Gn 1-11

Gênesis 1-11 O prefácio da Bíblia  

Introdução 

            Ao lermos os primeiros capítulos da Bíblia, notamos que estamos diante de aulas catequéticas. A linguagem, contudo, é rebuscada, embora as imagens apresentadas sejam fáceis de serem entendidas, como o ensinamento que acarretam. Conforme o tema tratado, o autor diversifica o estilo e o gênero literário.
            Gn 1 é uma proclamação que vai apresentando a obra da criação para que o leitor, contemplando-a, veja nela a manifestação do Poder e da Glória de Deus, motivando-se, assim, a servir ao Criador e a lhe prestar culto no dia em que ele descansou dos seus trabalhos, sendo por Ele abençoado.
            Gn 2 utiliza a lenda para indicar em quais condições ideais Deus criou o homem para que servisse, na obediência, ao seu Criador. Em particular, preocupa-se em apresentar o matrimônio segundo o pensamento de Deus.
            Gn 3 é uma narrativa alegórica da história de Israel que o redator final do Pentateuco utiliza para ilustrar o que o homem faz quando se esquece de todos os benefícios recebidos, desobedecendo e se afastando de Deus.
            Notamos, a essa altura, que as aulas catequéticas foram escritas depois da destruição de Jerusalém. Isto nos permite dizer que tudo, do Pentateuco, foi escrito para instruir o povo através de reflexões sobre a história de Israel, a partir das suas origens. O redator final das Escrituras ligou o destino de Israel àquele de toda a humanidade.
            A profundidade da reflexão fez com que os textos fossem reconhecidos como inspirados e incluídos no cânon pela Igreja.
            A distância desses textos da nossa cultura nos obriga a esclarecer seus  pontos obscuros. De qualquer forma, resulta que o que pretendia ser simples catequese é uma reflexão sapiencial profunda e perfeita, reveladora da vocação do homem e do porque da sua situação de pecado, da sua vocação e do seu destino. Leva, também, a uma compreensão sempre mais diversificada do próprio Deus que foi se revelando na história de Israel e pela atuação dos profetas.
            Com a reflexão sapiencial da Igreja apostólica que viu em Jesus a realização da Descendência redentora, da figura de Noé e da Descendência de Abraão, os textos do Antigo Testamento adquiriram todo o seu valor. Dessa forma temos uma Bíblia que surge como manual catequético, mas que acaba se tornando Profecia pela qual Deus prepara a realização final do seu Plano a respeito do homem, que se concretizou em Jesus Cristo, na plenitude dos tempos.
            Gn 4 é mais um quadro de como o homem se envolve no pecado. Na segunda parte quer descrever, em síntese, os desdobramentos da vida de pecado do homem que vai se afastando sempre mais de Deus.
            Gn 5 é um hino à descendência dos patriarcas, isto é, da geração que Deus suscita ao longo da história da humanidade e pela qual quer levar em frente o seu Plano em relação ao homem. Estamos diante da utilização, por parte do seu autor, da linguagem da simbologia numérica, um artifício literário que quer ilustrar um conceito teológico: “Deus não abandona o homem na sua culpa. Pelo contrário, fiel a si mesmo, vem em seu socorro” (Vaticano II). Tudo é formulado segundo uma promessa no início de um processo que a vocação de Israel testemunha com a sua história.
            Gn 6-9 é uma extensa descrição do que espera o homem que se tornou só carne. Reflete a condição que Judá teve que enfrentar quando da sua destruição e deportação para Babilônia. Foi lá que conheceu a imagem do dilúvio. Aliás, das civilizações que acabou conhecendo, utilizou as narrativas de inundações que atingiram a humanidade, delas servindo-se para falar das águas da morte que destoem o pecador.
            Gn 10. A figura de Noé, o justo pelo qual a humanidade tem um novo começo, é a primeira interpretação da Descendência prometida capaz de salvar os irmãos. Ela estabelece uma dependência da humanidade daquele que Deus contempla desde a criação do mundo e que se revelará na pessoa de Jesus, capaz de nos remir em virtude da sua condição divina.
            Gn 11. É uma forma de narrar a dispersão da humanidade na terra, através de uma livre interpretação de fatos e elementos citados. À luz da catequese apostólica, resulta que todos os povos estão ligados a Jesus Cristo. Noé é a sua figura: o justo em quem Deus se compraz, por quem a humanidade, por si merecedora de destruição, subsiste. Em virtude da Aliança eterna que com ele estabelece, Deus, ao ver o arco na nuvem, para sempre abster-se-á de varrer o homem da face da terra.
           
            Bíblia Manual catequético
            Segundo a nossa fé, fundamentada na análise da história do povo de Israel, à luz do testemunho dos profetas, o redator final do AT e a reflexão sapiencial dos Apóstolos, que viram em Jesus Cristo o realizador da Profecia, nos dizem que o Deus que se fez conhecer a Israel é o verdadeiro Deus, Criador de tudo. O homem foi por ele criado à sua imagem e semelhança. A sua realização aconteceria pelo reconhecimento da sua dependência dele, motivada pela contemplação das suas obras, e na obediência à sua vontade. De fato, como nos ensina a história de Israel que deve ser assumida como paradigma da história de toda a humanidade, o homem assumiu uma atitude de rebeldia de forma que se viu privado da vida eterna. Aliás, foi afundando sempre mais no mal. Diante de Deus, tornou-se merecedor de morte porque encheu a terra de violência. Mas, como resulta da história de Israel, Deus é misericordioso, a ponto de constituir um salvador pelo qual a humanidade tem o princípio do seu recomeço. Por isso, não haverá dilúvio que a destrua, não obstante que continue a se manifestar a violência sobre a terra e a humanidade se obstine em enveredar caminhos de auto realização. Haverá, todavia, um julgamento final que excluirá da vida eterna quem não será achado “inscrito no livro da vida” (Ap 20,15).
            No Plano de Deus, que visa à glorificação do homem como um todo, a vocação de Israel tem uma função instrumental. Por ela, a humanidade conhecerá o seu Salvador. A condição divina dele mostrará claramente que, embora o Messias realize as expectativas de Israel, ao mesmo tempo, as transcende, porque elas são simplesmente figuras de uma realidade espiritual da qual são herdeiros todos os homens (Is 45,22). Essa herança existe e é possível porque o Messias, em Jesus Cristo, se revelou de condição divina, pela sua ressurreição dos mortos. A originalidade segundo a qual Jesus realizou a Profecia revela que ele é verdadeiramente o Messias e que a sua divindade, por ele anunciada, pode ser aceita.
            Dessa forma, temos uma progressiva revelação por parte de Deus ao homem incapaz de encontrá-lo. Primeiro se revela a Israel, depois, se revela, por Jesus Cristo, para que a salvação universal vislumbrada pela reflexão dos sábios hebreus, e atuada por ele, na condição de Filho de Deus, conhecida pelos Apóstolos, seja anunciada a todos os homens. 

Gn 1-2

Gn 1,1-5 – O Princípio da criação de Deus            

Esquema da composição
          1,1 Tema da criação: Deus tudo criou na condição de Princípio de todas as coisas.
          1,2 Desenvolvimento do tema: Deus-Espírito, como uma ave que paira sobre o ninho, fez sair das águas indômitas dos oceanos (símbolo do caos) todas as coisas.
          1,3  Primeiro gesto da criação: Deus cria o dia.
                   O fato que o Autor se expresse aludindo ao dia como algo bom e à noite como algo mal aponta para um simbolismo profético. João 1,3-5 o detectou, como também Paulo (At 13,33). Estamos no primeiro dia. É o dia do Senhor, o primeiro dia da semana (Mt 28,13), momento em que o Pai proclama: “Tu és meu Filho, eu, a Ti, tornei Luz” (Sl 2,7). O Pai separa, definitivamente, o Filho do Homem do mundo (as Trevas), em resposta à prece de Jesus (Jo 17,1; Hb 5,10).
        1,5 “Eis uma tarde e uma manhã”. É o refrão, que adquire sentido pleno, diante da realização final profetizada.
            A percepção mais clara da linha profética presente em Gn 1,3-5, nos alerta sobre a linha profética de Gn 1,1-2. O Deus criador se apresenta trinitário na sua ação. O sentido formal de Gn 1,1-2 é o seguinte: pela Palavra, Princípio da criação, o nosso Deus tudo criou,... o Espírito pairando sobre as águas.
            A linguagem antropomórfica, pela qual o autor descreve a ação de Deus na criação, depende da intuição que o mesmo tem de que o homem foi criado “à imagem e semelhança de Deus” (v. 26).

