do pecado, enquanto Deus, porque fiel a si mesmo, levará até as últimas conseqüências a Redenção que o Filho iniciou pela Encarnação. A outra terrível verdade, que certamente sobrevirá à Igreja, será o castigo divino, bem mais terrível do castigo corretivo que Israel sofreu. Não obstante tudo isso, a fidelidade de Deus não terá falhado porque, enfim, será constituída a Jerusalém celeste com todos os esplendores dos que deram testemunho da Palavra e de Jesus Cristo e lavaram suas vestes no sangue do Cordeiro.
Por tudo isso Abraão é, nessa consideração que Deus faz, enquanto o seu servo de predileção o acompanha e ao qual nada pode esconder porque destinado a ser uma grande e poderosa nação, o escolhido para que dê ordem aos seus filhos e à sua casa que guardem os caminhos na justiça e no direito: "deste modo Iahweh realizará para Abraão o que lhe prometeu"(v. 19). Abraão é, então, clara figura de Cristo Jesus, que tudo tem em comum com o Pai, que é o Enviado para estabelecer a justiça e o direito como Chefe da Casa de Israel, pela qual tudo se cumprirá do que o Senhor prometeu. Cristo Jesus é, todavia, superior a Abraão porque, enquanto a realização das promessas feitas a Abraão depende da resposta positiva dos seus filhos e da sua casa, o que a Igreja recebe já foi alcançado unilateralmente por Cristo-Cabeça, ficando, todavia, de pé, a responsabilidade da implementação por parte dos seus discípulos.

Gênesis 19

A narrativa deste capítulo está ligada a Gn 18 porque fala da destruição de Sodoma e Gomorra que Abraão tentou evitar com a sua persistente mediação e, também, porque o Autor sagrado atribui a salvação de Lot a uma consideração que Deus teve com Abraão (19,29). Os anjos que se apresentam representam o próprio Deus (v. 14). São dois, porque devem testemunhar que o clamor grande dos pecados que se eleva a Deus (18,21) corresponde à realidade (19,13). Enquanto os anjos são o próprio Deus que se manifesta, o Autor sagrado fala de adoração que Lot presta ao curvar-se diante deles com o rosto por terra. Aqui temos mais uma oportunidade para aprofundar a noção de "anjo". Enquanto se refere a Deus, esse particípio passado passivo vem a significar o próprio Deus que se manifesta. Enquanto se refere a uma criatura é a mesma exercendo a função pela qual foi enviada. Tal parece ser a criatura animada, chamada de anjo, que recusa a adoração de João em Ap 19,10 e 22,8s. De fato ela não passa de um servo de Deus que possui o espírito da profecia como qualquer outro cristão irmão de João, santificado pelo Espírito. É o anjo interprete, criação de uma teologia pos-exílica que certamente não pode receber a adoração que se presta a Deus porque é concebido como criatura distinta de Deus. É mera figura imaginária que está a simbolizar uma suposta mediação entre João e o próprio Deus, verdadeira fonte da revelação (Ap 1,1s).

Constatada a sodomia praticada do mais novo ao mais velho (Gn 19,4), fica justificado o castigo que o próprio Deus vai enviar sobre as duas cidades de Sodoma e Gomorra. Diante desse texto o homosexualismo é indefensável. Aliás é explicitamente condenado em Lv 18,22; 20,13. Que seja um vício é até provado pelo fato que quer ser satisfeito a qualquer custo e numa atitude de total arbitrariedade (v. 9). É o pecado que, constatado, é a causa da perdição da cidade (v. 15). Ainda mais que queria ser perpetrado numa aberta violação da hospitalidade sagrada, tão sagrada que Lot, no desespero, se dispõe a entregar aos instintos dos sodomitas as suas próprias filhas (v. 8) (atenção a não objetivar o pecado de Lot. Aqui o Autor sagrado quer focalizar a perversão dos sodomitas que poderia ter levado o sobrinho de Lot a um gesto desesperado. Estamos diante de uma narrativa didático-sapiencial).

