Índice
1a
Palestra: Antropologia revelada
2a Palestra: A Revelação
Uma
visão unitária
Síntese
esquemática
3a
Palestra: A vocação do homem e a
História de Israel
4a
Palestra: A condição do homem na criação
5a
Palestra A cosmologia revelada
6a
Palestra: O Caminho da realização do homem
7a
Palestra: O pecado
8ª
Palestra: O pecado de Adão
9a Palestra:
A Descendência
10a Palestra: O mundo
Reflexão final
1a
Palestra: A antropologia revelada
O
conhecimento de Deus que a Revelação nos oferece torna-se o ponto de partida
para o próprio conhecimento do homem. De fato, o homem é criatura de Deus, autor
de cada fibra do seu ser. Isso determina que, a princípio, Ele conhece
perfeitamente o homem. Considerando que o Criador, por definição ditada pela
própria Revelação, é a Bondade, devemos supor que, no ato de criar, ela atue no
amor e que, no ato de fazer com que a criatura subsista, favoreça o seu
desenvolvimento segundo os ideais da sua realização. Quando, portanto, Deus
dita à criatura as leis a serem cumpridas, está interpretando as exigências do
seu ser. Os mandamentos de Deus não são imposições arbitrárias, quase coibindo
a liberdade do homem. São leis ditadas pela Sabedoria que conhece o homem e
quer conduzi-lo até a sua realização.
Na
revelação, portanto, o homem encontra a exposição, a mais plena e exata, da sua
natureza, das leis do seu desenvolvimento, das metas da sua existência, ditadas
pelo seu Criador. É grande sabedoria compenetrar-se com esses conhecimentos,
que revelam toda a conveniência de uma dependência harmoniosa do Criador,
mediante a obediência aos seus preceitos, e toda a validade dos mandamentos a
serem observados. A descoberta da natureza do nosso ser, dos verdadeiros
caminhos da nossa realização e das metas grandiosas a que somos chamados, devem
ser as motivações do nosso comportamento moral (Sb 1; Sl 139,1-6.13-18.23-24).
A
reflexão sobre a Revelação de Deus, que fala ao homem sobre o próprio homem,
propicia um grande conhecimento de nós mesmos. Da mesma forma que a reflexão
sobre a Revelação propicia um grande conhecimento de Deus, muito acima daquele
que o homem poderia obter pelo mero esforço da sua mente, a reflexão sobre a
Revelação, enquanto Deus fala ao homem do homem, propicia um conhecimento
muito superior àquele que o homem
poderia alcançar de si, pelo esforço da sua observação.
A
esse respeito, a Revelação prova ao
homem que, quando começa a se analisar, parte das formas do seu comportamento,
que a forma do seu conhecimento é empírica, que as categorias morais que o
homem estabelece brotam de uma necessidade de convivência, implementando, mais
uma vez, uma filosofia empírica (Sb 2). A Revelação, que é a manifestação do
conhecimento que o Criador tem da sua criatura, diz ao homem qual é a própria
origem da sua presente condição: é fruto de uma degeneração provocada por
subsequentes desvios (Rm 1,18-32). Fundamentar leis de comportamento sobre uma
definição do homem deduzida pela mera experiência sensorial significa assumir
um equívoco que brota do desconhecimento da condição originária do homem. É
Deus que dita essa condição originária do homem, pela Revelação.
A
síntese dos dados que a Revelação nos oferece, permite formular a seguinte doutrina,
que se torna a chave de leitura da própria Revelação. Deus é a Bondade que ao
agir, no Amor, chama à existência cada criatura, cujo destino é o máximo da sua
realização, conforme a sua natureza. O homem é a criatura chamada a participar
da própria vida divina em virtude de uma potencialidade, que é a consciência
que ele tem de si, que o torna capaz de conhecer o seu Criador. A condição de
perfeição da Bondade faz com que Deus se debruce sobre o homem desde o seu
alvorecer, desde o princípio da sua existência que somente através da
necessária evolução se manifestará. O gratuito divino vem, na perfeição da sua
Sabedoria e do seu Amor, sobre o homem que se apresenta em toda a limitação de
uma vida embrional. Se essa natureza humana fosse assumida pelo próprio Deus,
ela seria necessariamente conduzida à glorificação. Foi aquilo que se deu com a
Encarnação. Enquanto ela é vivida nas hipóstases humanas, tendo que se
desenvolver segundo a precariedade do conhecimento que a criatura vai
desenvolvendo, acaba enveredando um caminho de degeneração por causa das opções
descabidas que ela acaba tomando. A intervenção divina na história do homem
torna-se a mais sábia solução da Bondade, movida pelo amor. Quanto mais o homem
acatar o Caminho que o Deus Criador lhe revela pela sua Encarnação, tanto mais
estará trilhando a vereda da sua realização.
A
antropologia revelada vai se desenvolvendo a partir das primeiras páginas da
Escritura. Aliás, pela própria narrativa da criação, antes mesmo que se fale do
homem, a criatura entende que a sua realização está em viver uma condição de
glorificação do seu Criador. O intérprete dessa louvação deve ser o próprio
homem, que, único, tem consciência dessa condição da criação. Essa louvação
será perfeita quando o homem, numa livre e consciente atuação, prestará a Deus
a sua louvação numa aceitação amorosa da sua dependência do seu Criador,
exatamente da forma que se deu em Cristo Jesus.
Infelizmente,
isso não acontece, o que torna necessária a intervenção amorosa de Deus na
história do homem. A Redenção, contudo, patenteia ainda mais a bondade, a
sabedoria, o poder e o amor de Deus, para que o homem, ao contemplar as obras
do Criador, não mais limitadas a uma criação do mundo, e sim, incluindo todas
as manifestações providenciais dele na sua história, encontre motivações
profundas para uma atitude de louvação e obediência, que, enfim, o conduzam à
realização do Plano de Deus.
Para
nos conscientizarmos ainda mais da transcendência do conhecimento que nos vem
de Deus através da Revelação, basta pensarmos à extrema relatividade do nosso
conhecimento, adquirido de forma humana. Pela interação com o mundo, que se
opera através dos sentidos, se produz, no homem, uma reflexão interior.
Descartes considerava esse processo o princípio de uma intuição fundamental: a
do meu existir. Mas, além dessa importante descoberta, qual é a resposta que o
homem é capaz de dar a ulteriores questionamentos: quem sou eu, qual a minha
origem? Quais as regras de um comportamento construtivo? Qual o meu destino?
Devido
à forma com que se processa o nosso conhecimento, as respostas só podem ser
elaboradas através de uma interação com o mundo. A filosofia me diz, então que
eu sou um produto evoluído de uma matéria informe, que foi se estruturando. A
minha vida é vegetativa, emotiva, racional. Olhando ao que se repete nos
outros, vejo que está sujeita a um ciclo: concepção, crescimento, decadência,
morte. Na base da experiência empírica, se eu vivo esta vida respeitando suas
regras de desenvolvimento, terei saúde, poderei desenvolver suas
potencialidades de inteligência, arte, prazeres. Posso até chegar a ver na
honestidade e na filantropia valores morais que realizam o homem. Mas, qual
seria o sentido da morte? Consequentemente, qual seria, em si, o valor de uma
vida virtuosa? Se ela é meramente o termo de um ciclo de existência, qual seria
o sentido pleno de uma vida virtuosa à qual minha consciência convida?
(“Gaudium et Spes” 10)
Uma
reflexão filosófica mais aprofundada constata que a abordagem empírica é
superficial. Na base das categorias que o homem é capaz de formular é possível
uma análise abstrata da própria realidade do homem, cuja validade deverá ser
comprovada pela implementação. O homem não é só um ser concebido, ele é um ser
criado. O sentido último da sua existência está na vontade do seu Criador. O
seu destino transcende a mera felicidade derivada de uma relação harmônica
mantida com os outros seres e com o mundo.
Embora
a reflexão filosófica esteja sempre atrelada à forma pela qual as idéias são
geradas na mente humana, existe, todavia, um denominador comum que nos permite
dialogar. Mas a gama das interpretações é infinita. Isso prova o relativismo do
conhecimento humano. Contudo, fica provado que o conhecimento humano existe e
que é capaz da verdade.
É
em cima dessa condição que age a Revelação divina. Pelo fato que a Revelação é
Deus enquanto fala ao homem, aí temos a Palavra do Criador à sua criatura, para
lhe dizer quem ele é, para que foi criado, como deve se conduzir. Além disso,
na Revelação está a resposta acerca da situação crucial em que o homem vive a
sua existência: mal, enfermidade, desajuste moral, morte dolorosa. Analisada em
si mesma, a Palavra da Revelação é uma reflexão extremamente profunda de homens
religiosos (sacerdotes do templo, profetas, sábios, escribas) sobre o homem.
Todavia, ela adquire um valor de doutrina revelada, na base de uma constatação
histórica da existência do povo hebraico, que teve uma experiência única de
Deus.
O
Deus que a razão humana é capaz de provar como o Existente que dá origem a
todos os seres, que dele recebem a existência, pela própria história do povo
hebraico provou ser o Deus único, sobretudo pela ação dos profetas, que falaram
em seu nome.
Deus
foi, pedagogicamente, preparando a convicção, que agora nós temos, da sua existência,
através da história da origem e formação do povo hebraico, que a interpretação
teológica do povo hebraico descobriu ser de origem divina. A apresentou pela narrativa de Abraão, Isaac
e Jacó, a desenvolveu pelas narrativas
do Êxodo e Números e interpretou pelo Deuteronômio. Uma interpretação que
encontra a sua objetiva comprovação na experiência profética: homens que falam
em nome de Deus, cuja palavra interpreta a história de Israel e aponta para os
caminhos da piedade, da virtude e da justiça. O povo hebraico volta a ter uma
experiência marcante da existência do seu Deus quando, contra toda expectativa
(Is 42,22s), alcança a libertação da escravidão de Babilônia. O profeta
torna-se o interprete da história mostrando como Deus tinha anunciado o castigo
(Is 48,3). O último dos profetas é Cristo Jesus que recebe do povo hebraico o
mesmo tratamento antes dispensado aos outros profetas. A rejeição prova que a
religião hebraica não é de origem humana. Aquilo que ela revela transcende a
condição do próprio povo, beneficiado
pela Revelação. Além dos historiadores e dos profetas temos os sábios que em
cima da reflexão sobre os textos sagrados, constroem ensinamentos de
profundidade original. A linha dos historiadores, dos profetas e dos sábios é o
elemento humano de cunho literário e cultural que carrega em si uma doutrina
que contrasta com a expectativa humana, mas que, contudo, sempre traça um
caminho positivo para a realização do homem, um caminho de perfeita ética, que,
por si, indica sua origem divina.
Uma
vez comprovada pela história a condição da Revelação, ela é por nós abordada
como doutrina de Deus, capaz de nos dar explicações abrangentes aos
interrogativos que a razão humana trata tateando (Sto. Agostinho, 2a leitura da
2a feira LH, 25a semana TC).
Ao
tratar do homem, a Revelação se articula pela reflexão dos autores sagrados. É
por meio deles que o Espírito Santo revela ao homem as verdades divinas. A
História de Israel é o ponto de partida. Os autores sagrados constatam que o
seu Deus sempre teve uma atitude de predileção e ternura, que manifestou em
proteção, força libertadora, até fazer, de quem não era um povo, o seu povo,
com culto, Glória da Divindade, leis, profetas e pátria. Essa constatação serve
para interpretar qual a intenção de Deus sobre o homem, dentro de uma condição
originária. A terra, com o seu esplendor, é o Éden no qual o homem deve reinar,
contudo, numa condição de dependência do seu Criador. Deus é ternura e
predileção com o homem que, infelizmente, não corresponde ao Plano de Deus.
Nessa mesma perspectiva deve ser, portanto, interpretada a narrativa de Gn 3. A
História de Israel é paradigmática para entender a atitude do homem em relação
ao seu Criador (Dt 4,15-19; Rm 1,23). Os textos de Gn 1-11 devem ser
interpretados segundo o seguinte esquema: a História de Israel é o ponto de
partida; a reflexão teológica universaliza a constatação limitada a Israel; a
moldura cronológica tem a finalidade de sistematizar a reflexão teológica final
e relacionar a humanidade a uma redenção que, necessariamente deverá acontecer
no tempo.
O
futuro revelado e atuado por Deus, elemento específico do Profetismo.
A
prova objetiva, para Israel e para nós, de que o Senhor nosso (=Elohim) é um
Deus realmente existente é o profetismo, pelo qual o Deus de Israel anuncia o
que acontecerá, e o realiza. Prever o futuro não é algo que seja exclusivo de
Deus, porque Balaão o prevê na condição de vidente. Há pessoas que tem
premonições de coisas que acontecem. Realizar o futuro, isto sim, é o elemento
específico que associado ao primeiro determina que a premonição não é um
fenômeno do profeta e sim, uma revelação por parte daquele que fala ao profeta,
enquanto anuncia que o realizará. As circunstâncias nas quais o acontecimento
se atua são humanas. Contudo, é o anúncio profético que revela que o verdadeiro
autor é Deus, o Senhor, que domina os corações dos homens. A certeza subjetiva
do profeta de que é o seu Elohim que está lhe falando prova ser objetiva a
revelação quando as coisas acontecem, enquanto essas mesmas provam a objetiva
existência de quem as anunciava ao profeta.