Comentário
Estamos diante do início da Bíblia e, mais precisamente, de uma parênese catequético-litúrgica que trata do Deus criador e da sua criação, no intuito de promover nos fiéis a louvação (primeiro ensinamento que Deus quer dar ao homem pela Revelação), a mais alta condição de realização da criatura (Rm 1,21; Sl 63,2): “Pela Palavra (Eclo 42,15b; Sl 33,6), o nosso Deus deu origem a tudo o que os céus e a terra contêm” (Gn 1,1). Essa frase é o tema da primeira aula catequética da Sagrada Escritura. A primeira afirmação: “A terra era um deserto e um vazio só: treva sobre a face do abismo (= sobre a superfície do oceano (Sl 33,7, em hbr.)” (1,2), quer descrever a matéria informe da qual brota a criação em virtude da ação do Criador, que age pela sua Palavra, “Imagem da sua substância” (Hb 1,1), e que Pv 8,22-31 identifica com a Sabedoria e chama de Princípio. A segunda parte de Gn 1,2 abre a descrição da ação de Deus enquanto chama as criaturas à existência, modelando-as do solo (cf. Gn 2,19) pela ação irresistível do Espírito criador: “O Espírito do  nosso Deus pairando sobre as águas”. O nosso Deus fez, então, sair a sua Palavra da sua boca para criar a luz: ‘Seja a luz!’ ”. E a luz foi feita. É a ação de um único Deus que, todavia, atua pelo seu Espírito, princípio da vida,  e pela sua Palavra, e que faz as coisas existirem segundo o gênero de cada uma. O Espírito e a Palavra de Deus sempre atuam juntos e realizam a vontade de Iahweh (Sl 33,6). Essa catequese litúrgica proclamada nos cultos sinagogais, da qual estamos comentando o tema, visava cultivar nos féis a fidelidade ao culto divino no dia do Senhor que cada hebreu devia adorar como  “seu Senhor" excluindo qualquer outro senhor (=baal), de qualquer outro povo. Os outros deuses (= elohim) e os outros senhores (= baalim), não existem. O único existente é o “Senhor nosso”, o “Senhor dos senhores” que tudo criou, Iahweh (= Aquele que desde sempre existe e que se manifesta com poder). A luz é a primeira das criaturas: ela é o símbolo de toda a beleza de Deus que resplandecerá em todas as outras coisas criadas e, particularmente no homem, e do destino definitivo ao qual é chamada toda a criação. Ela é tão superior às trevas do abismo, do nada, que Deus delas a separa: ela é Dia, a treva é Noite. A grandeza das coisas criadas do nada, a sua beleza, será o feito de cada gesto do Criador ao chamar à existência cada criatura: será como o despontar da luz vencendo as trevas. Dessa forma, na criação se manifestou a Glória de Iahweh da mesma forma que se manifestou no deserto quando Iahweh deu o pão do céu ao povo hebreu (Ex 16,6-12), e no Egito, com mão estendida e braço forte, libertara os hebreus da escravidão (Ex 6,6; Sl 136, 10ss). Quando o Autor sagrado escreve Gn 1, a Glória de Iahweh acabava de se manifestar na volta de Babilônia. Is 40 tinha anunciado nela a ação da Glória de Iahweh, Criador de todas as coisas e Senhor da História. A catequese sobre a criação quer revelar ao homem que a relação criatural deve ser cultivada mediante a contemplação das obras do Criador, para que motive a louvação e disponha à obediência (Rm 1,20s).
Poderíamos parafrasear assim Gn 1,1-5: “Pela Palavra, Princípio da criação (Ap 3,14; cf 1Jo 2,13;1,1.2), o nosso Deus deu origem a tudo o que os céus e a terra contêm (Gn 2,1). A terra era um deserto (2,5) e um vazio só: treva sobre a face do abismo, pairando, contudo, o Espírito do Senhor nosso sobre as águas para que fossem capazes de gerar a vida (liturgia batismal). O nosso Deus fez, então, sair a sua Palavra da sua boca (Sl 33,6) para criar a luz, dizendo: “Seja a luz!”: e a luz veio a existir. Olhou o Senhor nosso para a luz e viu nela o reflexo da sua bondade e a separou das trevas. `A  luz, o nosso Deus, deu o nome de dia e à treva deu o nome de noite. Nisso o  nosso Deus, Iahweh, manifestou o seu poder e revelou a sua glória (Ex 16, 6.12; cf. Dn 3,52-57). Primeiro dia.
À luz plena da revelação nos é dado ver como Deus já se anunciava e agia, na criação, segundo a sua natureza trinitária. Quando o Deus único se manifesta, sempre age pela Palavra e na potência do Espírito. Podemos também contemplar na luz, que Deus chama à existência como primeira das criaturas, o próprio Verbo encarnado, o Dia que o Pai, torna princípio de uma nova criação quando, “no primeiro dia da semana” (Mt 28,1; Mc 16,2; Lc 24,1; Jo 20,1.19), resplandece na luz da sua ressurreição. São João faz essa  exegese no   prólogo do seu Evangelho: “No princípio...o Verbo estava  com Deus. Tudo foi feito por meio dele... Nele estava a Vida e a Vida era a luz dos homens e a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a acolheram...E o Verbo se fez carne e habitou entre nós e nós vimos a sua Glória, como a Glória do Unigênito Deus, cheio de graça e de verdade”(Jo 1,1.2.4.14). Is 9,1, enquanto relacionado a Is 7,14, é a ponte entre o texto de Gn 1,1-3 e Jo 1,1-5.
Vemos, portanto, que um texto bíblico deve ser interpretado como texto: 1º) literário, considerando particularmente a sua origem; 2º) catequético, porque redigido como parênese litúrgico-sinagogal; 3º) profético, enquanto revela ao homem os mistérios e a vontade de Deus; 4º) cristológico, enquanto todo o seu sentido é explicitado somente à luz da Encarnação do Verbo.
 Se considerarmos o tempo da composição de Gn 1,1-5, não podemos deixar de notar que o seu vocabulário é tomado da apocalíptica, de forma que os termos luz e treva não deixam de ter uma conotação metafórica. Desde a criação existe, para Deus, uma incompatibilidade entre trevas e luz. Isto nos leva a pensar que Deus ama a luz, porque ele é luz. Ele é, também, Bondade que dá origem a tudo que é bom, em oposição à treva na qual tudo é um vazio só.

Gn 1,6-2,4.  A Criação

A Obra da criação é fruto de um único gesto do Criador (Gn 2, 4), que o Autor sagrado distribui em seis dias no intuito de inculcar no povo judaico o respeito ao sétimo dia, que deve ser consagrado ao Senhor em sinal de reconhecimento e adoração àquele que tudo criou para ser o reino do homem. Ao longo do culto sinagogal o hebreu era convidado a meditar sobre a grandeza do Senhor, contemplando tudo o que Deus criara, para descobrir na criação o reflexo da sua bondade e a manifestação da sua Glória. Em cada dia da semana o Autor sagrado nos leva a contemplar a Potência, a Sabedoria, a Bondade e a Beleza do Criador, apresentando os diferentes feitos dele na criação. A luz é o fruto do primeiro dia (Gn 1, 3-5), símbolo de Vida, em oposição ao nada das trevas em que é vista estar a terra.
            No segundo dia, Deus manifesta todo o seu poder ao separar as águas do céu das águas que estão na terra. O que separa as águas é a extensão assombrosa do firmamento capaz de incutir no homem a grandeza de Deus. Na sua infinita extensão, o céu manifesta a glória do Deus todo poderoso. É por isso, que no fim de cada dia volta o refrão "Eis uma tarde e eis uma manhã!", citação implícita de Ex 16,6.12 que, parafraseada, significa: Iahweh manifestou o seu Poder e revelou a sua Glória.
            Ao lembrar os feitos de Deus no terceiro dia, o hebreu celebrava o seu Senhor na liturgia sinagogal movido por sentimentos de grande alegria porque contemplava Iahweh ao criar os mares, permitindo que a terra aparecesse. A terra e os mares que a banham, além de serem clara manifestação da potência do Criador, são um esplendoroso reflexo da sua beleza. A vegetação da terra, as árvores frutíferas o são, também, com toda a exuberância e o prodígio da perpetuação das espécies. Também nisso tudo se manifesta o poder de Iahweh e se revela a sua Glória.
            No quarto dia o olho contemplativo do Autor sagrado se eleva para vislumbrar a extensão do céu que Deus povoa de estrelas. O firmamento é uma realidade tão familiar a todos os povos da terra que é ela que pauta os tempos da vida e da história do homem. O sol e a lua governam o dia e a noite e estabelecem para o homem os tempos de trabalhar e descansar e os dias das festas. Na luz que deles emana e das estrelas da noite está um claro reflexo da bondade do Criador e resplandece a sua Glória: "Viu neles o nosso Deus  o reflexo da sua bondade... E manifestou a sua Glória (1,17).
            No quinto dia Iahweh manifesta a sua Glória e o reflexo da sua bondade nas criaturas que têm vida e que povoam os mares. Entre elas devem ser consideradas criaturas de Deus também os monstros marinhos que, na imaginação do homem da antiguidade, povoavam os mares e eram considerados os deuses do mal, inimigos dos homens. Os seres vivos se multiplicam com a bênção de Deus, sinal peculiar da transcendência de um Criador vivo que dá à matéria, que Ele plasma (2, 19), uma alma vivente.
            No sexto dia, o gesto divino de dar vida produz seres vivos também sobre a terra: os animais da terra, os animais selvagens, as aves e os répteis que rastejam sobre a terra e os animais domésticos. Em todo e cada um deles está o reflexo da bondade de Deus e a manifestação da sua Glória. Mas é particularmente no homem que as prerrogativas divinas se manifestam porque, único entre todos os seres viventes, é capaz de reconhecer a ação de Deus na criação. De fato, embora em nada se distinga das outras criaturas quanto ao seu existir e ao processo de proliferação, delas se diferencia por um ato explícito da vontade de Deus que o criou à sua imagem e semelhança. A peculiaridade desta sua imagem e semelhança dá a Deus a condição de estabelecer o homem como rei sobre toda a criação.
            No sétimo dia, o homem é chamado a manifestar o seu reconhecimento ao Criador que o fez e o colocou na criação para dominar sobre ela. A contemplação admirada que provoca o júbilo da liturgia na louvação, deve ser a tarefa do homem no sétimo dia, tendo passado seis dias usufruindo da criação, que Deus, no seu amor, preparou para ele. O sétimo dia é um dia abençoado e santificado por Deus: quem o respeita, pela observância do descanso, santifica os seis dias da semana porque então ele é santificado e abençoado por Deus. O convite a santificar o dia do Senhor vai muito além da simples exortação ao preceito. Expressa a doutrina, de importância vital, da necessidade do homem preservar, na sua vida, a ordem da Criação. Isso tem o seu início no reconhecimento da soberania do Criador que o homem deve cultivar no dia que Deus reserva para si. Quando o homem se lança, ávido, sobre a criação e cultiva a idolatria das riquezas, ele está saindo dos parâmetros do Plano de Deus. Sobressai assim toda a importância do que é Revelação: é a comunicação que Deus faz de si ao homem para que nela o homem tenha vida e luz. No dia do Senhor o homem reconsidera tudo isso e é introduzido no conhecimento da sua real condição e do plano que Deus tem sobre ele: força grande, capaz de desvencilhá-lo da pequenez de suas visões, que o tornam escravo de seus instintos e paixões. Estas o levam a idolatrar insignificâncias que lhe ocultam as verdadeiras riquezas às quais Deus chama aquela criatura que Ele fez à sua imagem e semelhança para que delas participe.