O ensinamento adota um fenômeno sísmico, que destruiu o vale do Jordão e as cidades nelas situadas, como quadro para tipificar a gravidade do castigo. Vemos, de fato, que o Autor sagrado se refere a uma pequena cidade de Segor e sobre ela cria uma etiologia (= explicação da origem do nome) e faz, de figuras de sal da região, uma lembrança de um suposto castigo contra a mulher de Lot. Sempre e, propositadamente, o Autor sagrado coloca curiosidades na sua narrativa para que nunca escape ao leitor a certeza de que se trata de contos didáticos, aonde, o importante é o ensinamento doutrinal e moral. Esse ensinamento é assumido por João no Apocalipse: enquanto atribui o castigo contra Sodoma a Gomorra à Samaria, está a indicar uma punição de destruição sobre a tribos do Norte, por ter chegado a encher a medida dos seus pecados (Ap 9,2). A invasão dos assírios deve ser interpretada como um castigo que Deus infligiu ao seu povo por meio de Senaqueribe (722 a.C. ), o Anjo destruidor do Abismo, onde só há trevas, semelhante ao castigo que Sodoma e Gomorra sofreram, segundo o ensinamento da narrativa bíblica de Gn 19.
Também quando, no fim de Gn 19, o Autor sagrado nos apresenta a origem dos Moabitas e Amonitas, é simplório pensar que ela se deu, materialmente, da forma que ele utiliza em apresentá-la. O que o Autor sagrado afirma com todas as letras é que a descendência de Lot, absolutamente, nada tem em comum com o povo sodomita, por pior que se possa pensar da sua origem [Ele já tinha ilustrado tudo isso com o quadro de Lot que vai alertar seus futuros genros sobre a iminente destruição de Sodoma e Gomorra. Como resposta à sua atenção, os genros acharam que estivesse divertindo-os (Gn 19,14)]. Todavia, nem se compara com a origem do povo hebraico, embora Lot tenha acompanhado Abraão quando da vocação deste para sair da sua terra e ir para a terra que Deus designava (Gn 12,1.5). Os ismaelitas podem ser descendência de Abraão (Gn 16,15), os Moabitas e os Amonitas podem ser descendência da mesma família de Abraão, mas o verdadeiro povo de Deus são os israelitas, descendentes do filho da promessa!

Gênesis 20

Se existe uma similaridade desse capítulo com Gn 12,10-20, ela está no fato de Abraão repetir com Abimelec a mesma epiqueia aplicada ao faraó. As circunstâncias são idênticas e o que funcionou uma primeira vez, certamente vai funcionar uma segunda vez. O recurso do homem diante do desmando dos prepotentes revela toda a sua impotência diante da virulência do violento. Mas esse é um nada para Deus que não permite que os seus servos sucumbam diante do Mal. Somente quando chega a hora da glorificação dos seus servos é que o Senhor permite que o Mal prevaleça para que os maus encham a medida das suas culpas matando o justo e sejam exterminados, enquanto os bons que perseveraram até o fim sejam chamados por Deus a participar da sua vida (Ap 11, 7.11). Essa é a moral da história em ambos os relatos. Quanto ao primeiro relato, Deus intervém como o defensor daquele que foi chamado para realizar um Plano que diz respeito para toda a humanidade. Quanto ao segundo relato, Deus intervém como protetor daquela que foi destinada a ser a mãe da Descendência. O Autor sagrado faz questão de sublinhar que Deus imediatamente admoesta Abimelec "que ainda não tinha se aproximado dela" (Gn 20,4), para que nenhuma dúvida surja quanto à verdadeira origem do povo hebraico. Em segundo lugar, aqui é lembrada uma recompensa de "mil siclos de prata"(v. 16) que, especificamente, Abimelec dá a Abraão em respeito a Sara. Em terceiro lugar, o castigo de Deus atinge as mulheres da casa de Abimelec "por causa de Sara, a mulher de Abraão" (v.18). Enfim, é evidente a ligação de Gn 20 com Gn 21 que inicia assim: "Iahweh visitou Sara....". Tudo isso nos leva a ver em Gn 20 uma solene introdução ao importantíssimo evento do nascimento de Isaac, do qual Sara foi o instrumento providencial nas mãos de Deus.