Para
Isaias II, o anúncio profético, do qual ele é o instrumento, e a sua realização
são os argumentos para provar a inutilidade da idolatria e, ao mesmo tempo,
para convencer Israel a voltar ao seu Deus. O conhecimento do verdadeiro Deus é
a riqueza máxima do homem. Pelo Deus comprovado na sua existência através do
fenômeno profético, é possível, para o homem, descobrir que está relacionado
com o mesmo Deus criador. A relação da criatura com o seu Criador, por si
poderia ser estabelecida pela contemplação das obras da criação, pois nelas
Deus se revela o Existente que é Bondade, Amor, Beleza e Poder. É a fragilidade
extrema do homem que anula esse caminho para chegar ao seu Criador. De fato o
homem, em lugar de atingir o seu Criador na sua existência e transcendência, no
seu processo de conhecimento se deixa desviar pelas figuras da sua imaginação e
troca o verdadeiro Deus por ídolos.
Vemos
que o homem fracassa em chegar ao seu Deus pela contemplação das obras da
criação e fracassa na observância da vontade de Deus, não obstante chegue, pelo
profetismo, à prova objetiva que o seu Elohim é o verdadeiro Deus. É por isso
que o próprio Criador e Senhor da História se encarna. As provas da sua existência
são então dadas pelo fenômeno profético, que o Deus feito carne vive como
Messias, e pelo anúncio da sua Morte e Ressurreição. Ninguém pode duvidar que
Jesus, como profeta, estivesse falando em nome daquele que o enviou.
Conseqüentemente, ninguém pode mais recusá-lo quando se proclama o próprio
Iahweh que desceu do céu e veio ao mundo. Para João, a prova da divindade de
Jesus está no anúncio da sua Paixão que se realiza e que é a vitória do “Eu
sou” sobre o príncipe deste mundo que nada pode contra ele (Jo 13,19; 14,30).
2a
Palestra: A Revelação
Pela
análise dos textos bíblicos podemos constatar que, atrás das doutrinas que nos
apresentam, está o Criador, o Verdadeiro, o Santo que se revela. Isto significa
que a doutrina da qual o fiel toma conhecimento, pela leitura das Escrituras, é
pensamento de Deus, pelo qual é comunicado ao homem o Caminho da Verdade e da
Vida. A Revelação constitui-se numa interação pela qual Deus, que conhece cada
fibra da sua criatura, leva o homem ao conhecimento da sua Vontade, enquanto o
homem responde à iniciativa de Deus pela implementação das verdades que Deus
lhe comunica. Dá-se um processo de conhecimento análogo àquele que se atua no
campo da experiência sensorial. Enquanto construímos as nossas categorias mentais
pela interação com o mundo, da mesma forma construímos o conhecimento religioso
pela interação com as Escrituras, pelas quais o Criador vai se revelando. Da
mesma forma que a nossa condição de realeza sobre o mundo dá-se pelo continuado
esforço da nossa reflexão e experimentação, no campo espiritual o processo é
igualmente lento e o progresso depende da implementação das verdades
entendidas. Dessa forma, a Revelação resulta ser a continuação do gesto criador
de Deus, pelo qual nos foi dado o dom da existência. Mediante a revelação, que
Deus faz de si ao homem, Ele entende continuar a plasmar a sua criatura,
segundo a sua natureza consciente e responsável, até torná-la um homem
perfeito. O modelo desse processo está na humanidade que o próprio “Eu sou “assume
pela Encarnação. De forma sempre harmônica, embora sujeita às limitações da sua
condição de criatura, a humanidade assumida pelo Verbo é continuamente plasmada
e remodelada pelo Espírito, até tornar-se perfeita criação no momento da sua
glorificação, momento em que se torna Luz em Deus: “Tu és meu Filho eu Hoje te
gerei” (At 13,33; cf. Gn 1,3-5). A Revelação é, portanto, a Palavra que sai da
boca de Deus, pela qual o homem se nutre e continua, na sua existência, o
processo de crescimento, segundo o Plano que Deus tem sobre ele: o de torná-lo
participante da sua própria vida. A Palavra-Revelação, como lembra Hb 1,1s, foi
comunicada, de forma parcial, embora contínua, pelos Profetas. Mas quando
chegou o Filho, este é a Revelação plena, aqui e agora, porque é a Palavra
voltada para o Pai (Jo 1,1), o Filho unigênito (1,18), que se faz carne. Em
Cristo Jesus está, então, contido o Caminho da plena realização do homem, como,
também, aquilo que Deus quer comunicar ao homem, enquanto se revela como
Verdade encarnada. Mas, enquanto a Palavra é o próprio Deus subsistente, que
assume a natureza humana em vista de uma Redenção, pela imolação de Cruz, ele é
a Vida do homem. Em Cristo Jesus é dado, portanto, ao homem de se encontrar
plenamente com Deus: “Felipe, quem vê a mim vê o Pai (Jo 14,9), “eu e o Pai
somo um” (10,30), “Quando tiverdes levantado o Filho do Homem, então
conhecereis que “Eu sou” ” (8,28). Pelo conceito de revelação deduzimos o que é
conhecimento na vida espiritual: a nossa
comunicação plena com Deus, pela participação plena da sua Verdade e da
sua Vida. É a forma concedida ao homem, pela qual ele vê a Deus. Ao longo da
nossa existência terrena, essa visão dá-se pela fé. Terminado o tempo da vida
sobre a terra, por si destinado a levar à sua plenitude a criatura, a visão de
Deus dá-se pela participação da sua Glória.
A
Palavra que se fez carne e que é a Revelação plena de Deus (Ap 1,1), atua de
forma pedagógica, revelando-se paulatinamente pela Torah, os Profetas e os
Sábios. A Escritura é um todo que assume o título de Revelação e que entende
fazer conhecer ao homem, pela Palavra, quem é Deus. Por Cristo chegamos ao
conhecimento de Deus, porque ele é a Palavra revelação e redentora que atua, em
si, o Plano de Deus.
Enquanto
o fiel participa da Revelação pelo conhecimento das Escrituras, pela fé em
Cristo e pela participação dos sacramentos da igreja, entra em plena comunhão
de vida com o seu Criador. A Revelação é como o fermento na massa, que atua sem
alterar a natureza do homem, simplesmente potenciando-a, enquanto a torna
participante da vida de Deus. A escuta atenta da Palavra de Deus, que se
revela, é o primeiro passo para iniciar a percorrer o Caminho de um
desenvolvimento harmônico da complexa relação da criatura com o seu Criador.
O povo hebraico se deu conta de que Deus
estava revelando-se, somente quando viu os sinais estrondosos da sua história,
encontrando disso uma confirmação na ação profética, que, além de provar
objetivamente a existência do seu Deus, demonstrava que Deus estava, de fato,
presente na história de Israel. Mas Deus estava se revelando desde a criação do
mundo. É o homem que não é capaz de captá-la. Pelo contrário envereda e
persiste no caminho da idolatria. Ao revelar-se, enquanto Deus se insere na
história do homem, começa um processo pelo qual o homem é esclarecido sobre a
sua origem, a sua dinâmica para um pleno desenvolvimento, a intervenção
necessária para uma Redenção, o enriquecimento que Ele quer atuar mediante uma
divinização, o destino último do homem segundo um Plano divino. Ao longo de
todo esse processo de conhecimento, Deus acaba revelando-se por Aquele que Ele
é, enquanto o comunica mediante a linguagem de um povo, de uma civilização. Ele
é Aquele que vê tudo, que tudo sabe e conhece o homem porque é o Criador onipotente.
Ele ama a criatura a ponto de nunca querer a sua morte, não obstante todas as
culpas dela, e sim, querendo que se converta e viva (Sb 11,21-12,2). Faz parte
da Revelação, também, o mistério do pecado, a promessa da Redenção, a história
de Israel, até chegar a Cristo Jesus, com a sua divindade, poder de perdoar os
pecados, realizador das Escrituras. O Espírito Santo, a Igreja, a santificação
dos fiéis pelos sacramentos, o julgamento final, a vida eterna, também, são
parte da Revelação.
É
pela atenta reflexão sobre todos os mistérios da Revelação que construímos a
correta orientação da nossa existência.
A forma pela qual se processa a Revelação.
É
interessante ver como Deus se adapta à forma pela qual o homem chega ao
conhecimento da verdade para se revelar. Através da História, com a qual o
homem pode interagir, dela conhecendo os fatos e interpretando-os segundo as
suas categorias, Deus se revela, a ponto de o homem ter a certeza absoluta de
estar comunicando com o verdadeiro Deus. Mas Deus não limita o conhecimento que
o homem pode ter dele através da experiência histórica. Quando o fiel especula
sobre o Deus que se revelou e sobre as palavras dos profetas, é capaz de novos
conhecimentos que dizem respeito ao próprio Deus e à problemática existencial
do homem (Ecl; Sl 49; Sb; Dn). Quando, enfim, se revela por Cristo, é dado à
Igreja realizar sínteses teológicas através da aplicação das figuras do AT a
Cristo e dos fatos de Cristo às figuras (Ap). Em todos esses processos aflora a
inspiração, que, por sua vez, é confirmada pela aceitação da Igreja, como um
todo, daquilo que os Autores sagrados redigiram.
Quando
tudo está atuado (900 a.C.), os sacerdotes do templo redigem, de forma
definitiva, a História de Israel, na qual o povo hebraico, sempre viu uma
intervenção direta do verdadeiro Deus, do qual tinha certeza que se tinha
revelado aos seus pais. Narram os fatos de forma épica e idealizada. Constituem
até um ancestral e nele idealizam a figura do hebreu, servo fiel, obediente a
Deus e observante das leis e prescrições. Ligam por vínculo parentesco as
tribos confederadas e lhes dão uma história comum, a do Êxodo e da conquista da
terra prometida, narrada, essa também, de forma épica. Aos autores desses
escritos interessa mostrar a intervenção divina na sua história. Por isso
agigantam os episódios, que têm todo o cunho de midrashes e narrativas
didáticas.
Além
da interpretação de uma intervenção divina na história, os autores sagrados,
utilizando a história de Israel, nos apresentam a sua interpretação da origem
do homem. Pela alegoria do homem e da mulher que, postos no jardim do Éden, se
rebelam ao seu Criador, interpretam a origem do mal no mundo.
Quando
esses escritos são, afinal, assumidos como inspirados, adquirem um cunho
religioso divino. Por esses escritos estaria falando o próprio Deus, por eles
querendo revelar os seus mistérios, o seu plano sobre o homem e a sua vontade.
Os textos assumem um valor eminentemente religioso, reconhecido e aceito por um
povo que tem consciência que o seu Elohim é o verdadeiro Deus, o único
existente, enquanto os outros Deuses não existem.
O
que solidifica a certeza da origem divina da sua religião, para Israel, é a
experiência dos profetas. São homens que têm a clara consciência de estar
falando em nome de Deus, o mesmo Deus que, como a tradição sustenta, libertou
Israel da escravidão, deu-lhe a terra e as leis. Na base da pregação profética
e das experiências dolorosas dos exílios brota a teologia hebraica que, pela
experiência histórica, não tem mais dúvida de que o verdadeiro Deus falou aos
seus patriarcas e sobretudo, no contexto triste da culpa, perversão e
iniqüidade, falou pelos profetas. As suas leis, o seu culto e os seus escritos
têm origem divina: a interpretação da história é autêntica, as leis são
precisas. A inerrância das Escrituras não se baseia numa histriônica
intervenção divina, e sim, na certeza que Israel tem o conhecimento do
verdadeiro Deus, de forma que os autores dos textos são reconhecidos como
inspirados porque transmitem fielmente a fé do povo que Deus suscitou. É o
consenso de todo um povo que crê no verdadeiro Deus, que os consagra como tais.
Jesus
Cristo faz parte da história de Israel, testemunhado pelo último dos profetas
do AT. O fato de que foi rejeitado pelas autoridades religiosas não renega a
sua origem divina. Uma vez que fica provada a perversão e iniqüidade das mesmas
e se constata que Jesus teve a sorte dos profetas, exatamente porque falava em
nome de Deus, Jesus deve ser alinhado dentro da mais autêntica tradição judaica.
Os
intérpretes da sua ação, entre os quais deve ser incluído Paulo de Tarso, viram
nele o próprio realizador da profecia, na condição de autênticos herdeiros da
tradição judaica.
Contudo,
ao mesmo tempo em que a realizava, Jesus a transcendia: o Messias revelava de
si mesmo ser o próprio “Eu sou”. À luz desse novo elemento, toda a Escritura é
reinterpretada, revelando-se ser ela profundamente profética. Da Bíblia
devemos, então, fazer uma leitura nos seguintes níveis: 1o) ao nível literário.
Nesse caso dizemos, por exemplo, que a narrativa da criação ilustra, segundo os
conceitos da época em que foi escrita, a maneira pela qual o mundo teve origem;
2o) ao nível didático, vendo nela uma homilia que visa incutir nos fiéis a
observância do repouso sabático; 3o) ao nível de revelação. A mesma narrativa
ensina que o homem deve cultivar a sua relação criatural com o Criador mediante
a contemplação da Beleza, Bondade, Potência e Sabedoria que dele se manifestam,
para que viva a sua função de mediador da louvação que parte da criação e,
assim, estar plenamente em harmonia com o mundo, com Deus e consigo mesmo; 4o)
ao nível cristológico. A narrativa antecipa tudo o que Cristo é, mediante
figuras cujo sentido é desvendado somente quando, pelo mesmo Cristo, as figuras
são realizadas.
A
descoberta do maravilhoso, contido profeticamente nas Escrituras, sela, duma
vez, a nossa convicção de que estamos diante do divino revelado. Nenhuma
tradição humana saberia montar uma doutrina tão perfeita e, sobretudo
totalmente transcendente a expectativa humana e a própria capacidade humana de
entendê-la. No AT a doutrina é anunciada, certamente, por quem não entende o
seu sentido verdadeiro e, considera o que anuncia, relacionado a fatos da
história do seu povo e a formas de soluções de situações históricas,
interpretadas de forma humana.