            A importância que o hebreu deu à contemplação da criação para viver a primeira condição de harmonia do homem com o seu Criador é refletida no Sl 104 e, numa referência peculiar ao homem, no Sl 8, e nos momentos de diferentes salmos que relembram a criação. Ela sempre suscita a admiração dos atributos de Deus, da sua transcendência, do seu poder, da sua beleza, sabedoria e bondade. 

Gn 2,5-25 – O homem

A primeira página da Bíblia nos falou de Deus pela criação. A segunda página fala do homem. Em Gn 1,26-28, o Autor sagrado já sublinhava a condição de realeza à qual Deus destinava o homem. Agora o tema é desenvolvido. De início, o Autor sagrado reapresenta o quadro de Gn 1,1-2, para logo em seguida mostrar Deus agindo como um oleiro que plasma o homem do barro. Ao soprar nas narinas do boneco de terra, o homem chega a ser um entre os muitos seres vivos com os quais Deus povoou a terra (v. 19). Mas, eis que Deus dispensa uma atenção peculiar ao homem, até chamando-o a uma relação pessoal com ele, mediante a expressa ordem de não comer da árvore da ciência do bem e do mal. Caso o homem corresponda ao plano de Deus, haverá uma perfeita harmonia na criação. O jardim do Éden está aí para representar esse plano de Deus. É  o próprio Deus que o planta e dele fluem quatro rios, dirigidos para os quatro cantos da terra, para regá-la. Desde sempre foi intenção de Deus desenvolver no homem uma potencialidade que somente ele tem entre todas as criaturas viventes, aquela de ter consciência de ser criatura de Deus. Mediante o reconhecimento da sua condição de dependência, manifestada pela observância da ordem divina, o homem estaria permitindo a Deus de desenvolver o Plano que ele tem sobre o homem: o de comunicar ao homem a imortalidade, fazendo-o reinar com Ele para sempre. É o que expressa o simbolismo da árvore da vida. Do seu fruto, o homem sempre poderá comer. A única condição para ter acesso à árvore da vida é a obediência à Lei de Deus. Isto resulta claro pelo que é dito no fim de Gn 3: por causa da desobediência o homem está proibido de comer da árvore da vida e é destinado à terra de onde foi tirado.
Sempre a respeito do homem, a segunda página da Bíblia nos reserva um importantíssimo ensinamento quanto à relação entre o homem e a mulher. Ela não é meramente procriativa. O homem e a mulher são, antes de tudo, chamados a uma relação de mútuo auxílio. O homem e a mulher, criados à imagem e semelhança de Deus, são seres humanos dotados de qualificações que levam a definir o relacionamento entre si de ordem pessoal. Isto significa que, mantida a individualidade e a autonomia de cada um, é todavia possível uma relação que, devido a diferenciação, é complementar. A evidência da complementaridade está na necessidade do homem e da mulher se relacionarem sexualmente para poderem procriar. Mas esta não é a única forma de complementação. O homem e a mulher se complementam também nos sentimentos. Nessa dimensão são, em sentido pleno, auxílio mútuo. A dúplice complementação dá origem à sociedade familiar, valor extremamente enriquecedor para o homem e a mulher. Dessa forma, Deus revela ao homem o que deve ser a família: o encontro de dois seres que, pelas suas qualidades complementares, se tornam mútuo auxílio, numa entrega amorosa e incondicional, abertos à procriação de novos seres que, por sua vez, atuam completando uma vida familiar plena e a realização plena das potencialidades educativas dos cônjuges. Nesta condição, o equilíbrio é tão grande que não há sombra de desequilíbrios instintivos ou emocionais nem no homem, nem na mulher. De fato, Deus acabara de criar o homem num perfeito equilíbrio, embora embrional, de sabedoria. Aliás, na intenção de Deus, a família é chamada a ser figura da própria Vida Trinitária.
Em tudo isto manifesta-se a lei do desenvolvimento do homem. Ele só poderá crescer se aceitar a vontade de Deus na sua vida, renunciando a seguir seus instintos. A satisfação do instinto proporciona o prazer; a obediência a Deus proporciona a condição de crescimento. Enquanto o prazer  desordenado desestrutura o homem na sua relação com Deus, o cumprimento da vontade de Deus mantém a relação harmônica entre Deus e o homem proporcionando seu crescimento na linha dos verdadeiros valores. Quando o homem renuncia a um prazer instintivo, não querendo explorá-lo de forma predatória, desenvolve em si uma relação sempre mais profunda de criatura com o seu Criador, pela obediência. Isto lhe proporciona o prazer de servir a Deus com a sua vida e uma condição de virtude que dura para sempre.

            Gn 2,20-23
            v. 20 No habitat que Deus preparou para o homem não há um ser vivo que possa ser companheiro (yezer) que lhe corresponda (kenegdó).
            v.21 Deus, então toma uma das costelas de Adão.
            v.22 Da costela, Deus faz uma mulher.
            v.23 Adão reconhece que ela é osso dos seus ossos e carne da sua carne.
            A igualdade em natureza do homem e da mulher, em hebraico é expressa pela variação mínima entre ‘ele’ (’ish) e ‘ela’ (’ishah). O próprio português nos ajuda a entender! Ele– Ela. Em hebraico o i longo de ‘Ele’ vira i breve em ela. A final de ‘ela’ é unida à raiz da palavra simplesmente para indicar o feminino (-ah).
            A identidade dos dois é descrita e representada pela mesma carne da qual ambos são feitos. Para significar essa identidade Deus é visto tirar uma costela do homem para, dela, formar uma mulher. Que, de fato, não tenha sido dessa forma que tudo ocorreu o provamos pelo intuito etiológico da descrição.
            A mulher é a outra metade do homem não somente em sentido físico como também em sentido emocional. Ela é o auxílio do homem, a companheira da sua existência, e o recíproco é verdadeiro.
            Completada a análise do texto, o seu sentido torna-se ainda mais claro quando o lemos partindo do seu fim: Ela é a mesma carne d´ Ele porque ela foi tirada do homem, sendo que não havia ser vivo que pudesse ser companheiro dele entre os seres vivos da terra.