As narrativas que se apresentem em Gênesis, Êxodo e Números são contos didáticos sapienciais que querem ilustrar uma verdade teológica. A similaridade não significa duplicata. Não é uma segunda narrativa da criação a que se encontra em Gn 2, porque, embora se assemelhe à narrativa de Gn 1, ela visa, de fato, desenvolver o tema específico da criação do homem, simplesmente mencionada em Gn 1, 27-29. Assim, em Gn 20 não temos um duplicata e, sim, uma narrativa específica para ilustrar uma doutrina específica. 

A leitura da Sagrada Escritura deve ser feita tendo presente o quadro geral do Plano de Deus sobre o homem para que seja detectado o tema específico tratado em cada perícope. Dessa maneira, o enredo literário deixa de ser uma armadilha que nos leva a interpretações fantasiosas e a justificativas mirabolantes dos fatos apresentados. Advertindo essas nuances, estaremos em condição de lermos os textos reconhecendo neles toda a capacidade literária do Autor sagrado que nunca cochila, embora nos surpreenda com repetições que aparentam ingenuidade. Os ingênuos somos nós que pretendemos julgar uma literatura que resistiu à própria crítica dos sábios do povo hebraico (Eclo 1, 1-14). Embora similar a Gn 12, 10-20, esse texto desenvolve o conceito da Providência divina na vida de um hebreu errante que se acha sem amparo numa terra estrangeira, cheia de homens sem temor de Deus. Contrariamente a que o homem possa pensar, Deus protege os seus servos e guarda os seus caminhos. São os caminhos dos maus que levam a perder-se. 

Devemos notar também que os episódios narrados assumem uma forma cronológica porque o Autor sagrado quer desenvolver, por meio deles, uma história religiosa do homem e do povo de Israel. Sob esse aspecto poderíamos ver uma contradição entre a cobiça de Abimelec e a constatação do próprio Autor sagrado de que Sarah já era velha (Gn 18,11). A contradição é só aparente porque o Autor sagrado lê os números de forma simbólica e utiliza a esterilidade como forma para sublinhar a exclusiva intervenção de Deus em perpetuar a Descendência prometida desde as origens da história da humanidade.

Os textos religiosos da Sagrada Escritura devem ser, portanto, abordados como textos sagrados que entendem transmitir um revelação acerca de verdades eternas. Quanto melhor estivermos preparados para interpretá-los, tanto mais saberemos captar a sua verdadeira significação.

Gênesis 21

É demais a insistência do Autor sagrado em sublinhar a direta intervenção de Deus na concepção de Isaac. Abraão é praticamente excluído e Sara é apresentada como a mãe que se alegra somente porque deu a Abraão o filho da sua velhice. Para o Autor sagrado o povo hebraico, decididamente, tem sua origem em Deus. Foi Deus que o suscitou e, para ilustrar essa origem exclusivamente providencial por parte de Deus, o Autor sagrado não somente vê Abraão errante e exposto continuamente à morte como também sem condições nenhumas de ter uma descendência por causa da esterilidade de Sara. Se o filho esperado nasce é porque Deus com ela fez conforme tinha prometido (v.1). Isaac (=ele ri) é motivo de sorriso no rosto de Abraão, de Sara e dos que chegam a ouvir que essa teve um filho. Todavia não deixa de ser o nome que para sempre testemunhará que foi dado a Abraão e Sara quando já estavam totalmente descrentes (Gn 17,7; 18,12).