Quando
o seu sentido verdadeiro é entendido diante da atuação que se dá em Cristo
Jesus, e, exatamente porque a sua atuação se dá de forma inesperada, numa linha
de agir meramente divino e segundo verdades que, por sua vez, devem ser cridas
mais do que entendidas, porque são verdades divinas, é evidente que estamos
diante de uma realidade divina.
A
religião cristã é uma religião revelada. Nisso se diferencia de qualquer outra
religião. É por nós plenamente participada enquanto não é racionalizada e sim,
aceita em todas as suas verdades, uma vez que ficou comprovada, pela sua
própria história, a sua origem divina.
Uma
visão unitária
Vimos que Deus
se revelou pela história. Vimos também que os filósofos definem o conhecimento
como o fruto de uma interação com o mundo. Com isso constatamos que quando Deus
se revelava pela história, simplesmente se dava a conhecer ao homem pela forma
pela qual esse é capaz de chegar à verdade. Contudo, enquanto os profetas eram
a prova objetiva da existência de Deus, ao mesmo tempo se tornavam a fonte de
preciosas verdades, fundamento da especulação de sábios: o único Deus existente
age na história dos homens e, em particular, age na história de Israel.
Conseqüentemente a história de Israel se torna paradigmática para o sábio para
descobrir os sentimentos de Deus. Ele é um Deus bondoso e compassivo. Com a
humanidade deve ter-se comportado da mesma forma quando, essa, a semelhança de
Israel correspondeu com ingratidão diante dos benefícios recebidos. “Como deve
ter sido a criação do homem?”, se pergunta o sábio. Se Deus é bom, o homem deve
ter sido criado numa condição original de perfeição. Se há um mal no mundo é
porque o homem, à semelhança de Israel, respondeu com ingratidão ao seu
Criador. “O que o mundo nos revela do Criador?”. Que ele é a Bondade, a
Potência, a Sabedoria, o Amor. Mas é particularmente no homem que Deus se
revela. O homem tem o ser como as outras criaturas, tem em si o espírito de
vida como os seres animados, mas se diferencia deles por ter consciência de si
e de estar num mundo criado por Deus. Com isso ele participa, de forma
peculiar, da Sabedoria de Deus. Sublimando essas peculiaridades que estão no
homem, o sábio fala de Deus como possuidor de uma vida transcendente, da qual o
homem participa como criatura.
À luz da comparação com Israel, vê que
Deus deve ter agido com o homem planejando sobre ele uma Redenção que se
tornaria necessária devido à sua degeneração. Isso levou o sábio a definir a
ação de Deus salvadora através da criação de uma genealogia que interpretaria a
forma que estava se perpetuando através de Israel. Abraão não está a si mesmo,
ele está relacionado a uma descendência que brota da própria humanidade, mas
que se distingue dos outros homens porque portadora do culto ao verdadeiro
Deus, um culto providencialmente conservado, porque Deus não abandonou o homem
ao seu destino, mas determinou resgatá-lo por um “descendente da Mulher”, capaz
de reverter a situação “esmagando a cabeça da serpente”: isto é resgatando o
homem do caminho da idolatria para reconduzi-lo ao verdadeiro Deus.
A reflexão do sábio é grandiosa e bem
estruturada. É conhecimento do qual o homem foi capaz a partir da prova
objetiva que Deus deu da sua existência por meio dos profetas. Mais uma vez
vemos que Deus se dá a conhecer pelos meios dos quais o homem dispõe. Vemos, ao
mesmo tempo de quais píncaros de conhecimento de verdades o homem é capaz,
quando assistido pelo Espírito de Deus. Vemos, contudo, enfim, que a
especulação humana não é capaz de alcançar a verdade absoluta. Isto significa
que a própria Revelação, exatamente porque depende das condições de
conhecimento do homem, é suscetível de evolução. O que, todavia, Deus nos
propiciou pelos sábios do A.T., se tornou a base para a Revelação plena que se
deu em Cristo Jesus.
De posse da doutrina do A.T., os autores
sagrados do N.T. não somente puderam interpretar os gestos e as palavras de
Jesus Cristo, como, também, chegar a um mais alto conhecimento do próprio Deus
pela reflexão sapiencial que fizeram. A Revelação chegou assim à sua plenitude.
É evidente que, para nós explorarmos os
conteúdos da Revelação em toda a sua riqueza, devemos dominar os ensinamentos
proféticos e sapienciais das Escrituras. É o que permite nutrir a nossa alma
com as conclusões teológicas que nos levam ao culto do verdadeiro Deus. A
Religião, como, aliás, já afirmava São Justino mártir, é uma filosofia. Contudo
ela tem o seu ponto de partida em Deus que quer se revelar ao homem. Enquanto o
homem pensa que é ele que encontrou na história a prova da existência de Deus,
de fato, é o próprio Deus que, desde a criação do homem age na história e se
revela adaptando-se à forma pela qual o homem conhece, até para mostrar-lhe que
ele deixou de conhecê-lo porque dele se afastou, enquanto Ele se revela pela
própria criação.
Síntese
esquemática do conhecimento de Deus por parte do homem
-O
homem é capaz de conhecimento
- O
conhecimento humano se processa por uma interação com o mundo
-
Quando o homem se limita ao processo empírico para chegar ao conhecimento,
cai na idolatria.
-
Os prazeres instintivos enredam, então, o homem nos vícios.
|
- É
pela História que Deus se revela ao homem
-
Da mesma forma, deve-se proceder com a Revelação para conhecermos a Deus.
-Deus
exige do homem toda a explicitação do seu potencial de entendimento, que é
capaz de conhecer, pelas obras da criação, o Criador.
- A
louvação, nutrida pela contemplação, leva à observância dos mandamentos,
vistos, então, como Caminho, na Verdade, à Vida.
|
A
filosofia e a pedagogia determinam a natureza e a dinâmica do conhecimento
humano, definindo o ponto de encontro do homem com Deus que a ele se revela.
Contudo, Darwin e Teillard de Chardin descobrem que o homem chegou à consciência
de si através de um processo evolutivo, indicando dessa forma a condição
precária do homem quanto ao conhecimento.
A
Revelação, de outro lado, fala de Deus que é Bondade que age no amor e que se
debruça sobre o homem para promover nele o máximo da sua realização, de forma
que o homem é chamado por Deus a responder à sua revelação com todas as
potencialidades do seu conhecimento.
A
História do homem, na interpretação dos Autores sagrados, nos diz que o homem
fracassou e continua fracassando, devido à sua extrema limitação, todavia não
sem culpa. Isso explica a misericórdia de Deus e a sua paciente pedagogia.
Devemos
nos conscientizar que, da mesma forma que levamos anos para a nossa formação
mental, assim são necessários anos para a nossa formação espiritual. Pelo mesmo
paralelismo entendemos que, como o nosso conhecimento se atua pelo processo da
nossa interação com o mundo, assim o conhecimento das coisas de Deus se dá pela
nossa interação com a Revelação. E como o conhecimento humano progride pela experimentação,
assim o conhecimento das verdades religiosas progride na direta proporção das
suas implementações.
3a Palestra: A vocação do homem e a História de Israel
A vocação do homem
Gn
1-11, expõe o Plano originário de Deus sobre o homem. O homem, criado à imagem
e semelhança de Deus, é destinado a uma proliferação, à semelhança dos outros
seres vivos, com a benção de Deus. Mas é chamado a reinar por meio do seu
conhecimento. Por Deus é dotado de todos os bens e do dom da imortalidade; mas
deve manter a sua condição de dependência do Criador. A vida matrimonial é o
caminho ideal da sua realização.
Tudo fracassa porque o homem deixa de
viver a sua dependência do Criador; deixa de viver a louvação nutrida pela
contemplação da criação. Penetra nele a ambição desmedida de ser igual a Deus.
Trata-se de um desvio provocado pela necessidade de se relacionar com a
divindade, no equívoco de crer que nos ídolos esteja a condição de concretizar
a sua divinização. Custa entender como o homem fracasse de uma forma tão
grosseira. De fato é esta a dedução do Autor sagrado diante do comportamento de
Israel que não obstante todo o conhecimento do verdadeiro Deus, se entregou à
idolatria, praticada até no próprio Templo de Jerusalém. Outro caso evidente de
idolatria foi oferecido por Salomão. Inacreditável é a idolatria que Aarão
promoveu imediatamente após a saída do Egito. A idolatria é praticada por
Israel desde a sua escravidão, não obstante estivesse de posse da fé no
verdadeiro Deus, segundo a fé dos seus ancestrais. É o que acontece em todos os
tempos, até nos nossos. A idolatria, os cultos supersticiosos se multiplicam na
Igreja. A intensidade é diretamente proporcional ao descuido dos fiéis em
procurar a Deus. Dessa forma, o Autor sagrado atribui ao primeiro homem esse
pecado, considerando a falta do culto a causa dele. Isso provoca em qualquer
pessoa a ruptura total com o seu Criador e uma condição de trevas porque o
homem deixou de se guiar pela obediência ao seu Deus. Aparece a desestruturação
no campo sexual, com a conseqüente desvirtuação do caminho de realização que é
o Matrimônio. O homem está entregue a tudo quanto é perversão. Mas Deus não
abandona o homem. Suscita a Descendência pela qual, com Abraão, dá inicio ao
povo hebraico que na sua história nos revela toda a atitude de Deus com o
homem. Deus quer estabelecer uma aliança com o homem, propondo-lhe a sua Lei
como caminho de vida. Mas o homem se cansa dos caminhos de Deus e prefere
adotar a forma mais fácil da idolatria. Essa reação de Israel revela que o
homem não quer se empenhar no conhecimento de Deus com todas as suas forças e
com todo o seu entendimento. No fundo, essa é a causa da sua idolatria. Mas
Deus insiste em querer do homem o empenho total das suas forças porque essa é a
única condição para o homem se realizar. Depois dos castigos do exílio,
causados pela omissão de Israel no conhecimento de Deus, Deus toma a iniciativa
de voltar a assumir Israel como povo seu, com o dom do Espírito. De fato Israel
conhece um período de grande santificação e nisto se torna figura da Igreja,
onde tudo se tornará realidade plena: um povo de Deus com o seu verdadeiro
Cabeça, a efusão do Espírito como princípio de conhecimento e santificação.
Disso tudo resulta qual é a verdadeira
vocação do homem: é a criatura chamada por Deus a um conhecimento pleno do seu
Criador de forma que ambiciona oferecer a sua vida a ele, consciente que esse é
o seu verdadeiro caminho de realização.
Qoélet (Esclesiastes) explica que a
implementação das leis da “vaidade”, dentro do temor de Deus é aceitável. Mas
Jó ensina que o homem se torna a pleno título verdadeiro servo de Deus quando
sempre confia nele, e repete com Gn 1-3 que isto é possível somente quando o
fiel nutre a sua louvação a Deus pela contemplação.
O cristão conhece perfeitamente o caminho
da sua realização criatural porque tem como exemplo o homem Cristo Jesus. Até
quando lhe é exigida a confiança em Deus ele tem condições de nutri-la pela
contemplação da grandeza da glória que o espera e do poder que Deus manifestou
na ressurreição de Jesus Cristo, Cabeça da Igreja, o novo Israel.
Pelos
sacramentos vive a sua iniciação mistérica na expectativa da manifestação
gloriosa da sua condição de filho adotivo, no Amado.
A História de Israel
A História de Israel é o ponto de partida do
Autor sagrado para redigir, nos primeiros capítulos do Gênesis, a teologia da
criação e do homem.
A
teologia hebraica vê na vocação de Abraão o momento histórico no qual Deus
resolve criar para si um povo, multiplicando a Descendência que vinha se
perpetuando desde a criação do mundo e que conservava em si o culto ao Deus
Criador, enquanto a humanidade conhecia uma progressiva degeneração a partir do
pecado da idolatria. Com isso, o povo de Israel se torna a criatura de Deus
que, no seu amor de predileção cobre de privilégios quais o de se tornar um
povo grande, de ter uma terra, ser objeto de uma particular revelação de Deus,
de ter uma Lei, um culto e profetas que falam em nome do seu Deus. Israel não
responde à altura dessa condição de filho e como deve ter sido com o homem na
sua origem, em lugar de viver toda a sua potencialidade humana na procura do
seu criador que se tinha manifestado nos prodígios da libertação da escravidão
do Egito, induzido pela sua forma de se relacionar com o mundo, criou para si,
à semelhança dos povos pagãos, ídolos. Pior ainda, desconhecendo o seu Deus,
adotou os ídolos dos pagãos, seduzido pelas mulheres com as quais foi contrair
casamentos e que eram de origem pagã. A corrupção religiosa acarretou a
corrupção moral e social. Os castigos corretivos de Deus, que fez pesar sobre
Israel a sua mão, não foram suficientes para fazer voltar Israel ao seu Deus,
de forma que, Iahweh enviou os invasores seja contra o Reino do Norte, no fim
do século 8o a.C., como contra Judá, no século 6o a.C. O
castigo da deportação para Babilônia, depois de setenta anos foi considerado
suficiente por Deus, para que ele pudesse começar tudo de novo com um povo ao
qual perdoava todas as culpas e que voltava a assumir como seu povo novamente.
Nessa
história de Israel, na visão do Autor sagrado, está a história da humanidade. O
homem é a criatura que Deus chama a uma condição de liberdade e de dignidade.