           Comentário (Gn 2, 23-25)
            Em Gn 2, 23-25 o autor ilustra nas suas prerrogativas a igualdade e dignidade já admitidas em Gn 1,26. A mulher é o único ser para o homem, e o recíproco é verdadeiro. Nela está o encanto peculiar que dá alegria ao coração do homem. A união física é a expressão da plena complementaridade. Essa, porém, se atua a nível pessoal. A expressão mais alta da mesma é a paternidade, que transforma a complementaridade em doação,  condição ainda mais alta de plena realização. As duas formas de realização continuam presentes na vida do casal e a relação física é o sinal da sua continuidade.
            É na relação amorosa interpessoal que se realizam as expectativas. A exasperação da procura do prazer sexual é desviante: realiza as aspirações instintivas de forma exacerbada. Enquanto procurada por si mesma,  é insuficiente para satisfazer o desejo de felicidade. Ao contrário, a pessoa homem ou mulher, com os seus valores complementares, satisfaz o companheiro. O convívio, então, é alegre.
            Contudo, essa não pode ser a aspiração última do homem,...que será deixado pelos filhos. O homem se realiza plenamente quando, dentro desse contexto, se relaciona com Deus, pela louvação suscitada pela contemplação das obras que realizou. A Escritura, de fato, em seguida, provará que o homem é chamado à vida em Deus. Qoélet viu que na lei da vaidade está a realização do homem (Ecl 9,9), mas não  sua realização plena. Jesus Cristo patenteou a natureza da última vocação do homem, abrindo o coração do homem a uma esperança que não será confundida. O cristão sabe que tudo o que Deus criou é bom, que ele foi chamado a usufruir dessa bondade e que, depois desta vida, Deus lhe reserva uma imortalidade gloriosa. Uma opção radical por esses valores últimos é capaz de absorver e sublimar as legítimas aspirações do homem quanto ao Matrimônio. A esse respeito existe uma analogia em relação à realização que se processa pelo encontro entre o homem e a mulher. Da mesma forma que o homem experimenta plena alegria diante da vibrante presença da amada, o religioso experimenta plena alegria diante das verdades que a piedade lhe permite viver, fazendo-o se comunicar com a Sabedoria de Deus. Contudo, essa experiência não está fechada em si; está aberta a uma doação de si que permite uma superação de si mesmo. O consagrado vive em função da edificação da Igreja, sabendo que esse compromisso começa nele mesmo. Quando, depois, numa conduta santa (Ts 1 e Cl 1), atua nos ministérios aos quais é chamado, ele vive a maternidade e a paternidade da virgindade 1Ts 1-2.
            Dessa forma, a radicalidade da opção resulta ser a solução do problema existencial. O seu trabalho não está sujeito às leis da vaidade. A caridade que ele produz permanece para sempre. 

Gn 3 - O pecado, a promessa e os castigos 

Estamos diante de mais uma aula catequética escrita para ser proclamada na liturgia sinagogal mas que o Autor sagrado utiliza em Gn 3 como peça que se soma ao até então por ele exposto para nos mostrar, dentro de uma moldura cronológica, em que condições estará se desenvolvendo o Plano de Deus sobre o homem. Tendo presente este detalhe, descobrimos que na mente do autor  que escrevia para o culto sinagogal, havia um intuito parenêtico, enquanto a escola que sistematizou tudo dentro de uma moldura cronológica visou, pelo mesmo texto, expor uma teologia. Esse segundo objetivo nos adverte, de forma mais clara, de que estamos diante de uma revelação que Deus está atuando em favor do homem para salvá-lo. De fato não se trata de um mero texto litúrgico, fruto da piedade judaica, mas de um texto inspirado que quer iluminar o homem sobre questões de extrema importância e valor,  que lhe dizem respeito. Embora o questionamento mais imediato respondido por Gn 3 seja: "Por que o mal no mundo?”, a reflexão sapiencial da escola teológica que vinha compilando o seu manual teológico,  se preocupou, antes de tudo, nos capítulos 1 e 2, de apresentar a revelação que Deus faz de si por meio da criação, porque ela é até mais importante do que a própria revelação do porquê do mal no mundo. O fez também porque achava que seria uma premissa necessária ao tema de Gn 3. Deus é o autor da criação, incluído o próprio homem, de modo que o homem, por este conhecimento, pode perfeitamente saber qual deve ser a sua conduta: professar em cada ato seu o reconhecimento da sua dependência do Criador. Depois desta premissa, vem a revelação de Gn 3: o homem conheceu o mal, os males e a morte por causa da sua rebeldia ao Criador. É uma revelação divina que permite ao homem, de qualquer geração, deduzir que desde o começo foi assim. Mas o Autor sagrado a argumenta fundamentando-se na realidade do seu tempo (Ez 36,16-36). A Mulher pode ser muito bem Israel que Deus escolheu para si e desposou, mas que na sua extrema ingratidão traiu o seu Deus prestando culto aos ídolos crendo que eles lhe davam o pão, a água o óleo e o vinho (Os 2,7). Na Serpente, figura que em si resume todos os ídolos dos pagãos, foi a Mulher buscar aquilo que pensava poder alcançar sem o seu Deus, aliás desconfiada, pela insinuação do Mal que a espreitava (Gn 4,7), de que o seu Deus não lho dava, porque temeroso que pudesse ter no homem um rival. Nos ídolos procurou Israel a imortalidade e a sabedoria à semelhança dos povos pagãos que acreditavam ser a serpente a divindade capaz de dar aos homens esses dons. Qual foi então a primeira culpa que arruinou a vida do homem? A sua história o revela: a pretensão de conduzir a sua vida sem Deus (Is 14,14; Ez 28,2.6), com a agravante de criar para si deuses que seriam capazes de lhe dar o que Deus se omitiria em conceder. Consequência desse pecado: o despojamento de toda a riqueza gratuitamente recebida. Ela lhe foi retirada porque, por opção sua, o homem se afastou de Deus. Além do despojamento dos privilégios, o homem recebeu os castigos dos quais o próprio Deus o achou merecedor. Por ter o homem renunciado a reinar com Deus... a criação não será mais sujeita ao homem. Por ter o homem cedido à tentação da ambição desmedida...o desequilíbrio das concupiscências se manifestará nele. Por ter-se se afastado da Vida para confiar no que não existe...o homem  conhecerá a morte! Acerca desse momento triste da história do homem, a Revelação tem algo ainda mais profundo para dizer ao homem, mas desta vez extremamente consolador: não obstante o fato de que Deus veja toda a gravidade da culpa do homem, fiel ao seu Plano, porque sua natureza é a Bondade que sempre age no amor, ele restaurará o homem na condição original, em virtude de um descendente da própria Mulher. Adão adverte a importância da promessa e se rejubila. A Mulher chamar-se-á Eva!, isto é, “Mãe de toda a vida”. A promessa realizar-se-á em Jesus. Gerado por Deus e Princípio do seu Caminho, na condição de verdadeira Sabedoria, voltará a dar de “comer da árvore da vida” (Ap 2,7). Desta vez, todavia, o homem terá que vencer, na força do Espírito do Senhor das Igrejas, o “Dragão, a antiga Serpente, o chamado Diabo ou Satanás, sedutor de toda a terra habitada” (Ap 12,9). A Revelação contida em Gn 3 nos leva ao conhecimento do porque da  miséria do homem e da esperança que Deus proclamou desde o início da humanidade: de que tudo seria restaurado. A leitura teológica, à luz da Revelação plena, nos faz ver como é possível uma regeneração nossa pela salvação de Cristo: em virtude da sua vitória sobre o Mal, em virtude daquele que é a descendência da Mulher, podemos nos libertar da escravidão do pecado e da treva em que o desencadeamento das paixões nos lançou, e voltar a aspirar aos verdadeiros valores que desde sempre Deus propôs ao homem. São os valores que, únicos, nos tornam perfeitos, nos proporcionam a  imortalidade e nos levam à glorificação.

Texto
Narrativa didático-sapiencial. De forma astuta, a Serpente se introduz no diálogo com a mulher. A pergunta diz respeito à ordem de Deus dada ao homem: não comas da árvore ao centro do Éden. A tentação visa tornar deuses, conhecedores do bem e do mal (v.5). Ela e ele seguem a tentação, esquecidos do Criador (v.6). Logo aparece a concupiscência da carne, sinal de desordem (v.7). O diálogo com Deus reprisa cada momento da desobediência. A serpente é castigada: a condição natural da serpente é assumida como sinal de castigo. A redenção é profetizada: “Ódio levantarei entre a Mulher e a Serpente em virtude da Descendência dela, ferida no calcanhar. O castigo da mulher: dores do parto e atração ao homem: condições naturais utilizadas para tipificar um castigo. O castigo do homem: terra maldita, morte. O homem chama a ‘ela’ de Eva: aquela da qual a vida tem sua origem. O autor caracteriza a sua narrativa com o detalhe da roupa que Deus confecciona com o deboche: “Se tornou um de nós”. O verdadeiro castigo: o homem ficará sem condições de comer da árvore da vida. Um querubim com espada de fogo guarda o caminho da árvore da vida.
Gn 3,15. É a expressão de uma esperança de um povo de fé que, pela reflexão sapiencial de um redator final, foi, primeiro, capaz de intuir a condição original da humanidade e que, em segundo lugar, utilizando a reflexão de um sábio sobre a história de Israel, viu que toda a humanidade conheceria um redentor que Deus suscitaria dentro dos seus membros. Mas, como explicar a redenção, se toda a humanidade dela está necessitada? O mistério é desvendado com a ressurreição de Jesus que revela a sua condição divina. Ele é o Filho do Homem, levado à perfeição pelo sofrimento, em tudo igual a nós, exceto o pecado, que, realizada a purificação dos pecados, entrou no Céu como Sumo sacerdote e intercede por nós. Pela carne da vítima da sua imolação participamos do seu sacrifício, uma vez que fomos santificados pelo Batismo.