A circuncisão de Isaac é oportunamente lembrada pelo Autor sagrado para que Israel nunca se esqueça da sua importância: ela é o rito que incorpora, a pleno título, cada filho de hebreu, disposto a ser membro do povo eleito pela observância da Aliança, manifestando assim toda a sua fé no Deus que se revelou a Abraão. Inútil, aliás comprometedora é uma circuncisão meramente ritual, como inútil e comprometedor é o batismo do cristão celebrado mais como um rito do que assumido "como compromisso solene de um boa consciência para com Deus" (1Pe. 3,21).

O ciúme de Sara em relação a Ismael, filho de Agar, a escrava egípcia, é um comportamento humano, didaticamente utilizado, pelo qual Deus define uma importante verdade: pertencem à descendência de Abraão não aqueles que tem com ele uma consangüinidade, mas aqueles que Deus suscita, à semelhança de Isaac. É povo hebreu todo e qualquer homem que é fruto da iniciativa que Deus tomou ao chamar a Abrão, o qual se tornou pai de uma multidão de povos (= Abraão), em virtude da sua fé. Todos aqueles nos quais Deus suscita a mesma fé de Abraão podem reconhecer-se legitima descendência, como Isaac, estirpe de Abraão, continuadores da sua fé. São os que crêem, "que não nasceram do sangue nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus" (Jo 1,13). A essa condição podem chegar, antes dos outros, os hebreus, porque em Abraão foram chamados por primeiros, todavia sem exclusão dos outros povos porque chamados por Deus no "pai de uma multidão de povos" e, mais especificamente, em Isaac e por Isaac, o filho da promessa (Gl 4,28). Essa é a visão teológica que o Autor sagrado ensina por meio da narrativa de Gn 21. Deus, desde a vocação de Abraão, sempre contemplou a vocação de todos os homens à verdadeira religião. Em todo e cada homem ele suscita a fé enquanto se revela na história. Aqueles que a ela aderem tornam-se membros do povo de Abraão que por primeiro recebeu a justificação na fé, isto é por ter acreditado (Gn 15,6) e não porque algo seu possa ter sido princípio do que ele se tornara diante de Deus. Um judeu pode considerar-se descendência de Abraão segundo a carne e membro do povo hebraico por causa da circuncisão, mas ele ainda não o é de fato se não se justifica pela fé e não implementa a Lei. É por isso que Jesus reconhece que os membro do seu povo são "descendência de Abraão"(Jo 8,37), ao mesmo tempo que os exorta a crer nele para que se tornem "como Isaac" (G 4,28), deixando-se atrair pelo seu Pai que o enviou (Jo 6,44). Somente assim são verdadeiros frutos daquele que é capaz de suscitar filhos de Abraão até das pedras, sempre abertos à iniciativa de Deus que, a partir de Abraão foi se manifestando ao longo da história de Israel até Jesus Cristo, o realizador da Descendência, prefigurada em Isaac (Gn 21,12). Para melhor entendermos o que significa ser filhos de Abraão basta projetar a realidade cristã sobre a realidade judaica. Os cristãos são estirpe de Cristo Jesus, Cabeça de um novo povo, mas nem sequer o batismo os torna herdeiros da promessa se, de fato, não vivem aquilo que se tornaram. Assim é dos judeus em relação a Abraão, figura de Cristo. A descendência segundo a carne e o sangue, e a circuncisão só valem se o hebreu se relaciona com Deus na fé e pelas obras da fé.