Mas o homem não é capaz de viver à altura da sua vocação, se omite na procura
de Deus e se inclina à prática de cultos supersticiosos, que Deus detesta. A
maneira de representar essa realidade se espelha nos perigos dos casamentos dos
filhos de Israel com mulheres pagãs, que os filhos de Deus tomam para si,
provocando a ira e o desgosto de Deus. O homem cede à tentação da serpente, da
mesma forma que Israel cedeu à tentação da idolatria, esquecido de todos os
benefícios do seu Criador que a criação devidamente contemplada lhe faria
lembrar. Diante desse pecado Deus castiga o homem com a desordem moral (é
também a visão de Rm 1, 18-32), a qual, tendo presente a forma literária com a
qual os Autores sagrados expressam a sua teologia, deve ser considerada uma
conseqüência direta de uma rebeldia que faz com que até a própria criação se
rebele contra o próprio homem.
Nessa
altura, as duas histórias, a de Israel e a do homem, se reencontram, porque
seja Israel após o exílio de Babilônia como a humanidade esperam por um
Salvador que deve ser identificado com a Descendência prometida por Deus em Gn
3,15. Enquanto Israel tem consciência direta dessa realidade futura, se torna
figura da Igreja. Isaías II é uma síntese profética de tudo o que acontecerá
com a vinda do Salvador. Isaias III chega até a descrever o triunfo da
Jerusalém celeste qual nos é apresentado pelo Apocalipse.
A
Igreja é o Israel novo. Por isso podemos assumir todos os ensinamentos que
dizem respeito à origem da humanidade e o sentido da nossa relação com Deus, da
forma que é ilustrada pela História de Israel. O Redentor que com a sua Morte
de Cruz nos resgatou pagando o preço dos nossos pecados é o próprio Iahweh no
qual nos rejubilamos tanto quanto rejubilou Israel nas palavras de Isaias II.
Contudo, devemos dizer que, até no tempo de Isaias II, somente ele e uns poucos
souberam ver toda a grandeza da intervenção de Deus nos quase insignificantes
fatos históricos de uma volta que se dava por um decreto de um conquistador. A
volta foi atuada por poucos, enquanto a maioria dos hebreus preferiu ficar nos
lugar aonde se tinha estabelecido no tempo do exílio. O Templo praticamente
nunca foi terminado devido à displicência dos mesmos que voltaram. Isto
significa que o cristão, para captar toda a grandeza dos mistérios da sua
religião, deve se aprofundar na insignificância histórica dos fatos da sua Redenção
para poder captar toda a grandeza espiritual da intervenção de Deus na História
da humanidade: divinização do homem pela Encarnação; dom do Espírito pela Morte
de Cruz; vida em Cristo pelos sacramentos da Igreja; escatologia, que implica o
sentido pleno de sermos povo de Deus e a consciência de sermos, um dia, a
Jerusalém celeste dos que deram testemunho da Palavra e de Jesus Cristo nesta
terra.
4a
Palestra: A condição do homem na Criação
Os
sábios do A.T. aprofundaram de tal forma a sua reflexão sobre o Deus Criador
anunciado pelos profetas, que descobriram nele uma condição de vida
transcendente a nossa. Deus é a Bondade que com Poder e Sabedoria tudo criou.
Em todas as coisas está a marca dessa característica que já anunciava o Deus
trinitário. Mas é particularmente no homem que está a “imagem e semelhança”(Gn
1,27) com Deus porque se distingue de todas as outras criaturas animadas pelo
fato de que tem consciência de existir, de ser criatura e de manter uma relação
de dependência do seu Criador. Foi pela sublimação das características que o
homem apresenta em si que os sábios, com linguagem antropomórfica, falaram de
Deus: Ele é o “Sou”, Espírito e Sabedoria.
O
homem se realiza plenamente quando se relaciona com o seu Criador desenvolvendo
em si toda a potencialidade da sua semelhança com Ele. Capaz de conhecimento,
deve conhecer, de forma plena, o Deus que se revela na criação para viver a sua
condição de mediador da louvação que sobe das criaturas ao Criador (Sl 19,2-5).
Gn 1 é uma aula para que o homem descubra na criação os atributos de Deus que é
Poder, Sabedoria, Beleza, Bondade. O Sl 104 sintetiza essa louvação. A ele faz
coro o Sl 8 (Cf. as las leituras da 5ª e
6ª feira depois das Cinzas, com os seus respectivos salmos responsoriais).
Em
Gn 2, o sábio ilustra a segunda condição para que o homem viva plenamente. Ele
deve obediência ao Criador. São Paulo, em Rm 1,19s, anota que essa obediência é
nutrida exatamente pela motivação que a louvação ao Criador fornece, sendo que
ela torna presente toda a superioridade de Deus e a condição de dependência do
homem.
A
terceira condição de plena realização do homem é a vivência, no amor, da vida
conjugal, aberta a uma doação dos cônjuges aos filhos que Deus lhes concede (Gn
2, 18-25).
No
fim de Gn 2, o sábio conclui: “...e eles eram sábios e não se envergonhavam”
(v. 25).
Quem
levou em frente essa condição, chegando,
enfim, aos ideiais que Deus tinha, desde o começo, com a humanidade, foi Jesus.
Quando o vemos tentado pelo Diabo, seja no deserto como sobre a Cruz,
entendemos, como, aliás, anota São Tiago (Tg 1,2) que a tentação é condição de
crescimento, contudo, enquanto é superada. Cristo Jesus, ao vencer as tentações
nos revela a glória à qual o homem pode chegar. A tentação é uma manifestação
conseqüente à limitação da natureza humana que facilmente se equivoca no
objetivo a ser alcançado. Cai na cilada da sua experiência sensorial. Tira
conclusões na base dessa experiência, sem exigir de si todo o processo de
conhecimento para chegar à verdade. Isto acontece no campo da sexualidade, da
posse dos bens materiais, da gula, etc. O mesmo acontece quanto ao conhecimento
do verdadeiro Deus. O homem, em lugar de proceder, passando da admiração da
beleza da criação para o reconhecimento do seu Criador, se limita a tornar seus
deuses as criaturas, como os astros e os animais (Rm 1,21-23).
A
partir da Redenção, o homem tem, em Jesus Cristo, o Modelo, o Guia e até o
Princípio de força para desenvolver, em si, os ideais da criatura humana.
O homem, contudo, exatamente porque
recebe o Espírito numa condição de Redenção, encontra dificuldade na sua
evolução sob a lida do mesmo Espírito Santo. É um convalescente que carrega em
si as condições da sua extrema limitação, agravadas por seqüelas de uma
história de pecados cometidos pelas gerações que o precederam. Embora, em si, a
história da origem do homem seja mais uma moldura cronológica, de fato, não
deixa de retratar o que aconteceu ao longo das gerações que chegaram a uma
degeneração tão grande que, por si, teriam merecido a sua destruição. Foi na
esperança de um Salvador, anunciado por mera liberalidade divina, que a
humanidade viveu a sua salvação, em particular o povo de escolha, Israel, sem,
contudo, ter em si a força para se regenerar. Com a vinda de Cristo, o homem
recebe o Espírito, que o reconstitui na condição original, mediante a
comunicação da vida do Senhor ressuscitado (Jo 20,19-23). Torna-se obrigação do
homem cultivar o que, em germe (Rm 8,23), nele foi colocado. O caminho é o de
observar os mandamentos de Deus, para permanecer no Amor (Jo 14,21). É pela
obediência à Lei de Cristo que o homem vive em harmonia com o seu Criador, com
a criação e consigo mesmo. É dessa forma que a fé vence a condição de
corrupção, em que a humanidade decaiu. O cristão nada mais tem em comum com o
mundo (1Jo 2,15), embora continue a viver no mundo. Ele é, sim, o mundo, tendo,
todavia, em si, o princípio da sua glorificação. Ele sabe que não pode mais
pecar (1Jo 3,8) e agora conhece os motivos da sua obediência à Lei de Deus,
porque, pela contemplação do maravilhoso da Criação que se atuou pela Palavra,
no Espírito, ao recriar, o Pai, o homem decaído, ele só tem motivos de louvação
e cultiva, em si, a consciência da sua dependência d’Aquele que é a Bondade, a
Beleza, a Sabedoria e o Amor onipotente (Sl 63,1-9; 36,6-10; 8). Na criação,
mais do que nunca, reconhece agora o Nome do seu Criador, como também, em todos
os gestos da História da salvação, quando o Deus Criador se revelou, também,
Iahweh, ao libertar o seu povo da escravidão do Egito, e Senhor dos povos, ao
fazer voltar Israel da escravidão de Babilônia. Mas é, sobretudo, na obra da
Redenção, da qual as outras intervenções criadoras de Deus eram figura, que o
fiel vê atuar-se a Potência, a Sabedoria e a Bondade de Deus no admirável da
divinização do homem, mediante a comunicação do Espírito que o Verbo eterno,
feito carne, efunde no momento da consumação da sua imolação sobre a Cruz (Jo
19,30). O Verbo da Vida, pela Redenção, comunica o Espírito, que torna
possível, ao fiel, um caminho de contínua purificação no Sangue de Cristo (1Jo
1,7). Diante de Cristo Modelo, que vence as tentações do diabo no deserto e na
Cruz, o fiel, guiado pelo dom do Espírito de entendimento, na força do próprio
Espírito que a Revelação lhe comunica, é capaz de manter a sua fidelidade à
Aliança com o seu Criador, que Cristo Jesus selou com a sua morte de Cruz, sem
mais constituir, novamente, para si, os ídolos da concupiscência do ouro, da
ambição desmedida e da carne (2,16). A vida do fiel ambiciona, agora, os frutos
do Espírito, porque sabe que os frutos da carne levam à morte (Gl 5,16s). É
seguindo os impulsos do Espírito que levará o seu corpo, por si destinado ao pó
da terra, a uma glorificação, mediante uma metamorfose semelhante à de Cristo
transfigurado e ressuscitado, e àquela que Maria Ssma. experimentou na sua
assunção ao céu. O cristão foi justificado pela Redenção de Cristo e por isso
só ambiciona tornar-se puro como Deus é puro (1Jo 3,3), porque sabe que, quando
se manifestar o que ele é, O verá face a face. São João na sua primeira carta
apresenta mais uma motivação para o fiel nada mais ter com o mundo: a sua fé.
Em virtude de uma conversão, que a Palavra, anunciada pela Igreja apostólica,
provocou em mim, eu dei a minha adesão incondicional à Pessoa de Jesus Cristo.
A vida de piedade, obediência, oração e imolação que culminam com a sua morte
de Cruz, nada têm a ver com o mundo. Da mesma forma a vida do discípulo em nada
pode compactuar com o mundo e o pecado. À luz da revelação fica claro que toda
anomalia comportamental é fruto do pecado (1Jo 3,10). O homem sempre foi
conhecido na mente de Deus como uma criatura semelhante a si e destinada à
imortalidade gloriosa. Desde o início da criação Deus se debruça sobre o homem
que tem em si a potencialidade obediencial para ser divinizado e, no seu
infinito Amor, propõe ao homem uma Aliança. A limitação e a falta do cultivo da
sua condição criatural levam o homem, de início, a perseguir miragens de auto
realização, na ambição desmedida de ser igual a Deus. Afastando-se do seu
Criador, o homem recebe em si o castigo da insensatez. Jactando-se de ter a
sabedoria troca a glória de Deus pela adoração de ídolos vãos quais os da
riqueza, do prazer e do poder. É o momento em que se inicia o processo degenerativo que leva o
homem ao âmago da sua perversão moral: recebe em si o castigo dos seus desvios,
pratica toda sorte de injustiça e chega a aplaudir os que fazem o mesmo (Rm
1,21-32).
O
fiel que, pela justiça da fé recebeu o Espírito, sabe que a sua vida está,
agora, escondida com Cristo em Deus (Cl 3,3). Quer desenvolver a semente que o
Ungido pelo Espírito nele semeou pela pregação apostólica. Purifica-se
continuamente no Sangue de Cristo (1 Jo 1,7;3,3) precavendo-se de cair diante
de todo e qualquer aliciamento das concupiscências nele latentes e, sobretudo,
desenvolvendo o espírito de compunção, para pedir com Cristo, entre clamores e
lágrimas, de ser poupado da morte e ser atendido por causa da sua piedade (Hb
5,7). Sabe que este não é só um compromisso consigo mesmo diante de Deus, como
também com a Igreja, que ele é chamado a edificar sobre Cristo, pedra angular.
Quem não vive em comunhão com Cristo, respondendo aos apelos do Espírito, é um
entrave no processo da edificação da Igreja: ele não ama o seu irmão (1Jo 2,9).
5a
Palestra: A cosmologia revelada
A
reflexão dos sábios sobre os dados dos historiadores e do profetismo, que
propiciavam o conhecimento de um único Deus no qual Israel acreditava e que viu
agir como El Shaddai, Iahweh, Esposo e Santo, como o “Sou”, Criador e Senhor da
História, descobriu, seguindo o paradigma da História de Israel, que o homem,
no início da sua história, embora amado por Deus, a Este se rebelou, provocando
uma degeneração. Viu, também, que Deus não abandonou o homem ao seu destino. O
motivo profundo é a semelhança e imagem que o homem tem, em si, do Criador. Mas
essa imagem está, também, em cada criatura que, em si, reflete o Ser, o
Poder e a Sabedoria de Deus. O homem é o intérprete da louvação: Gn 1, Sl 104;
148; 8; 19,1-7.
São
Paulo descobriu, pela intuição dos sábios, o princípio de uma transformação da
criação numa condição gloriosa e definitiva que acompanha a metamorfose à qual
o homem é destinado (Rm 8, 19-22). Para São Paulo e toda a Igreja apostólica, a
explicação de tudo isso está em Jesus ressuscitado. Uma imagem momentânea dessa
nova condição é a Transfiguração. Quanto às figuras que ilustram a definitiva
condição temos Os 2,20-22; Is 4,5; 11,4-9; Ap 21, 1-8.