Gn 4 - Caim e Abel

            O quadro está ligado a Adão e Eva, no Éden, porque é lá que Deus pronuncia uma promessa, a da Descendência que ele vai suscitar para esmagar o Maligno. Quando Eva concebe Caim diz que o recebeu de Deus. Abel também é parte dessa dádiva de Deus; verdade que se torna evidente quando Eva concebe Set: “Deus me deu outro filho em substituição de Abel que Caim matou”. Abel é a descendência que Deus suscita, como o mostra a aceitação do sacrifício que ele oferece. Caim não é a descendência porque o seu sacrifício não foi aceito. A opção é livre, no que se refere a Deus, e não faz acepção porque o que entende realizar, por parte daquele que escolhe, é em benefício em favor de todos os homens (Rm 9-11). Fundamentados nessas intuições, Abel é lembrado em 1Jo 3,12 e em Hb 11 como modelo de fé. De fato resulta que a sua oferta foi agradável a Deus e que, por isso, nele estava o testemunho de quem esperava a recompensa do Deus que procurava com o seu culto. João, na sua 1a Carta, pelo contrario, afirma que as obras de Caim eram más. Nele não estava  o testemunho da esperança, tanto é verdade que se deixou vencer pela tentação. Há na figura de Caim, traços que o ligam a Adão e o tornam o elo da descendência humana que precisa de redenção, o que explicaria o motivo da recusa de Deus, e é a sua profissão: cultiva a terra da qual tira os dons que quer oferecer a Deus. Os dons lembram o homem que não agrada a Deus porque não foi obediente. Como poderia ser o seu sacrifício aceito antes que se realizasse a sua redenção? Essa reflexão torna Abel uma clara figura de Cristo o irmão morto pelo irmão, que resulta ser o Redentor em virtude do seu sangue; um sangue que clama justiça diante de Deus; um sangue pelo qual Deus considera purificada a humanidade uma vez que Aquele que a figura anunciava aceitou de forma consciente a “vergonha que os seus irmãos lhe infligiram” (Hb 12,2-3).

            Começa a dolorosa história da humanidade que vai sendo apresentada por meio de pequenos quadros.
            Eva constata que Deus não retirou dela a benção da fecundidade. No filho que ela gera, ao mesmo tempo, reconhece a dignidade de Deus. Gn 4,1 está em paralelo com Gn 5,1: “...a semelhança do seu Senhor o fez”. Por sua vez Gn 5,1 se relaciona a Gn 1,26-28. A dinâmica da relação está em Gn 2,7-25.
            Reflexão
            A atitude que o autor sagrado atribui a Eva nos esclarece acerca da Descendência que Deus quer que se realize quando torna fecundas as mulheres estéreis dos patriarcas. Trata-se de uma forma idiomática para indicar que o que Deus estabeleceu sempre se realizará em virtude do seu poder, nunca por aquilo que o homem pode fazer. Ele é chamado a cooperar, mas aquele que realiza é sempre Deus. Isto é ressaltado pela doutrina apostólica ao recordar a concepção virginal de Jesus no seio de Maria. Ela é impossível à inteligência humana, possível para aquele que tudo pode, como lembra Gabriel, e o sinal é exatamente a realização da inexplicável profecia de Is 7,14. Mt 1,18 anuncia, de forma inequívoca que a concepção de Jesus ocorre em Maria, “desposada a José” que se torna grávida por obra do Espírito Santo. Lc 1,26-38 ilustra o mistério com o quadro da anunciação.

            Pela segunda vez o homem estraga o Plano de Deus. Caim desobedece à voz de Deus e, levado pela ira, mata o seu irmão. Nesse caso vemos como Deus, em Gn 4,7, explica como evitar o pecado: “Por acaso não acontece que se fazes o bem é estar de cabeça alta, mas quando não fazes o bem à porta o mal espreita e sobre ti está o seu ímpeto; e tu o dominarás?”
            A  recusa da oferta de Caim sublinha a condição que se criou com a desobediência de Adão. O Sl 50 ajuda a entender a atitude de Deus.
O quadro da morte de Abel retrata a condição do homem que não sabe resistir à tentação. Aflora de novo o homem limitado, que se revela, mais uma vez,  insensato, enquanto, sempre mais se afasta de Deus. Vai se delineando o caminho da degeneração do homem. A índole humana está sendo desvendada e são descritos os casos em que vai caindo: soberba, ira, inveja, falsidade, homicídios, insolência, violências...
            O homem se inclina mais ao aliciamento daquilo que o solicita da forma mais imediata do que à lógica da razão, não obstante que esta seja promovida por Deus.
            A narrativa se espelha na experiência de muitos homicídios, violências, falsidades assistidos pelo Autor sagrado no meio do seu povo (v.8).
            A atitude de arrependimento é determinante porque começa a desvendar de que forma Deus se comporta com o homem, não obstante os seus crimes (v.13).
            Deus acolhe a súplica do pecador arrependido, embora não retire o castigo corretivo (v.14),
            Porque Deus defende a vida. Essa é a marca que Deus colocou em cada homem.
            O Éden, para Caim, como o foi para Adão e Eva, torna-se uma realidade futura, significada pela posição da qual olham para ela. Lemos em Ap 2,7 que o Senhor das Igrejas a concede a quem o ouvir.
            No fim do capítulo é lembrada a Descendência que Deus suscita em favor de Eva, sinal claro da Misericórdia de Deus para com o homem.

A Revelação entrelaça duas linhas teológicas nesta parênese litúrgica que quer levar os fiéis ao conhecimento das terríveis consequências do pecado, enquanto ilustra a progressiva degeneração do homem por causa dele. A linha didática quer tratar o tema do homicídio. A linha cronológica associa o tema do homicídio ao que se seguiu à desobediência de Adão e Eva. O homem, fragilizado, entrou num caminho de progressiva degradação moral que, nesta narração, se manifesta pela ira incontrolável e pela violência homicida de Caim. Em seguida se manifestará na poligamia de Lamec, na sua arbitrariedade e na prostituição de Noema, filha da segunda mulher de Lamec. É essa moldura cronológica que explica a apresentação da rejeição, por parte de Deus, das ofertas de Caim. Deus rejeita a oferenda de Caim porque é uma oferenda da descendência pecadora da qual Deus se desgostou por causa da desobediência e puniu, amaldiçoando o solo (3,17), condenando o homem a cultivar o solo no suor (v.19) e tornando o solo sinal do castigo e lugar para onde volta quem desobedeceu (v.19). Deus aceita somente o culto de uma geração nova que ele suscita e da qual ele vê que nascerá Aquele que pela obediência até a morte tornará o seu sacrifício agradável ao Senhor. Nesse sentido, numa visão teológica, Abel é clara figura de Cristo que oferece o único sacrifício do qual o Pai se agrada. Esse episódio do Gn resulta ser, assim, um texto profético que já anuncia como a Descendência da Mulher (3,15) esmagará a cabeça: pela sua morte, que os próprios irmãos que ele veio salvar, lhe infligirão.
Didaticamente, o tema do pecado de Caim quer ser, simplesmente, uma segunda forma pela qual o Hagiógrafo ilustra de que forma o homem se desvia de Deus. Não obstante o conhecimento que ele tem da vontade de Deus e da gravidade do crime que ele está para perpetrar, o homem é facilmente vencido pelas paixões. O contexto social oferece ao Hagiógrafo a constatação de que o homicídio é tão difundido quanto a idolatria. Diante dos dois casos, o do pecado de Eva e Adão e o do pecado de Caim, podemos definir que o pecado original do qual recebemos a remissão pelo Batismo, é uma condição de degeneração na qual o homem, todo homem, acaba caindo, devido a sua extrema fragilidade moral e que, em virtude do princípio de solidariedade, é transmitida, não como culpa pessoal e sim, como condição fragilizada para cair em pecado. Quando Cristo atua a Redenção, a humanidade está “toda posta no pecado” (1Jo 5,19). A graça do Batismo é a divinização do homem que se antecipa à queda do homem, dando-lhe plena condição de obediência à vontade de Deus. Dá-lhe, também, a possibilidade de recuperar a condição original, uma segunda vez, em vista dos méritos de Cristo, pela graça do sacramento da Penitência. Deixado a si mesmo,  o homem não tem nenhuma condição de recuperação, até pelo fato de que não está em condições de reparar o crime cometido. Como corolário ao tema do homicídio, o Hagiógrafo trata da proibição de Deus de fazer justiça com as próprias mãos. É Deus, único, que conhece os caminhos do castigo e da salvação do homem. A Ele deve ser entregue toda a justiça.
Com a apresentação da descendência de Caim o Hagiógrafo volta ao esquema cronológico da teologia sobre o homem. Caim é aquele que representa a continuidade da estirpe humana que vive afastada de Deus: ela vai atuando a realização das suas ambições sem invocar o Nome do Senhor, ela sendo senhora da sua história, dando o nome às cidades que vai construindo (Caim), desenvolvendo as artes (Jubal) e as técnicas (Tubalcaim). O Hagiógrafo anota que a descendência dos homens sem Deus conhece a poligamia, a violência, a prostituição. Em contrapartida, imediatamente, o Hagiógrafo lembra que existe uma descendência que continua a invocar o nome do Senhor da forma que Adão e Eva sempre fizeram (no nascimento de Caim e de Set). Enós é tipificado como aquele que invoca o Nome do Senhor simplesmente porque é a antítese de Caim. 