Gênesis 22

O quadro bíblico do sacrifício de Isaac retrata os sentimentos de Jesus Cristo na sua Paixão e Morte e os do Pai que doa o Filho ao mundo.
Abraão tinha recebido de Deus o filho da promessa, Isaac. Nele podia agora depositar toda a sua certeza porque era o herdeiro que o perpetuaria. Dele tinha saído e de Sarah, por clara vontade do próprio Deus. Mas, o mesmo Deus põe à prova o seu servo pedindo a renúncia total de Abraão pelo oferecimento do seu filho em sacrifício. Deus tem uma maneira toda sua de levar à perfeição a santidade do homem e que o homem deve acatar na fé. Abraão revela possuir essa prerrogativa: não questiona a ordem de Deus e parte imediatamente para a sua execução. Isso só pode acontecer num homem de profunda docilidade, fé e piedade. São exatamente os sentimentos de Cristo Jesus na sua Paixão e Morte. Embora seja Isaac a personagem da narrativa que representa Cristo Jesus na sua Paixão, porque é ele que carrega a lenha do sacrifício, de fato é Abraão que se imola diante de Deus, no filho. A feliz associação das duas personagens que caminham juntas para o lugar que Abraão, no terceiro dia, tinha avistado de longe, permite ver no quadro bíblico do sacrifício de Isaac uma profética prefiguração da Morte de Cristo sobre o monte Calvário. Todo o amor de Abraão que perspira no diálogo entre Isaac e o pai, enquanto sobem o monte até o lugar do sacrifício, revela a profundidade do desprendimento que Abraão teve ao aceitar, na fé, de cumprir a ordem de Deus. Numa legítima transposição de figura, para nós que lemos esse texto profético à luz do "tudo realizado" é possível ver também, no amor de Abraão, o amor do Pai que entrega o Filho à morte. Mantida, todavia, a interpretação inicial que vê em Abraão a figura de Cristo, deve ser visto no amor de Abraão pelo filho todo o sentimento de amor de Cristo na sua Paixão. É um amor permeado de espírito de imolação, purificado pelo desprendimento e fé em Deus, vivido numa obediência que nada questiona e que tudo cumpre. Foi esse o espírito com que Abraão quis realizar a imolação do seu filho. É esse o verdadeiro sacrifício que Deus aceita, do qual, todavia, Deus se agrada mediante a vítima sacrifical que lhe é oferecida, enquanto essa vítima é a expressão concreta dos sentimentos interiores. Foi isso que o autor quis dizer de Abraão ao dramatizar a vontade de Deus mediante uma exigência de imolação e ao dramatizar os sentimentos corretos, diante de Deus, do homem que pratica a justiça e o direito. A figura de um sacrifício com vítima humana está relacionada ao tempo da história no qual o Autor sagrado situa a sua narrativa didática. Aliás, é num sacrifício humano que o Autor sagrado vê a mais clara forma para expressar os seus ensinamentos. Não é pelo valor da vítima, seja ela a mais valiosa, e sim pela obediência, que o homem agrada a Deus. De fato, embora a vítima não tinha sido sacrificada, nem poderia sê-la, Deus cumula de bênçãos o seu servo Abraão. As questões que nós levantamos acerca da legitimidade de Deus  em exigir um sacrifício humano e do homem ter que obedecer à ordem de Deus são ociosas e descabidas. Todo e cada hebreu sempre soube que Deus nunca quis sacrifícios humanos (Sl 106, 37-40); Lv 18,21). A figura da imolação do filho, o unigênito, o amado, é que mais poderia refletir quanto Abraão estava dócil e pronto a realizar a vontade de Deus na sua vida.

Da forma que Abraão é figura de Cristo no sacrifício de si, expresso mediante a imolação do filho, ele é também figura de Cristo na glória que sucede à prova superada. Abraão recebe todas as bênçãos de Deus, é abençoado na sua descendência, é fonte de bênção para todos os povos enquanto a Descendência é vitoriosa contra todos os seus inimigos. Abraão é Cristo que feito obediente até a morte e morte de cruz recebe o nome de Senhor e todos os joelhos se dobram diante dele (Fl 2,6-11).



Abraão que obedece, em tudo, a Deus, Isaac que sobe o monte Moriá em união de fé com o pai e aceita ser imolado, caracterizam os sentimentos que Deus espera de cada um dos seus servos. É filho de Abraão, é um Isaac somente aquele que, na fé, adere à vontade de Deus. Não basta a descendência carnal, não basta a circuncisão, o filho de Abraão é reconhecido por Deus, se cumpre as obras da fé, isto é, se põe em prática a vontade daquele que reconhece como seu Senhor. Assim o cristão é chamado à obediência da fé mediante a implementação da Lei de Cristo Senhor.

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