A
criação está sujeita à lei da vaidade. O homem (corpo), parte da criação, está
sujeito à mesma lei (sobrevivência, procriação), que arrisca envolvê-lo. A
angústia é acentuada no homem, que o Espírito, agora habita (Rm 8,23):
aspiramos a uma Redenção que o próprio Jesus suplicava para si nos dias de sua
vida mortal (Hb 5,7). O processo catárquico deve ser conduzido com perseverança
(Rm 8,25).
Deus
é a Bondade que se revela no Amor. Quando chama a criatura à existência, a ama
em cada fibra do seu ser (Sl 139, 13-16). Deus é o Sou, a Perfeição das
infinitas virtualidades. A criatura é o ser que recebe a existência, segundo
uma das formas que Deus lhe destina. A criação evolui segundo um processo nela
inscrito pelo próprio Criador que contempla, na criatura homem, o despontar de
uma consciência de si, que o manifesta, naquele momento, imagem e semelhança do
seu Criador. Sobre essa condição se debruça a Bondade, no amor, no intuito de
processar na criatura uma condição de divinização, que transcende a própria
natureza humana. Esse Plano de Deus, desde o início, contempla uma redenção,
porque o homem, na sua extrema fragilidade e limitação de conhecimento, de
necessidade moral, não está em condições de corresponder à iniciativa de Deus.
Mas esta redenção será a condição para que a Bondade se manifeste em toda a
extensão possível do seu Amor,
patenteando ao homem a gratuidade absoluta da divinização. A História do
homem, dentro deste plano de Deus, é esboçada, primeiramente, na história do
povo de Israel (Sl 107). Pela vocação de Abraão, Deus privilegia Israel, a ele
revelando-se, em seu favor operando prodígios, colocando-o numa terra onde
brota leite e mel. O profeta Oséias nos diz que Israel, em lugar de
corresponder ao amor do seu Deus, procurou nos ídolos o caminho da sua
realização. Foi o início da desgraça, que obrigou a Deus a castigar o seu povo
para que, purificado pela dor, afinal voltasse novamente, de coração
purificado, ao seu Criador. Após a volta do exílio de Babilônia, a catequese
litúrgica do Templo e das sinagogas, tipificou a história de Israel com as
narrativas da criação, da queda, da história das descendências de Caim e de
Abel, que acabaram tornando-se uma teologia da História da Humanidade. Nessas
narrativas do Gênesis está a preciosíssima Revelação que Deus faz ao homem da sua
origem, do por que da sua condição de desordem, sofrimento e morte, em que
vive, enquanto lhe apresenta o seu Plano e começa a ilustrá-lo, acompanhando a
História da Humanidade com uma Descendência que Ele vai construindo ao longo
das gerações. Ela foi profeticamente anunciada ao homem desde o início da sua
história. A forma é misteriosa. Mas a sua atuação em Jesus Cristo, que a
explica de forma plena e surpreendente, nos diz claramente que estamos diante
de uma revelação divina.
Diante
do Plano de Deus sobre o homem, enquanto se atua pela criação, podemos
sistematizar os conceitos sobre a criação partindo, em primeiro lugar da visão
de como se deu a criação e, em segundo lugar, reconhecendo no homem o seu ponto
inicial de realização.
Deus
começa, segundo a apresentação cronológica de Gn 1-2, com a criação das coisas,
e, mais precisamente, com a criação da luz. No mundo criado, com águas de cima
separadas das águas de baixo, terra seca separada dos mares, com vegetação
sobre a terra, com estrelas no firmamento, com até seres vivos nas águas dos
mares, voando nos céus e povoando a terra, Deus coloca o homem que, quando
chega à consciência da sua condição criatural, é chamado a ser o rei da criação
(Gn 1,26). A realeza será exercida mediante a mediação da louvação e a
aceitação contínua da sua condição de dependência do Criador, mediante a
obediência às suas leis, num ato de confiança, diante do reconhecimento da sua
extrema limitação (condição única de verdadeira sabedoria) (Gn 2,15s).
De
fato, devido o processo de redenção, a mediação sacerdotal do homem só é
possível depois da Encarnação, de forma que aquilo que devia se atuar pelo
homem, só se processa por Deus feito homem. No momento, estamos vivendo a nossa
realização como criaturas, quando já está em ato a Redenção que visa levar o
homem à glorificação e, com isso, também, atuar a glorificação da criação. São
Paulo é o interprete desse processo que se atua por Cristo, com Cristo e em
Cristo (Rm 8, 18-30).
Disso
resulta que a Redenção, além de resgatar o homem da sua degeneração e de provar
ao homem o extremo do amor divino, de fato, é o último gesto do ato criador,
que, enfim, em Jesus Cristo, cria o verdadeiro homem, capaz de ser o Mediador
da louvação entre a criação e o Criador (1Tm 2,5). Com a sua ressurreição,
Jesus traz, em si, as primícias da nova criação para a qual toda a “criação
geme com que com dores de parto até o presente. E também nós gememos, esperando
ansiosamente a manifestação gloriosa dos filhos de Deus” (v.19). A forma
predatória com que o homem se relaciona com a criação, disposto, na sua
obsessão de enriquecimento, a matar o outro, indica quanto está distante da sua
condição original.
O
Espírito que está em nós, necessariamente, conduz o homem para esse destino (Rm
8,10s) e lho manifesta pelo entendimento da revelação e, pelo dom da sabedoria,
conduzindo-o até o âmago das coisas de Deus, de iluminação em iluminação (1Cor
2,7-13).
A
cosmologia inicial representa o ideal que Deus tinha-se proposto. Tudo estaria
em harmonia e paz. Sinal disso é o alimento da vegetação dado a todos os seres
da terra, sinal que se encontra, também, em Is 11, 6-9, quando é contemplada a
justiça e a paz que o Messias restaurará. Não é mera alegoria. É uma condição
inicial que poderia ter existido, embora não exatamente nos termos que Gn e Is
apresentam e que o homem fez desaparecer com a sua desobediência. Quando,
porém, nele é restaurada a condição original, a natureza volta a viver em
harmonia com o homem (Mc 1,11;16,17s).
A
íntima relação do homem com a criação é comprovada pelo destino ao qual Deus a
sujeita quando quer punir o homem (Gn 6,17). É comprovada pela reação que
acontece quando Deus castiga o seu povo ou as nações ( Am 8,9;Is 13,9-10). João
apresenta essa relação da natureza com o homem em Ap 6, 12-13.
6a Palestra: O Caminho da realização do homem
As
Escrituras, que expõem didaticamente a doutrina revelada, desde a primeira
lição ensinam que a criatura deve louvar o Criador haurindo os motivos da sua
louvação na contemplação do Nome de Deus inscrito nas suas obras (Gn 1).
A
louvação é fruto de um conhecimento correto de Deus e sempre mais articulado.
Isto dá-se pela continuada reflexão. P.e.: a contemplação da criação nos faz
descobrir os atributos de Deus e por isso o louvamos. Contudo, a um nível mais
profundo, nos compenetra quanto a dívida que temos com ele por ter-nos criado.
Como cristãos, os imensos benefícios da Redenção, além da louvação, deveriam
despertar em nós o sentimento de que estamos em dívida com ele, motivando-nos a
nos engajarmos no serviço a ele. Promoveríamos, com isso, o justo temor e a
disposição a obedecer-lhe (Is 12,4-6).
Somente
Jesus Cristo foi capaz de um tal processo realizador, vivendo a sua obediência
até à morte e morte de Cruz. A sua Humanidade, assumida e guiada pela Sabedoria
eterna, compreendeu que a sua imortalidade estava na imolação de si ao seu
Criador mediante o reconhecimento da adoração que a Ele deve prestar e que
implica a oferta da sua vida na certeza de que Ele lha dará de novo.
Se
tomarmos a História de Israel como paradigma da nossa história, vemos que o
espírito de confiança em Deus é mínimo, no início. Diante das primeiras
dificuldades, como a ameaça do exército do faraó e a falta de alimentos no
deserto indicam, se rebela. Mostra até quanto o seu coração está inclinado à
idolatria logo que Moisés demora em descer do Monte. Manda Aarão construir um
bezerro de ouro e o adora dizendo: “Tu és o deus que nos tirou do Egito”. A
falta de confiança depende da falta de contemplação do Nome de Deus que se revela
na História, no Profetismo, na Criação.
A
louvação começa a se firmar depois da construção do Templo (Sl 105: vv. 1-11
expressa os sentimentos de louvação diante do tudo realizado; 12-15 Deus é
lembrado como El Shaddai; 16-43 Deus é lembrado como Iahweh que libertou dos
egípcios e conduziu Israel pelo deserto; 44-55 Deus dá a Israel a Terra como um
Éden, contudo exigindo a observância da Lei). É nas liturgias nele celebradas
que os sacerdotes exaltam o Deus da História de Israel com os seus Salmos. Depois
do exílio o celebram como o Senhor da história de todos os povos e, numa
reflexão mais profunda, como Criador (Sl 104: a vibração inicial (vv.1-4),
juntamente com Sl 8,2, nos permite detectar a louvação de Gn 1,1, que encontra
seu refrão em 1,5, reflexo de Ex 16,6.12). Entendem, afinal, qual é o caminho
da verdadeira realização do homem (Sl 80, 19s)
A
louvação cristã parte da contemplação do Desígnio de Deus que se realizou em
Cristo Jesus, dentro de um processo de Redenção que revela todo o amor daquele
que é a Bondade. Contempla o admirável da união da divindade com a humanidade
no verdadeiro Adão que manifesta, na sua humanidade glorificada, a meta do
homem, segundo a vontade de Deus (Sl 45: visão profética de Cristo Cabeça e
Esposo da Igreja). Glorifica o Pai por todos os benefícios recebidos: a
evangelização que o tornou povo, o Batismo que o configurou a Cristo, os
Sacramentos que o nutrem e purificam, a Escritura que lhe faz conhecer a Deus,
o Espírito, comunicação da vida plena de Deus (Cl 1,14-20; Ef 1,3-10; Fl
2,6-11). Libertação do Egito, volta de Babilônia e Criação são, todas elas,
figuras da realidade que se atua pela Redenção. A motivação última está no fim
da reflexão sobre o destino da criação em Rm 8,18-39. Nada poderá separar Paulo
do amor de Cristo (v. 35) diante do admirável Plano que Deus tem sobre o homem.
Aquele que pensou no homem, o chamou à
existência para ser conforme à imagem do seu Filho ( nisso vemos que a criação
do homem era o anúncio de um Plano que se atuaria em Jesus). Aquele que, por
si, não foi capaz de corresponder ao seu Plano, Deus, no supremo gesto da
Encarnação e Morte de Cruz, o justificou, para que, nessa justiça, pudesse ser
glorificado. Portanto, “os sofrimentos do tempo presente...” que são as dores
de parto produzidos pelo esforço de uma atuação à altura, como o conhecimento
de Deus pela criação, a historia, o profetismo, a Encarnação, em vista do culto
ao verdadeiro Deus, assim como a obediência aos mandamentos, que implicam
renúncia, generosidade, magnanimidade, “não têm proporção com a glória futura
que há de manifestar-se em nós”.
Diante
da reação de São Paulo e do exemplo de Maria Ssma. Que “guardava essas coisas e
as meditava no seu coração”, constatamos que o tempo que reservamos à
contemplação das obras de Deus, é insuficiente para mantermos a harmoniosa
relação com Ele, tão necessária para não cairmos em tentação.
Cristo
Jesus se torna, a esse respeito, o Caminho, propondo o seu exemplo: “Quem quer
ser meu discípulo tome a sua cruz e me siga”. São Lucas interpreta essa
imolação como perfeição de vida que deve ser vivida a cada dia na obediência à
vontade do Pai. Não se trata de algo
impossível a ser atuado, embora exija o superamento da visão humana, que sempre
prefere as suas opções ao Caminho traçado por Deus no Modelo Cristo Jesus.
Infelizmente, é nisso que se perpetua, no homem, a característica do pecado de
Adão. No fundo, é uma opção pela visão míope que o homem tem da solução dos
seus problemas existenciais, quando poderia abraçar, na confiança, diante de
tantas demonstrações de Sabedoria, Bondade e Poder, a proposta de Deus.
O
superamento da opção errada dá-se pela contínua contemplação das obras de Deus,
para que, através da louvação suscitada pelas admiração das maravilhas que ele
operou, desponte em nós a determinação de fazer a sua vontade (Rm 1,20; Jt
16,13s; Sl 8,2;145)..
O
Autor de Gn 2 se estende sobre esse tema com a típica narrativa do homem no
Éden. Resulta que a criatura não poderia rebelar-se ao seu Criador diante da
magnificência da obra da criação, que a ele Deus doou como reino, no qual
cresceria na sua condição régia mediante a harmoniosa relação de dependência
com o seu Criador, enquanto poderia desfrutar, de forma sábia, de toda a
criação. Para o homem, Deus, até, tinha traçado a forma suave da sua realização
mediante a relação amorosa com a companheira da sua existência. A vida de mútuo
auxílio seria coroada com a doação plena de si aos filhos que Deus lhes
concederia.
O
Eclesiastes (Qoélet) e Jó determinam as leis de comportamento da criatura em
relação ao seu Criador. O homem deve viver as leis da vaidade às quais está
sujeito, sem, todavia, se esquecer que terá que prestar conta a Deus de todos
os seus atos. Para manter a perfeita relação com Deus, deve continuamente
contemplar as virtudes de Deus que se manifestam na criação, para que a sua
confiança em Deus seja inabalável.
O
Eclasiástico nos ensina que a Sabedoria é mantida pelo cultivo dos dons do
Espírito Santo, a partir do entendimento (Eclo 1,11s).
São
Paulo ilustra todo o caminho de crescimento da vida do cristão mediante o
cultivo da fé, caridade e esperança, condição de uma verdadeira Eucaristia (Cl
1,9-12).