Gn 5 – Hino à Descendência 

Depois de ter acompanhado  a linhagem da geração pecadora, ilustrando toda a desgraça que o homem provocou com a sua rebeldia ao Criador, o Autor sagrado quer tratar agora da descendência da Mulher que levará a termo o plano da salvação que Deus anunciou no próprio momento em que constatava que o Mal tinha prevalecido sobre o homem. Em primeiro lugar, para Deus, o plano originário não poderia fracassar. Em segundo lugar, pela sua ação, provaria que ninguém é maior do que o verdadeiro Deus. Em terceiro lugar, a realização do seu plano de salvação manifestaria plenamente todo o seu amor para com o homem. Já no fim de Gn 4, o Autor sagrado lembra que se houve uma descendência para Caim houve, também, uma descendência para Set, "que Deus dera à mulher de Adão como descendência, depois e abaixo de Abel, porque Caim a este matara", sendo que, segundo essa descendência fosse garantida a invocação do Nome de Iahweh, enquanto Caim só se preocupava em proclamar o nome da sua descendência (4,17).
A introdução é solene: "Eis o livro da descendência de Adão". Qual descendência? Aquela que Deus abençoou porque era aquela que ele suscitava, a que em vão o mal tentaria destruir, da forma que tentou com Abel que Caim matou. Essa descendência culmina no nome do salvador da humanidade: Noé.
Torna-se desnecessário alertar de que estamos diante de um texto profético que à luz da sua plena realização (em Jesus Cristo) nos diz que Noé era figura de Cristo que dá origem à nova humanidade por si merecedora da destruição do dilúvio.
O Autor dispensa todo um cuidado ao estabelecer a continuidade da dignidade do homem na sua descendência: todo homem que descende de homem conserva em si a imagem que Deus plasmou no primeiro homem para que fosse sua semelhança. O último homem da descendência humana mantém em si a dignidade do homem que Deus criou por primeiro.
Sobre os membros da  geração pela qual se perpetua a presença salvadora, Deus efunde a sua bênção. É uma tríplice benção expressa através de uma simbologia de números que o ouvinte da assembleia litúrgica sinagogal entendia perfeitamente. É a benção de Deus para que o membro da linhagem dos filhos de Deus seja fecundo, tenha muitos filhos e uma longa vida. É importante notar que em hebraico os números são redigidos a partir do menor para chegar ao maior: com isso o autor sagrado consegue expressar melhor a simbologia dos números que ele utiliza. A maneira mais fácil para nos introduzir na interpretação dos números utilizados é aquela de partir dos mais óbvios no seu simbolismo. Temos então, em primeiro lugar, dez gerações. O número dez é um número indefinido que está a indicar que Deus constituiu uma descendência de homens, que invocam o nome do Senhor, que durará para sempre. Henoc é o sétimo da linhagem. Sobre este patriarca que está ocupando a sétima posição, que indica plenitude, Deus faz descer uma plenitude de bênçãos: a duração da sua vida é a de um ano solar, mas que é ao mesmo tempo a soma de dois números plenos e que se referem à divindade e que como um todo se refere ao homem [(5x60)+300= 600)].
Sobre o homem Henoc, que está diante de Deus na sétima posição da linhagem da descendência por Ele abençoada, Deus faz descer a plenitude da sua bênção quanto à duração da sua vida. A benção quanto à fecundidade, também é plena porque Henoc gera Matusalém quando tem cinco e sessenta anos (números que devem ser lidos no sentido simbólico acima indicado: na plenitude da sua virilidade, Henoc gerou Matusalém, com a plena benção de Deus). A segunda benção, que é aquela sobre a prole, é ela também plena. Trezentos anos não significam o tempo ao longo do qual Henoc gerou filhos e filhas, e sim, que Deus o abençoou, quanto ao número dos filhos, com a plenitude da sua bênção.
Tendo presente o simbolismo da tríplice bênção sobre Henoc é fácil ver que os setecentos e setenta e sete  anos ( em hebraico temos: sete, setenta, setecentos) de Lamec, é um número que expressa, simbolicamente, a mesma bênção sobre a vida com que Deus abençoou Henoc. Isto porque o número sete (que significa plenitude) é repetido três vezes. É sobre este número final, o da bênção sobre a vida, que o Autor sagrado constrói os números que simbolizam respectivamente a bênção sobre a fecundidade e sobre a prole. Estamos sempre diante de um número que indica plenitude: "Eis Lamec com cento e oitenta e  dois anos ( dois, oitenta, cem), quando gerou um filho". O que significa: na plenitude da sua virilidade, Lamec teve o seu descendente, com a bênção de Deus. Isto porque oito, oitenta significam a perfeição da plenitude: (7+1)x2. É evidente que este número foi construído de forma que a diferença entre o número dos anos da vida e o número da bênção sobre a fecundidade resulte num número que expresse a bênção sobre a prole: "Eis que Lamec, depois de ter gerado a Noé, viveu quinhentos e noventa e cinco anos (cinco, noventa, quinhentos)”: por cinco vezes três vezes trinta, Deus abençoou a Lamec para que fosse fecundo em filhos e filhas ao longo do número pleno de gerações que Deus lhe concedeu de viver na fecundidade.
Dessa ilustração resulta que o Autor sagrado quis compor um discurso parenético para celebrar a bênção de Deus sobre os Patriarcas. A assembleia reconhecia na variação dos números a repetição da mesma benção, todavia manifestada sem a monotonia de palavras idênticas em todas as trinta bênçãos proclamadas (número simbólico para dizer que a bênção sobre os Patriarcas foi uma benção divina). 

Gn 6  - O DILÚVIO (I)

Ao longo da historia do homem delineiam-se duas descendências: a de Caim e a de Set. A descendência de Caim caracteriza-se pela progressiva degradação moral e representa o homem da terra completamente voltado para as coisas da terra. A descendência de Set caracteriza-se pelo culto que vai se perpetuando, sobretudo pelos Patriarcas, que representam os homens que, ao longo das gerações, Deus sempre suscita no intuito de realizar o seu Plano, anunciado em Gênesis 3,15.  Acontece que também os que são da descendência da estirpe que Deus suscita, acabam se corrompendo (Sl 72/73, 10-15), cometendo sempre o mesmo erro, o da idolatria, simbolizado pelos ritos da prostituição sagrada, à qual eram induzidos os hebreus pelas esposas que escolhiam entre os povos pagãos (Nm 25,7-11). Mais uma vez, o Hagiógrafo, através da tipificação dos costumes do seu povo, traça o quadro geral da degradação moral de toda a humanidade. Os homens, indistintamente, não obstante a vontade salvífica de Deus, abandonam a Deus e procuram, em falsos deuses, a realização das suas ambições desmedidas. O único efeito dessa atitude impensada é o desencadeamento das paixões, o materialismo e o hedonismo, a ponto de Deus declarar-se arrependido de ter criado o homem e de ser o homem merecedor, por si, de total destruição: ele "é só carne" (6,3), o seu coração tem pensamentos maus desde a sua infância (6,5) e, numa tipificação daquilo que acontece em Israel, e levado a paradigma daquilo que acontece em todos os povos, "a Terra se perverteu diante de Deus e encheu-se de violência. Deus viu a Terra: estava pervertida, porque toda carne tinha conduta perversa sobre a Terra (6,11: vê Jr. 22,29). O único que encontra graça aos olhos de Deus é exatamente o último descendente da estirpe dos Patriarcas, símbolo, portanto, do último descendente que Deus suscitará para salvar a humanidade: Jesus, nascido de Mulher (Gl 4,4). A essa altura é mais do que clara a gratuidade da salvação que Deus oferece ao homem. É especificada também a forma pela qual a Descendência que Deus suscita, obtém a salvação":  Noé assim fez, tudo que Deus lhe ordenara ele o fez (6,22; 7,5.9.16): é pela obediência, atitude constitutiva da criatura, numa relação de correta dependência do Criador, que a ordem é mantida no universo, da forma que o indica a narração da criação do homem, do reino vegetal e animal de Gn 2. Jesus é Aquele que re-estabelece essa ordem, simbolizada pelo quadro de Mc 1,13 e pela profecia de Jesus ao enviar os Apóstolos no mundo: "Estes são os sinais que acompanharão os que tiverem crido: em meu Nome expulsarão demônios, falarão novas línguas, pegarão em serpentes, e, se beberem algum veneno, nada sofrerão" (Mc 16,17). A harmonia, que a descendência, que encontra graça diante dos olhos de Deus, re-estabelece, figura da Descendência nascida da Mulher  "que achou graça diante de Deus", é evidentemente simbolizada pela Arca que acolhe todos os animais da terra, para os quais Noé providencia o alimento, da mesma forma com que Iahweh Elohim tinha providenciado alimentos para o homem e todos os animais da terra, no fim da criação (Gn 1,29s).   