Para
o cristão a contemplação das obras do Criador parte da criação e chega à
Redenção. São João, no Apocalipse se estende até à contemplação do poder de
Deus manifestado em Cristo ressuscitado e tornado Senhor da Igreja e da
grandeza da herança eterna destinada aos santos
Cristo
Modelo nos é apresentado por Lc 2, quando declara que é seu dever estar na casa
do Pai; Mt 4,1-11 é a ilustração da capacidade de Jesus em superar as
tentações; Lc 12,30s é a síntese: Deus tudo deu ao homem, o homem deve procurar
o Reino, precisa vigiar, corrigindo os vícios e praticando as virtudes. Lc12,49
apresenta, mais uma vez ,a Cristo Jesus como modelo de obediência.
A
essa altura Maria e José se apresentam como modelos de discípulos de Jesus (Mt
1,18).
O
heroísmo de Jesus é mostrado por Lc 22,42: “Pai, se for possível, passe de mim
este cálice”.
Cl
3,12-21 é a forma prática com que Paulo ilustra a implementação do modelo que é
Cristo por parte dos cristãos.
Ap
2-3: O Filho do Homem, na condição de Senhor das Igrejas, ensina, de
autoridade, o caminho que deve ser percorrido: saber discernir entre a
verdadeira doutrina e a falsa (Cl 2,6-8.18-23; 1Jo 18-28); observar os
mandamentos para permanecer em Cristo, no Espírito, e dar frutos (Jo 15) de
caridade (1Jo 10s); perseverar na esperança pela vigilância (1Tss 1,10); dar
testemunho na tribulação.
A
Missa sintetiza a condição de louvação plena que o fiel pode prestar ao seu
Criador. Começa com o Nome do Pai que o próprio Filho quis glorificar com a sua
imolação, de cujo lado aberto jorra o Espírito. Depois de ter pedido a
purificação pelo Ato Penitencial, se inicia aos mistérios da Morte do Senhor
pelas Escrituras. No ofertório lembra toda a grandeza do Mistério que está para
celebrar: “Pelo mistério desta água e deste vinho, possamos participar da
divindade daquele que quis assumir a nossa humanidade”. Faz Memória da Paixão,
Morte e Ressurreição após ter invocado o Espírito criador do Pai para que, pelo
ministério da Igreja, as ofertas do pão e do vinho se tornem o Corpo e o Sangue
de Cristo, para se unir ao próprio Cristo no culto que Ele, Único Mediador, é
capaz de prestar ao Pai. Dá enfim toda a sua adesão de fé à Morte de Cristo
comungando de sua carne e sangue para , enfim, partir para o testemunho em Nome
da Trindade santa.
7a
Palestra: O Pecado
É
possível chegar a uma definição de pecado somente através da Revelação.
Pela
filosofia e pela psicologia sabemos que o homem desenvolve o seu conhecimento somente pela interação com o
mundo. Quanto a si mesmo, conseqüentemente, se encontra na impossibilidade de
conhecer a sua verdadeira natureza, a sua origem, o caminho do seu desenvolvimento
e o seu destino, porque o homem que ele pode experimentar é somente aquele da
história, não aquele que existiu no Plano originário de Deus. Se, todavia, pela
prova histórica, chega à existência de Deus e assume a Revelação como fonte de
conhecimento, então ele poderá chegar a conhecer que Deus criou o homem para si
e que o homem vive à altura da sua vocação se respeita as leis inscritas por
Deus na sua natureza, que a Revelação explicita pelos livros sagrados. A
Revelação, a partir do Gênesis, explicita as leis que o homem deve observar,
para manter a sua perfeita relação de criatura com o seu Criador. O faz pelo
simbolismo da árvore da ciência do bem e do mal, afirmando, por pelo mesmo,
que, em primeiro lugar, o homem sempre terá que reconhecer a sua dependência do
Criador. Quando, pelo quadro da serpente tentadora (Gn 3) descreve o gesto pelo
qual o homem tenta, na sua ambição desmedida, ser igual a Deus, o Autor sagrado
está nos dando a definição fundamental do que é pecado: um ato de rebeldia do homem,
o qual, esquecido de todos os benefícios recebidos, cuja lembrança nutriria a
sua gratidão e o manteria numa condição de obediência, opta por caminhos de
realização pessoal, para concretizar a
aspiração mais profunda do seu ser, qual é aquela de reinar, prescindindo,
contudo, do caminho que Deus inscreveu nele.
Pelo
exemplo que Cristo Jesus, novo Adão, nos deu com a sua Morte de Cruz, torna-se
ainda mais claro o que é o pecado, uma vez que quem escolhe o caminho da
imolação como verdadeiro caminho de realização é a própria Sabedoria encarnada.
O
pecado resulta ser uma opção que o homem faz porque o seu entendimento é
extremamente limitado. A responsabilidade do seu gesto deve ser mantida.
Contudo, ao ver com que misericórdia Deus trata a sua criatura, devemos admitir
que o faz porque vê que tamanha insensatez que leva o homem a romper com ele
tem como princípio a extrema limitação do seu entendimento. É somente com Jesus
Cristo que o homem descobre a verdadeira condição de realização da criatura. O
caminho é a Sabedoria da Cruz.
Segue-se,
portanto, em primeiro lugar, a ruptura da relação harmônica, da criatura com o
seu Criador. O homem cai nos vãos arrazoados do seu coração e se torna
insensato (Rm 1,21). Em segundo lugar se manifesta o desajuste na vida sexual,
como anotam seja o Gênesis (3,16), como São Paulo (Rm 1,24). Em terceiro lugar,
o homem fica exposto aos fracassos das tentações dos vícios mais
diversificados. A leitura de Gn 4;6, paralelamente com Rm 1, 21-32, permite uma
lista abrangente dos pecados dos homens, que é , ao mesmo tempo o caminho
histórico do seu processo degenerativo. Jesus, disso tudo, faz uma síntese
quando diz: “Com efeito, é de dentro, do
coração dos homens que saem as intenções
malignas: prostituições, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas,
maldades, malícia, devassidão, inveja, difamação, arrogância, insensatez” (Mc
7,21s).
A
redenção que Jesus Cristo realizou pela Encarnação e sua Morte de Cruz revela,
também, o aspecto social do pecado. Isto aparece claramente quando São Paulo
ilustra a eficácia da Redenção pelo princípio de solidariedade. Cristo Jesus é
o Adão novo e “onde avultou o pecado, a graça superabundou ” (Rm 5,20). Embora
seja somente Cristo Jesus o Cabeça do qual e pelo qual a graça do Espírito é
transmitida aos homens, deve-se admitir que as gerações passadas influíram
negativamente sobre as gerações subsequentes através de uma hereditariedade
nefasta, provocada pelas continuadas e agravadas desobediências dos homens ao
seu Criador.
Pelo
ensinamento de Gn 2,16; 3,3; 4,7, o pecado é uma desobediência da criatura ao
seu Criador, que manifesta a sua vontade pela consciência que está no homem.
Esta é a explicitação das próprias leis de desenvolvimento que estão inscritas
na criatura e que Deus quer atuadas, sabendo que o homem, na sua limitada
capacidade de conhecer a verdade, somente trilharia o caminho da sua realização
caso se conduzisse segundo os ditames daquele que , tendo-o chamado à
existência, conhece cada fibra do seu ser e, no amor, quer conduzi-lo a sua
plena realização. Quando, portanto, o homem viola os mandamentos de Deus, de
fato, enquanto ofende o Criador, está prejudicando a si mesmo. A ofensa está no
fato que não acatando a ordem de Deus, o homem manifesta uma profunda
desconfiança: mostra de confiar mais na criatura que no Criador.
São
Paulo diz que a causa de tudo isso é a falta de vivência da louvação a Deus,
nutrida pela contemplação. É uma reflexão que se fundamenta em Gn 1-2.
Para
uma mais ampla ilustração do que é pecado torna-se necessário considerar o
paralelismo entre Gênesis e Carta aos
Romanos.
Para
o Autor sagrado de Gn 1-2, Deus cria o homem à sua imagem e semelhança, para
reinar sobre o mundo e, pela instituição do matrimônio, estabelece as condições
do seu aperfeiçoamento na doação amorosa de si ao outro cônjuge e de ambos os
cônjuges aos filhos. A imagem e semelhança é o fundamento da determinação de
Deus de guiar o homem, porque, enquanto Ele é a Sabedoria, a criatura nada
conhece e precisa aprender tudo. A realeza à qual o homem é chamado indica que
Deus inscreveu no homem a condição de senhorio sobre a criação. A vocação ao
matrimônio indica a forma pela qual, seja a semelhança com Deus como a realeza,
devem ser realizadas.
Quando
o homem desestrutura essa ordem sufocando a voz da sua consciência, querendo
alcançar uma realeza que não é da sua ordem e por caminhos que não são os da
caridade, dizemos que está pecando. É um ato de rebeldia praticado de forma
insensata que ofende o Criador e prejudica a criatura.
A
maneira de evitar esse erro, que está presente em cada ato pecaminoso, é o de cultivar a confiança
em Deus mediante a contemplação das obras de Deus e do seu poder, como ensina o
livro de Jó (Jó 38-41), e São Paulo sintetiza em Rm 1,18-20.
A
falta de confiança, causada pela falta de louvação, induz o homem à atitude
impensada de decidir por si mesmo sobre os caminhos a tomar para a sua
realização. Seja Gn 3 como Rm 1,20-23 dizem que o homem, em primeiro lugar,
toma a decisão que é a mais absurda e a mais insultuosa para Deus: adota a
idolatria. Isso revela quanto o homem, de fato, é limitado no seu entendimento
e quanto precisa de Deus para se guiar. Agora, a maneira para usufruir da
presença de Deus na sua vida é exatamente o da obediência a ele. O que significa
adotar o Deus certo em lugar de criar para si deuses despóticos e servir a
eles.
Com
a idolatria é rompida a relação com Deus, o homem está exposto a uma
degeneração que, seja para Gn 3, , como para Rm 1,24-27 , se manifesta, antes
de mais nada na concupiscência da carne. Seguem-se todas as outras
manifestações dos vícios, até à máxima de querer praticar o mal embora sabendo
de incorrer na ira de Deus e aplaudir os que fazem o mesmo (1,32).
De
tudo isso resulta que a multiplicidade dos pecados é fruto de uma atitude
fundamental errada. Quando, portanto, o Filho de Deus vem ao mundo, se torna o
Cordeiro de Deus que tira o pecado. Isto é, pela obediência até a morte de
Cruz, revelando qual é a verdadeira sabedoria para o homem, restabelece a ordem
inicial.
Confrontada
com a obediência de Cristo Jesus, a rebeldia resulta ser a maneira errada do
homem de viver a sua condição criatural. Cristo Jesus, o homem perfeito,
revelou que o caminho da realização do homem é o da imolação de si próprio ao
Criador, na certeza de que Deus o glorificará porque ele é a Bondade que age no
Amor.
O
homem nunca poderia ter entendido isso tudo no começo da sua história. Existem
portanto condições que atenuam a responsabilidade no homem que peca: a sua
fragilidade, que provoca o esquecimento
dos benefícios recebidos e o leva à ingratidão em relação ao seu Criador, e a
extrema limitação de entendimento, que leva o homem a decisões erradas. É por
Cristo Jesus, Modelo e Princípio do Espírito, que o homem encontra as condições
de corresponder ao Plano de Deus, que poderia ser assim apresentado:
Deus,
a Bondade, quer atuar em nós, suas criaturas, segundo toda a virtualidade da
sua perfeição, querendo nos tornar participantes da sua existência através de
um gesto soberano do seu Amor. Rm 8,18-30 nos revela o dinamismo da criação
pelo qual se desenvolve e perpetua, até o último termo ao
qual Deus a destina. A criação é chamada a uma condição gloriosa que Deus atua
a partir do homem, a mais alta expressão da mesma. Por uma Redenção que se
torna necessária devido à degeneração do homem, Deus doa o seu Espírito ao
homem. A partir da presença irremovível do Espírito na humanidade, em virtude
de Cristo Cabeça, começa um processo evolutivo que levará, necessariamente, a
humanidade à glorificação. A Redenção mereceu o sepultamento das culpas do
homem na morte de Cristo, de forma que, pelo dom do Espírito somos novas
criaturas. Tudo, porém, é dado em germe, sujeito a um processo evolutivo,
segundo as leis determinadas pela nossa condição criatural, que deve ser
cultivada pela contemplação das obras da criação e a obediência. O fiel não
pode se cansar de celebrar a sua Redenção pela qual a Bondade, pelo Verbo
encarnado, o recriou, soprando sobre ele o Espírito de vida, que o tornou nova criatura, chamada a
reinar com Ele. Como um novo Adão, colocado numa condição de vida plena, o
homem deve viver na obediência, tendo como modelo o Homem Cristo Jesus.
Não
faltarão as tentações, como não faltaram para a própria Humanidade de Cristo,
que devem ser superadas para não recair no processo degenerativo que a Bíblia
ilustra pela história do homem.
O
âmago da miséria em que o homem pode afundar é amplamente descrito pela
História do pecado que se inicia pela rebeldia do homem contra o seu Criador. É
uma história que o Autor sagrado sintetiza em Gn 4 e completa com Gn 6,5-9,17.
Ela descreve o abismo em que o homem se lança quando opta pelo pecado, e qual é de fato a maravilhosa e
onipotente intervenção de Deus que, no seu amor, fiel à sua Bondade, nos
resgata de uma condição de morte e de progressiva degeneração, manifestando,
com isso o âmago da sua natureza divina e a gratuidade do dom que quer nos
conceder. Nisso, Noé é clara figura de Cristo Jesus.
O
que agrava a condição do fiel é o fato
de que, depois do Batismo, recai no pecado, embora esteja na condição de
superar as tentações. A falta de bom exemplo, a instrução defeituosa na
religião impdem o pleno desenvolvimento das suas convicções e a utilização
plena dos sacramentos como meio de santificação. Em Cristo Jesus, contudo,
ainda tem esperança de reconciliação (1Jo 2,1).
O
pecado, que sempre tem como raiz a ambição desmedida do homem de ser igual a
Deus e que por isso é um ato de rebeldia ao Criador, nos lança, a partir da
insensatez, num redemoinho de concupiscências. É rompida a relação harmoniosa
entre a criatura e o Criador numa insensatez desmedida de criar atalhos para se
tornar igual a Deus. A divinização é o que, de fato, o próprio Deus quer para o
homem, mas segundo o processo conatural de dependência e obediência. O homem
não pensa que, quando rompe com Deus, Deus poderia romper com ele. E é o que,
de fato, dar-se-á no julgamento definitivo (Ap 18,20). A rebeldia ao Criador é
tão grave que desencadeia tremendos castigos cujas conseqüências presenciamos:
sofrimentos, processos degenerativos ao longo das gerações, mortes causadas
pela cupidez do ouro, concupiscência da carne, ambição da vida (1Jo 2,16). Mas
é, sobretudo, no homem, em si, que se processa uma degeneração moral que o
desfigura totalmente.
Pela
iluminação da Revelação, através da ampla descrição da ação criadora para
preparar para o homem o reino no qual habitar, que contrasta com a leviandade
do homem, entendemos a insensatez da soberba que o leva a pensar de ser Deus,
ao ponto de rebelar-se contra ele. De fato, a extrema liberalidade divina dotou
o homem de tal forma que o fez “pouco
menos do que um deus” (Sl 8,6). Em lugar de viver plenamente agradecido ao seu
Criador, o homem é vítima da visão mais equivocada.
Iniciamos
a reflexão sobre o pecado afirmando que a análise filosófica é insuficiente
para detectar sua origem e sua natureza, e que somente Deus, por revelação, nos
esclarece sobre o mesmo. Contudo, depois de ter analisado o que a Revelação nos
diz do pecado, achamos que é possível um aprofundamento, quanto ao entendimento
da sua natureza, se somarmos as contribuições que, seja a filosofia como a
doutrina revelada nos dão.
A
filosofia, de fato, nesse caso, é de grande valia pelo fato que, por ela,
descobriu a maneira pela qual o homem chega ao conhecimento. O homem parte da
experiência sensorial para formar as idéias. Pela ligação inteligente das
mesmas entre si formula as hipóteses, que testadas em cima da realidade física,
com a qual interage, chega a um conhecimento científico da realidade. Quando
confrontamos esta descoberta filosófica com as reflexões didático-sapienciais
de Gn 2-3, que tratam do pecado, Gn 2 definindo as leis de comportamento do
homem, Gn 3 narrando a desobediência, notamos que o homem acaba errando porque
pensa de ter chegado ao conhecimento do que é bom para ele e do que é mal pelo
fato que, olhando à árvore do bem e do mal vê que ela é bela e que os seus
frutos são bons para serem consumidos. Isto significa que o homem parou, na sua
reflexão, no primeiro estágio do conhecimento e tirou conclusões em cima da
imagem que a sua interação com a árvore
produziu, e criou para si ídolos em lugar de proceder na análise e chegar ao
serviço do Criador, prestando obediência a Ele abstendo-se do fruto da árvore.
Com isto resulta que o homem peca porque não aplica, no conhecimento de Deus, o
seu coração e a sua mente com todas as suas forças. É facilmente induzido ao
erro pelo aliciamento das aparências, que são os primeiros objetos de contato,
no processo de conhecimento, quando interage com o mundo. Constatamos que isto
se repete seja quando se trata de luxuria, com quando se trata de avareza ou
gula e, praticamente, em todas as situações de pecado. Se o homem não se
deixasse levar pelos instintos, implementando de imediato o que eles sugerem,
chegaria a tirar as conclusões da forma correta da utilização dos instintos à
luz daquilo que realmente as leis do Criador indicam e, dessa forma, promoveria
o seu verdadeiro crescimento.
Essa
reflexão, por sua vez aponta para a contemplação das obras do Criador como
antídoto ao pecado. Por ela o homem pode descobrir a Beleza, a Sabedoria, o
Poder e a Bondade de Deus, que o motivariam ao culto de adoração, evitando o
pernicioso equívoco de acabar servindo às criaturas em lugar de servir ao
Criador.
8a
Palestra: O pecado de Adão (I)
Gn 3 é uma narrativa
didático-sapiencial que o redator final da Torah colocou numa moldura
cronológica para responder à questão do por quê do mal no mundo. O sábio que
redigiu Gn 3 fez uma interpretação alegórica da história de Israel, o filho ao
qual Deus deu a terra mas que dela foi expulso por causa da sua desobediência.
O redator final da Torah viu nela a interpretação da história da humanidade, do
homem que depois de ter recebido tudo de Deus, se esquece do seu Criador e opta
pela glória das criaturas.
A doutrina revelada sobre
o pecado não se preocupa com a sua origem histórica e, sim, com o homem, com
cada homem que, diante do amor do Criador que o chama à existência, responde
com a ingratidão da rebeldia. Por causa disso, São Paulo, sem esquecer que está
diante de uma narrativa alegórica, utiliza Gn 3 para ilustrar o que, de fato,
Jesus Cristo atua com a sua Redenção (Rm 5,12-21). A narrativa de Gn 3, que
assumiu uma perspectiva cronológica, dentro
da exposição catequética da Bíblia, se adapta perfeitamente para esse
fim. O Adão de Gn 3, que é visto na condição de ancestral da humanidade, é
figura perfeita de Cristo (5,14), o verdadeiro Adão, pelo qual Deus quer
recapitular toda a história da humanidade (Ef 3,10), porque é capaz de
realmente transmitir a graça, tornando nova criatura os que nele crêem.
Quando tornamos a personagem da
narrativa alegórica, neste caso o Adão de Gn 3, uma realidade cronologicamente
histórica, cometemos uma ilação. No intuito do autor, ele é, simplesmente,
figura do homem, de cada homem, interpretado à luz da história paradigmática de
Israel.
Por que, então, todo e cada homem
peca e precisa de uma redenção? Porque o homem é uma criatura extremamente
limitada, que vive oprimida pela sua condição corporal (Sb 9,14-16). Embora, em
princípio, esteja em condição de atuar o Plano originário de Deus, de fato,
como a sua história o prova, ninguém escapa do pecado. Há só um justo capaz de
salvar e que Deus suscita, à semelhança de Noé (Gn 6,8). É Jesus que, em
virtude da sua condição divina, conduz a sua humanidade na obediência, guiada
pelo pleno entendimento do Plano de Deus, até à imolação, que ele sabe ser a
expressão máxima da realização criatural. A partir dele, a todo e cada homem é
dada a condição de viver a imolação como culto racional (Rm 12,2). Pela graça
da Redenção, o homem recebe o Espírito, com os seus dons, de forma que é capaz
de entender, optar, concretizar, conhecer, oferecer, amar e servir a Deus.
A Igreja, desde o seu início,
comunica essa graça à criança recém-nascida, tornando-a filho de Deus e
herdeiro da vida eterna. A graça do Batismo leva, portanto, a termo o Plano de
Deus de nos tornar participantes da sua vida , dentro de um contexto de
redenção que nos torna filhos de Deus adotivos, no Amado (Ef 1,6 ). Isso
patenteia toda a gratuidade do dom, ilustra o enriquecimento comunicado pelo
sacramento e exalta a Misericórdia de Deus.
Perguntas para uma
reflexão:
1ª) Qual é o
verdadeiro sentido da narrativa sapiencial de Gn 3?
2ª) De que forma São
Paulo a utiliza em Rm 5?
3ª) Por que Cristo é
o adão verdadeiro?
O pecado de Adão (II)
Querendo
abordar, agora, o pecado do homem a partir da Misericórdia de Deus que se
manifesta pela Redenção, podemos dizer que Deus, a Bondade, no seu amor sem
limite, diante do homem que, a diferença de qualquer outro ser animado, é
possuidor da sua imagem e semelhança com o seu Criador, de imediato, quer atuar
nele a perfeição da divinização, não obstante que isso implique uma Redenção.
Aliás, por ela todo o seu amor misericordioso será manifestado, a humanidade
encontrará, na glorificação do Verbo encarnado, a expressão última da sua
realização e a todos os homens serão participadas as condições de uma
realização pessoal em Cristo, mediante a comunicação plena do Espírito. Em Gn
2,7 se fala de uma comunicação do espírito ao homem que o coloca no gênero
animal, embora Gn 1,26-28 já o distinga dos outros seres animados. Essa
condição de ser animado dotado, contudo, de semelhança com Deus, a ponto de
reinar porque consciente, em tese, permitiria ao homem de se realizar, segundo
o Plano de Deus. De fato, vítima da sua fragilidade, o homem logo estraga todo
o Plano. Deus, contudo, diante da limitação do homem, é paciente e compassivo.
Aliás, aproveita a culpa para manifestar os extremos da sua Bondade e levar a
termo a obra da criação, tornando o homem semelhante ao Filho, mediante a
comunicação plena do Espírito.
Historicamente,
a obra da redenção tem o seu início com a vocação de Abraão, embora esta
redenção esteja contemplada por Deus desde a criação do homem (1Pd 1,19s). Isto
significa que ela está em ato desde o primeiro homem que recebe os frutos da
redenção como qualquer outro homem depois de Cristo. A forma pela qual a redenção
é dada a cada homem é diversificada. A uns chega pela voz da consciência, a
outros pela Lei, a nós pelo Evangelho. Todo e cada homem, segundo a sua
responsabilidade é chamado a responder segundo as exigências da sua condição
criatural. Vemos, portanto que a salvação é a todos oferecida, a uns até com
maiores oportunidades, enquanto constatamos que o homem reage sempre da mesma
forma, exatamente segundo aquela tipificada pela narrativa didático-sapiencial
do Gênesis. O pecado se repete em cada homem e a redenção se torna necessária
para cada homem (Rm 3,23). Cristo morreu por mim, dizia São Paulo. A forma
histórica que determina uma cronologia quanto à realização da redenção não
define a sua natureza. Ela atinge cada homem no tempo em que ele existe e lhe
proporciona o destino eterno segundo o Plano de Deus.
Quando o redator final da Torah
precisou envolver na obra da redenção também os que precederam Abraão, utilizou
o artifício literário da descendência, fazendo, historicamente, remontar a
salvação até o adão do Gênesis. Isto não é cronologia e sim, intuição teológica
que vê a necessidade de estabelecer uma redenção em ato que diga respeito a
toda a humanidade. É errado pensar no Adão do Éden como se tivesse
historicamente existido, porque então surgiriam impasses teologicamente
inexplicáveis. É, contudo, correto dizer que a sua figura interpreta a condição
pecadora de todo homem, de forma que a sua ligação com a história da humanidade
é um recurso teologicamente correto. Este permite ver claramente como todo e
cada homem está ligado à redenção de Cristo. Permite ver, também, quanto Cristo
Jesus está ligado a cada homem pelo fato que com cada um deles tem em comum a
natureza humana assumida. É exatamente esta ligação real que permitiu a São
Paulo explicar, num paralelismo perfeito, contudo analógico e de contrários, a
influência real do Verbo encarnado sobre cada homem, pela figura do Adão da
narrativa didática de Gn 3.
Perguntas para
reflexão:
1ª) Por que Deus
permite o pecado?
2ª) De que forma é
dada a cada homem a sua condição de salvação?
3ª) Em que sentido o
adão da criação nos representa?
O pecado de Adão (III)
A
ligação efetiva entre os homens, que as gerações atuam, leva, também, a pensar
na salvação como um fato que diz, sim, respeito a cada indivíduo, como a uma
humanidade contemplada como um corpo, do qual Cristo se torna o Cabeça. Nisto,
Cristo, decididamente supera a figura. Impossível pensar como um simples homem,
sujeito à morte, possa ser o cabeça efetivo de uma humanidade. Não é assim de
Cristo que, de condição divina, se torna o Primogênito entre muitos irmãos,
unidos a Ele pela comunicação do Espírito, que faz deles membros de um só
corpo, destinados a ser co-herdeiros, com a humanidade de Cristo ressuscitada,
da Glória divina. A eficácia da ação redentora de Cristo, em relação a cada
homem, liga cada um a Cristo e faz, de cada um, membros de um só corpo. Cada
qual, portanto, segundo a sua específica vocação, é chamado a viver a vida do
Espírito em prol do Corpo, completando na sua “carne o que falta à Paixão de
Cristo” (Cl 1,24). É o seu sacrifício racional (Rm 12,1), agora possível, até
porque Cristo perpetua a nossa condição de novas criaturas pelo sacramento da
penitência, em caso de pecado.
Tudo nos é dado no Espírito. Por ele
podemos reinar, temos a imortalidade, a filiação divina, a Glória eterna. Nessa
vida de fé intercede por nós, enquanto encaminha a criação à manifestação dos
filhos de Deus.
A filosofia contribui nessa análise,
enquanto ilustra por que o homem peca. Ficando no estágio da imaginação, o
homem cria ídolos para si. Isto rompe com a comunicação com Deus e leva a uma
degeneração. Gn 4 ilustra o processo degenerativo. Eva e Caim mostram a
facilidade com que o homem cede à tentação. As aparências exercem um atrativo que
confundem o homem. Essa é a condição de todo e cada homem que constata, até
antes de se aperceber, que o pecado já se tornou pecaminoso nele (Rm 7,13).