Gn 7  - O DILÚVIO (II)

Deus salva o justo da morte. Esse é o simbolismo da ordem que Noé recebe de Deus para entrar na Arca. Enquanto Noé é figura de Cristo, ele é apresentado como causa da salvação de toda a sua casa. A ordem que Deus dá a Noé de introduzir animais puros em número de sete casais de cada espécie e animais impuros em número de dois para cada espécie, aponta para um evidente conto didático dirigido a ouvintes acostumados a estas distinções porque conheciam as leis do templo referentes aos sacrifícios de animais, regras que certamente qualquer patriarca da era de Noé desconhecia. Os ouvintes captavam também a significação do número sete atribuída aos animais puros (plenitude) e do número dois atribuído aos animais impuros (imperfeição). O gênero literário desse conto didático resulta também de uma arca que estaria repleta de casais de tudo quanto é espécie de ave. Do quadro apresentado brota, todavia, um grande ensinamento: a sorte da natureza está intimamente ligada à sorte do homem; o mundo tem sentido enquanto é o reino no qual Deus coloca o homem para servi-lo. Outro grande ensinamento nos é dado quando Deus declara que, passados sete dias, uma vez garantida a salvação do justo e como ele o seu reino, vai destruir pelas águas do dilúvio todo ser que está de pé sobre a face da terra. Ele espera "sete dias", isto é o tempo pleno que ele concede ao homem para que nenhuma injustiça ele cometa ao castigá-lo. O castigo da morte eterna só cairá sobre o homem quando ele tiver preenchido toda a medida da sua culpa (Gn 15,16).
A simbologia numérica é amplamente utilizada nesta narrativa. Por quarenta dias e quarenta noites chove sobre a terra, isto é, pelo tempo necessário, indefinido, até que a destruição e a morte sejam completadas. É o mesmo sentido de: "A enchente sobre a terra durou cento e cinquenta dias" (7,24). Quarenta é um múltiplo do número indefinido dez. O multiplicador, quatro, diz respeito a terra, ao homem. Cinqüenta é múltiplo de dez; seu multiplicador, cinco, reflete a ação, nesse caso de Deus, em castigar a terra até que o castigo seja completo. Cento e cinquenta tem o número três como múltiplo de cinqüenta e indica uma ação divina executada de forma plena. A simbologia numérica está também na idade de Noé e na data do início do dilúvio: "No ano seiscentos da vida de Noé, no segundo mês, no décimo sétimo dia do segundo mês, nesse dia jorraram todas as fontes..." (7,11). O número seis diz respeito ao homem, criado no sexto dia. O castigo veio exatamente visando o homem; foi uma coisa negativa, como o indica o número dois, sinal de imperfeição em relação ao número três que diz respeito a Deus. Qual a simbologia do dia dezessete? Poderia até ter significação específica, de fato está relacionado ao décimo sétimo dia da data do fim do Dilúvio: resulta com isso que o castigo durou exatamente cinco meses, o mesmo simbolismo numérico de cento e cinqüenta dias. A data do início do Dilúvio está relacionada à data  que define quando "as águas secaram" (8,13): o ano seiscentos e um. É o início da sétima era, algo que diz respeito a uma plenitude que Deus vai realizar. O primeiro mês é um mês acompanhado por um número perfeito, enquanto o dilúvio iniciou num mês de número imperfeito. O primeiro dia é um início absoluto. Quando, logo em seguida, o autor sagrado diz: "No segundo mês, no vigésimo sétimo dia do mês, a terra estava seca" (8,14), está confirmando o anúncio positivo do v. 13, porque está indicando que a salvação de Deus veio rapidamente: foi antes do terceiro mês. O sentido de tudo isso é explicado por Os. 6,2.
Enfática é a forma com que o autor sagrado apresenta a ação das águas sobre a terra para transmitir a clara impressão do irremediável estrago e morte que elas produziram. Mais uma vez aparece um número: "As águas subiram quinze côvados mais alto, cobrindo as montanhas" (7,20): é um múltiplo de cinco, tendo três como multiplicador: indica que nenhuma chance de vida restava a qualquer ser vivente de sobreviver diante da ação divina que castigava o mundo com as águas do dilúvio até que todo ser vivo desaparecesse da face da terra. "Ficou somente Noé e os que estavam com ele na arca": esta frase estabelece uma inclusão relativa a Gn 7,1: "Entra na arca tu e toda a tua família", indicando dessa forma o início e o fim da narrativa de Gn 7. 

Gn 8,1- 9,17 -  O DILÚVIO (III)
Ao encontrarmos a figura do vento que sopra sobre as águas, no início dessa narrativa (v.1), não é difícil associar o quadro do fim do dilúvio com o quadro da criação de Gn 1, aonde vemos o vento (a Ruah), o Espírito do Senhor, pairar sobre as águas para que gerem a vida. Conseqüentemente advertimos que estamos diante de um gesto criador de Deus, ainda mais que Deus emite uma ordem que faz com que da arca saiam os homens e os animais com a finalidade de povoar a terra e de se multiplicar (v. 15-17). Ao retomar o conceito da criação, o Autor sagrado o especifica no que se refere ao homem que agora tem um ancestral bem definido, Noé, do qual dependem todas as raças da terra encabeçadas pelos seus três filhos, Sem, Cam, Jafet. Com essa especificação resulta que Noé é figura de Cristo como Princípio de toda a humanidade que nele, justo, íntegro e obediente encontra a origem de uma nova vida. A relação de Noé com Jesus Cristo é completada pelo quadro do sacrifício que o patriarca oferece logo que sai da arca e com o qual Deus se agrada. É exatamente em virtude desse sacrifício que Deus propõe uma aliança eterna, comprometendo-se a nunca mais amaldiçoar a terra por causa do homem. Mas isso só acontece quando Cristo Jesus oferece o seu sacrifício na Cruz. A aliança de Deus com Noé inclui, também, a benção sobre toda a criação, indicando que ela está diretamente associada ao destino do homem, como aliás o profeta Oséias sublinha quando fala do fim do castigo que Deus infligiu a Israel (Os 2,18-23).
Por todos os paralelismos que a figura de Noé tem com Jesus, o seu realizador, resulta que a origem verdadeira da humanidade está no homem Cristo Jesus enquanto sai vitorioso das águas da morte e, em virtude do seu Sacrifício se torna ele mesmo o sinal de reconciliação e o princípio de eterna regeneração para os homens. Conseqüentemente é em Cristo Jesus que se realiza, também, a figura do Arco na Nuvem (vv. 13-17). Jesus, com a sua ressurreição, para sempre, lembra ao Pai que o homem, embora "só carne"(6,3), embora seja "continuamente mau todo desígnio do seu coração" (6,5), "porque é mau o pensamento do homem desde a sua infância"(8,21), tem na sua humanidade glorificada o princípio da sua regeneração. É interessante notar que São Mateus define Cristo ressuscitado como um relâmpago (M t 28,3) que sai do oriente e vai até o ocidente(24, 27), no contexto do dilúvio (24,38s).
A figura do Arco-íris relacionada a Cristo ressuscitado, por sua vez, se torna uma vívida representação da Trindade santa. Cristo Jesus é o Arco-íris que se distingue, como realidade, da nuvem, mas que tem em comum com a nuvem as gotículas nas quais a luz sofre uma refração. A luz é o Pai que, ao refletir-se na Nuvem que é o Espírito, se manifesta, na sua natureza, pelo Arco-íris que é Cristo.
A leitura teológica dessa página eminentemente profética nos proporciona, portanto, uma clara interpretação de Jesus Cristo à luz do Antigo Testamento. Aquilo que é implícito nas narrativas do Evangelho está amplamente explicitado nas figuras do Antigo Testamento que se relacionam a Jesus Cristo. "Não ardia o nosso coração enquanto nos explicava as Escrituras?" perguntavam-se os discípulos de Emaús diante de Cristo ressuscitado que a partir de Moisés lhes falava de tudo o que no Antigo Testamento lhe dizia respeito. A figura de Noé, as águas indômitas do dilúvio, o Arco na Nuvem certamente foram a eles comentados por Cristo ressuscitado.