Disso Jesus nos redime tornando-se ao mesmo tempo Caminho, Verdade e Vida. É
evidente que a teologia contempla o homem em si diante do seu desafio, constata
o fracasso de todo e cada homem que, a exemplo do adão da narrativa de Gn 3,
fracassa, pela revelação é informada de uma redenção gratuita de Deus que teve
a sua atuação em Israel. A condição divina do Redentor permite entender que
aquilo que se processou historicamente, agia, desde a criação do homem, em
virtude de uma Promessa, mas, sobretudo, em virtude de um Plano. A cada homem é
oferecida a salvação que se efetua enquanto Deus leva a termo a própria
criação, a partir do homem, que recebe a graça da filiação divina mediante a
comunicação do Espírito que é o Espírito de Cristo.
Pelo Batismo da Igreja, Cristo opera
a plenitude da criação comunicando ao homem a configuração a si e a vida
divina. A Igreja recebeu, na fé, aquilo que transmite seja à criança como ao
adulto. À criança, pela fé que ela, Igreja, tem, ao adulto pela fé que
despertou pela pregação da Palavra. O Batismo visa muito mais do que a remissão
das culpas. Visa, sobretudo a nossa configuração a Cristo glorificado. É pela
força dessa configuração que no adulto desaparece até qualquer sombra de
pecado. Na criança, o Batismo leva a termo o Plano originário de Deus que “de
antemão nos conheceu e nos predestinou a sermos conformes à imagem do seu
Filho” (Rm 8,28). O fato que isto aconteça dentro de um contexto de redenção,
não significa que, agora a nossa configuração a Cristo dependa da remissão de
uma culpa original, significa simplesmente que Deus, explorando a condição de
culpa, atua a nossa divinização num contexto de misericórdia. Na criança isso
atua de tal forma que ela está em condições de reinar, não pelo esforço pessoal
de servir a Deus, e sim, com Cristo.
Perguntas para uma
reflexão:
1ª) O que implica a
nossa ligação a Cristo Cabeça?
2ª) Como poderíamos
ilustrar o mistério do pecado?
3ª) Quais são as
graças que o Batismo produz em nós?
9a
Palestra: A Descendência
A
Descendência é o marco, o mais evidente da ação de Deus, que é a Bondade que
age no Amor. É revelada por Deus no exato momento em que se inicia a história
do pecado, mas que São Pedro e o Apocalipse nos revelam que estava presente na
mente de Deus desde a criação do mundo (1Pe 1,19s; Ap 11,). Disso resulta que
Deus, ao criar o homem, estava disposto, e não podia ser diferente, devido à
sua natureza, a ir até as últimas consequências para realizar o seu Plano, qual
o da divinização do homem. Por isso mesmo, enquanto o homem, por si é merecedor
de morte, por causa do seu pecado, em virtude de um “livre desígnio de Deus”,
encontra no Cordeiro contemplado imolado desde a criação do mundo o princípio
da sua continuidade. A Descendência, desde a primeira culpa do homem, já
merecia, para o homem, o Espírito de vida (Gn 4,26). É Deus que, por graça,
suscita a Descendência, para dar continuidade ao seu Plano sobre o homem. A
primeira condição para o homem vivê-lo é o de reconhecer o Nome de Iahweh que
se manifesta na criação. Um Espírito que iria sempre mais voltar a tomar conta
do homem na proporção em que se atuaria, ao longo da história, a obra da
Salvação. O fio condutor da obra da Salvação é a própria história da
Descendência, que anunciada no momento da culpa original, é tipificada em toda
a sua eficácia na figura de Noé (Gn 6,8; 1Pe 3,18-22).
A
Descendência acompanha o homem na sua história de pecado, para ser, desde o
início, o princípio de salvação, que atua pela promessa (Is 55,10).
A
forma pela qual é anunciada, por si, manifesta tudo o que ela irá operar:
“Porei entre ti e a Mulher uma condição de absoluta incompatibilidade”. Isto é,
Deus jura que irá restabelecer a situação original dentro de uma condição
irreversível. É o mistério da Redenção do Homem que atuar-se-á pela Encarnação
do Verbo eterno. Impossível para o homem entender o sentido profético dessas
palavras, no momento em que são pronunciadas. A forma pela qual se realizou é
algo, em si, totalmente novo: a própria assumpção da natureza humana pelo
próprio Deus. Adão entende toda a pregnância da palavras que Deus pronuncia ao
amaldiçoar a serpente, ao ponto de, nele, toda a humanidade ser encher de
esperança. É por isso que saúda a sua mulher, desde aquele momento, como
“Evvah!”, isto é, como aquela da qual virá a Vida. A condição de culpa, em que
vive o homem, está cheia de esperança de uma redenção, que é uma certeza,
porque Deus mesmo tomou a iniciativa de salvar o homem.
Em
Abel, temos a primeira tipificação do que será a Descendência: alguém que
pertence à estirpe humana, que Deus suscita e que é irmão daquele que, por mais
um gesto de rebeldia ao seu Criador, matará, exatamente movido pela ira
provocada por uma inveja diante de uma atitude de religião. A atitude de Abel é
aceita, a de Caim não. Em lugar de Caim reconsiderar a sua atitude diante de
Deus, ele parte para o homicídio. Está tipificado o que o homem fará contra
Jesus. O Sinédrio, em lugar de reconsiderar, segundo as admoestações proféticas
de Jesus, a sua atitude de religião, inaceitável diante de Deus, preferiu
partir para a continuidade da sua falsa religião, matando o próprio Cristo do Senhor.
Em
Gn 5, em paralelo com a história da
descendência de Caim de Gn 4, temos, em resumo, toda a história da Descendência
que Deus continuamente suscita.
Com
Noé a Descendência é vista na sua função de dar origem à verdadeira humanidade,
por si destinada à destruição, à qual seria necessariamente conduzida pela
história dos seus pecados. Todas essas figuras vão mostrando, segundo cada
específica faceta, toda a grandeza de Cristo que, contudo, transcende todas
essas figuras pelo fato que as realiza na condição de Deus encarnado.
Abraão
já caracteriza a condição de Cristo, enquanto é um dos elos da Descendência que
Deus suscita, de Cabeça de um povo, que pela confiança e pela obediência, será
uma benção. Caracteriza, também, a sua condição de israelita. Uma condição
histórica que tem suas implicações teológicas, entre as quais, a referência
nas atenções por parte de Jesus (Mt 10,6) e por parte dos próprios Apóstolos
(Rm 1,16; At 13, 5.46). De fato, em Abraão, os hebreus são herdeiros da adoção
filial, pela circuncisão: estão ligados, de antemão ao Cristo do Senhor que é a
Descendência, enquanto a circuncisão os ligou, em Abraão, a Set, a Adão.
Com
Davi, a Revelação profética, já quer ilustrar o aspecto régio de Cristo cabeça
do povo de Deus; o aspecto sacerdotal também. E, através da figura do Servo de
Iahweh, que necessariamente deve ser ligada à figura do rei, Cristo Jesus, a
Descendência prometida como princípio de restauração, é vista exercer as suas
funções a partir da sua condição profética.
Cristo
Jesus é portanto a Descendência prometida em Gn 3,15, para uma restauração da
ordem universal, que em tudo transcende as expectativas suscitadas pelas
figuras proféticas do AT. A sua ação é segundo o Espírito que o consagra. A
libertação dos pobres dá-se pelo anúncio do Evangelho do extraordinário Plano
de Deus que quer dotar os homens de toda a riqueza que a Divindade possa
despejar sobre o homem enquanto o diviniza. A realeza que ele vai atuar se
fundamenta, antes de tudo, na condição de realeza que ele conquista para a sua
humanidade, como verdadeiro Adão, mediante a contemplação e a obediência até à
imolação de Cruz. Como Princípio e Modelo quer, assim conduzir os homens à
verdadeira realeza. Quem se deixar atrair pelo Pai, em virtude da pregação do
Filho, que ele enviou, conquistará com Ele, por Ele e nele, a mesma condição de
realeza.
Para
Mateus e para Lucas Jesus é, sobretudo essa Descendência. A consideram como
atuação de todo o Plano de Deus seja enquanto nele se concretizam todas as
profecias do AT, seja enquanto, sobretudo, tudo é atuado dentro da revelação da
condição divina “daquele que quis assumir a nossa condição humana”.
Paulo
lemba essa condição de Jesus que, pela Ressurreição, se revelou, de forma
definitiva, o Cristo do Senhor, o Filho de Deus, “nascido da estirpe de Cavi,
se gundo a carne” (Rm 1,1). Por essa condição, o Cristo do Senhor é, também
israelita, da descendência de Abraão (9,5). Por essa Descendência, atuada pelo
Filho seu, “o amado”(Ef 1,6), tudo é recapitulado (1,10). Jesus é o verdadeiro
Adão que dá origem à estirpe dos filhos de Deus: “o Primogênito entre muitos
irmãos”.
10a
Palestra: O mundo
O
mundo é a realidade criada por Deus, a qual deveria ser harmonia e beleza, mas
que, pela rebeldia do homem, tornou-se um mar de iniquidade e perversão. São
Paulo no-lo descreve em sua natureza (Rm 1,18-32). Resulta que as
concupiscências dominam o homem (1Jo 2,15-17). O Mal que domina o homem, o leva
a uma atitude adversa contra os próprios justos (Sb 2; Jo 15,18-16,11). Inicia
com a rebeldia e degenera nos vícios. A tremenda ameaça em que ele se constitui
para os justos pode ser vista no embate que o próprio Jesus tem que enfrentar.
O mundo são os judeus que se recusam em aceitá-lo: os sumos sacerdotes que o
odeiam porque vêem nele uma ameaça política; os Anciões do povo que
administravam o Templo e que viam nele uma ameaça econômica; os Escribas, que
viam nele um rival no entendimento das Escrituras, e optavam em se ater a
tradições humanas, não obstante a superioridade da interpretação que Jesus dá
da Torah; os fariseus, que não queriam aceitar o desmoronamento da fachada da
sua hipocrisia (Mt 23).
O
mundo são, portanto, os homens com os seus desvios e o apego aos mesmos. Por
causa da recusa a renunciar aos apegos, chega a odiar sem motivo (Jo 15,25)
seja a Jesus Cristo como a Deus e a todos os seguidores de Cristo.
Os
que aceitam Jesus como Filho de Deus são salvos, recebem a justificação e se
livram do domínio do Mal. Os que o recusam, além de perder a salvação, têm mais
um pecado, o de recusar a evidência da verdade. Acabam privados da justificação
que é libertação do Mal pelo Espírito (Rm 5,5).
Os
maus são corpos devedores ao pecado, isto é são seres dominados por apegos
desordenados (Rm 1,24), com pensamentos sem sentidos (Sb 1,5), incapazes de
julgar (Rm 1,28), repletos de toda sorte de injustiça (v. 29).
No
seu apego aos desvios, incomodados pela presença dos justos, cegados pela
maldade (Sb 2,21), “cercam o justo”(Sb 2,12) e o oprimem (v. 10).
A
reflexão que Daniel faz sobre a história no momento em que os reis pagãos
perseguem os santos de Israel, ilustra amplamente a perversão do mundo. Dn 2,
apresenta o rei Nabucodonosor no seu desmando de matar; Dn 3: o rei quer ser um
deus e dispõe da vida dos servos de Deus; Dn 4,ilustra o orgulho do rei: Dn
5,... a insensatez de Baltazar; Dn 8, apresenta Antíoco Epífanes como o
protótipo dos perseguidores.
Ap
13 apresenta o poder terreno perseguidor, aliado ao poder religioso, a Besta que sai da terra, a Sinagoga de
Satanás (Ap 2,9.13;3,9). É a cidade terrena “embriagada com o sangue dos santos
e das testemunhas de Jesus (17,6).
Mt
23. Ninguém pode hostilizar mais a Jesus do que aqueles que recusam a evidência
da verdade. São “filhos daqueles que mataram os profetas” (v. 32). São
responsáveis por matar, crucificar e açoitar profetas, sábios e escribas (v.
34).
1Tss
fala dos judeus que perseguem as Igrejas. Deve ser associada a Ap 2.
Sb
2 mostra a alma dos maus e a perversão dos seus pensamentos: - não creem na
vida eterna; - vivem nos prazeres desta vida e em orgias; - praticam a opressão
contra o pobre e a viúva; - são violentos; - cercam o justo porque os contesta,
porque crê em Deus, e por isso o perseguem, testando sua serenidade e
resignação.
Reflexão
final
É
exatamente esse mundo que Jesus remiu pela sua Encarnação e Paixão. Para isso,
deu o seu belo testemunho, confiando em quem podia dar-lhe de novo a vida.
Manteve, portanto a sua fidelidade aos valores cultivados ao longo da sua
existência terrena e considerou a sua morte de cruz o ápice da sua realização, como criatura.
O
cristão é chamado ao mesmo testemunho, seguindo Cristo Caminho. Para isso vive
a sua fé (1Jo 5,4) para ser capaz de reconhecer, quando surgir a condição a
mais adversa da sua existência, que ela é a condição da atuação máxima da sua
condição criatural diante do seu Criador. De fato, nascemos à vida de Deus pela
fé em Cristo crucificado. Por ele aspiramos à vida em Deus. Por isso somos
chamados a manter a justiça de Deus alcançada por nós pela Cruz. Isso se dá
através de uma contínua purificação, seguindo Cristo Jesus na aflição provocada
por uma condição de imperfeição da natureza humana chamada a uma condição
gloriosa em Deus. Esta já é uma condição de imolação, que até permite a plena
comunhão de vida com Cristo, porque observamos os seus mandamentos.
Quando
pecamos, voltamos a introduzir em nós a iniqüidade que nos faz cessar de ver e
conhecer a Deus (1Jo 3,6).
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