Gn 9,18-10,32 - A nova criação 

O Dilúvio marca uma passagem importante na História da Salvação porque, quando ele termina, revela ser a figura das águas indômitas sobre as quais o Espírito paira para gerar a vida. Estamos, portanto, diante de uma recapitulação da criação com, agora, a variante de um mediador específico entre a criação e Deus, Noé, que é o último elo da Descendência que Deus suscita na história do homem para levar a termo o seu plano. A arca parece ser o ovo da criação que bóia sobre as águas e que Deus rompe com a sua ordem, para que dele saiam todos os seres. Em primeiro lugar sai Noé com sua esposa e os filhos de Noé com suas esposas. Depois saem todos os outros seres vivos. Terminados de sair, Nóe oferece um sacrifício ao Senhor. Vemos em tudo isso uma clara figura de Cristo, o último verdadeiro elo da Descendência que, oferecendo o seu sacrifício sobre o altar da Cruz estabelece uma condição definitiva de salvação para os homens, os quais, embora sendo de coração perverso desde a sua infância, nunca mais serão destruídos da face da terra.
Com o quadro de Noé que oferece o seu sacrifício e Deus que sela a sua aliança com os homens e toda a criação, fica claro o quadro do Plano de Deus. Ao criar o homem sabe das suas condições de fragilidade. Por isso, desde o início suscita uma Descendência, condição de salvação da humanidade. O homem que, por si, deveria ser varrido da face da terra, pode levar em frente a sua história de vaidade, de rebeldia de morte de sofrimento e de dor, porque Deus olha para o Justo que encontrou graça aos seus olhos. A teologia de Gn 1-9 contempla a criação, o pecado e o plano da salvação. Ensina a não viver segundo o mundo e sim, a nos unirmos àquele que, na piedade, oferece o seu sacrifício de louvor. Quando virá novamente sobre a Nuvem, então nos reconhecerá diante do seu Pai.
O episódio da embriaguez de Noé (9,20-27) serve para estabelecer a superioridade da descendência de Sem. Embora se diga de Jafet que se dilata (10,27), diz-se de Jafet que habitará debaixo das tendas de Sem e diz-se que Canaã servirá a ambos os seus irmãos. A prerrogativa de Sem só se justifica através de uma interpretação profética do texto. De fato, Jafet terá que habitar nas tendas de Sem porque é dessa raça que virá Cristo Jesus. A condição de inferioridade à qual é relegado Canaã visa excluir, não toda a descendência de Cam, e sim, os canaanitas, dos quais, os hebreus tomaram a terra: eles são vistos como inimigos, símbolo de todos os povos idólatras, e para eles se deseja a condição de derrotados e escravizados, sobretudo por parte dos hebreus, descendentes de Sem.
O quadro dos clãs espalhados sobre toda a terra quer transmitir uma idéia da diversificação dos povos, mantida, todavia, a identidade da origem: todos eles descendem dos três filhos de Noé, o qual é o único ancestral: "Esses foram os clãs dos descendentes de Noé, segundo suas linhagens e segundo suas nações" (10,32). O sentido pleno desses textos é obtido quando se vê em Noé a figura de Cristo. Por sua vez, Jesus Cristo não é simplesmente o último elemento cronológico da Descendência profetizada e suscitada desde a queda de Adão e Eva, ele é, pelo contrário,  o verdadeiro Cabeça da humanidade à qual ele dá origem segundo as condições prefiguradas em Noé e em Adão. De fato, quando lemos a Bíblia, a nossa tendência é a de interpretar a ação de Deus como se ela se desenvolvesse unicamente segundo uma história cronologicamente registrável. Pelo que diz respeito à forma pela qual se deu a Redenção, isto é correto. Pelo que diz respeito à extensão da própria Redenção, uma vez que a salvação atinge todos os homens, até, portanto, aqueles que vieram antes de Jesus Cristo, a ação de Deus deve ser vista como um único ato de uma vontade soberana pelo qual, em Cristo Jesus, todos os homens são salvos. São Pedro nos lembra exatamente que a salvação atuada "no fim dos tempos" é obra de "Cristo Cordeiro conhecido desde antes da criação do mundo"(1 Pe 1,19). O Apocalipse explicita esse conceito ao declarar que os homens que foram salvos, incluídos os que viveram antes da vinda de Cristo, o foram em virtude de ter o seu nome "escrito desde a fundação do mundo no livro da vida do Cordeiro imolado" (Ap 13,8).

Gênesis 11 – O pecado da humanidade
            Gn 11,1-9
            A diversidade de povos sobre a terra poderia levar a pensar em diferentes origens. A dispersão do povo unido afirma a unidade de origem. Uma pretensa confusão de línguas é a narrativa utilizada para explicar as muitas línguas faladas sobre a terra. A unidade de origem da raça humana é afirmada para aplicar o Plano de Deus a todos os povos.
O Autor formula a narrativa na linha de Gn 4-5. Temos a contraposição da história do pecado e da história da Descendência que Deus suscita para realizar o seu Plano de Salvação. Gn 11 repete o esquema: à história do homem que mais uma vez ambiciona substituir-se a Deus, o Autor sagrado contrapõe a história da Descendência, até chegar ao patriarca Abrão, ancestral do povo hebraico.
            O pecado do homem, antes contemplado na sua forma individual, em Gn 11 é ilustrado de forma coletiva. A humanidade, esquecida do seu Criador, quer construir a sua história, desafiando o próprio Deus. Com um simples gesto, ditado pela sua vontade soberana, Deus efetua a dispersão por ele decretada. Tudo se daria de forma harmoniosa, não estivessem os homens continuamente desafiando a Deus que é obrigado a castigar o homem para que possa voltar a Ele consciente da necessidade que tem de Deus.
            Ao expor a descendência que vai de Sem até Abrão, o Hagiógrafo utiliza a mesma forma laudativa de Gn 5. Temos de novo dez patriarcas e a utilização da simbologia numérica. O Autor sagrado não utiliza todavia os mesmos números, mas os que lhe restam entre variantes mais verossímeis para nós, mas que nós devemos ler com o mesmo critério utilizado no que diz respeito aos números da primeira genealogia apresentada em Gn 5: a que vai de Set até Noé. Dez portanto são as gerações dessa genealogia, não porque elas foram exatamente dez, e sim porque elas indicam o tempo indefinido que separa Sem, filho de Noé, de Abrão. Ao longo de todo esse tempo, Deus deu continuidade à Descendência que tornou constantemente presente e atuante o seu plano, até chegar à figura de Abraão que é, como Noé, clara figura de Cristo. Os cem anos de Sem (11,10) não querem dizer que Sem tinha cem anos ao gerar o seu primeiro filho e, sim, que na plenitude da sua vida teve a sua descendência em virtude da bênção divina. Obteve também a bênção divina em relação a muitos filhos, de forma plena, segundo o dinamismo que o número cinco de quinhentos expressa. Os trinta e cinco anos de Arfaxad devem ser lidos como se estivéssemos multiplicando trinta vezes cinco. Resulta um número de plenitude dinâmica, 150 que corresponde a 50x3 (que aponta para uma ação plena e perfeita). O período de sua fecundidade é descrito por números que não indicam a sua duração e, sim, a sua qualidade: um tempo pleno e perfeito, abençoado por Deus: 4(centos)x3 = 12(centos). Os números que dizem respeito a Salé (v. 14-15) querem dizer o mesmo que foi dito de Arfaxad. Quando chegamos a Terá, pai de Abrão, somos surpreendidos pelo mesmo número que aparece com evidência simbólica em Lamec, pai de Noé: o número 7 (Gn 11, 26; 5,31). Lamec é abençoado por Deus no que diz respeito a uma plenitude de vida; Taré é abençoado por Deus para que na plenitude do seu vigor dê origem à Descendência pela qual Deus levará a termo o seu plano. A benção sobre Taré, pai de Abrão, no que diz respeito à plenitude de vida é expressa assim: "A duração da vida de Taré foi de duzentos e cinco anos"  (11,32). Isto dá 1000, considerando 5 multiplicador de 200. É a mesmíssima significação de 777 anos de Lamec.
            Com o anúncio do nascimento de Abrão conclui-se Gn 1-11, o prefácio de toda a Bíblia, que ilustra as grandes linhas segundo as quais se desenvolverá o grandioso Plano da Salvação.

            Comentário final
            Captamos o sentido de Gn 1-11 quando: 1º)entendemos que as narrativas fixam verdades fundamentais: a criação é obra de Deus; a espécie humana tem uma só origem. A narrativa do casal a ilustra. Cabe à biologia determinar a verdadeira origem dela. O princípio renovador é a Descendência que é representada na sua ação particularmente pela figura de Noé. A reflexão sapiencial da Igreja a interpreta como figura de Cristo. A unicidade da estirpe humana é afirmada pela narrativa da torre de Bebel. Cabe à antropologia determinar a origem das diversificações das raças, povos, língua e nações. A unicidade da origem e a unicidade da raça fundamentam a universalidade da salvação. 2º) advertimos que o redator final da Bíblia, assume parêneses sinagogais ou reflexões sapiências com seu conteúdo original para lhes dar um conteúdo formal que responda ao seu intuito catequético. 3º) advertimos que a doutrina sobre o homem é pautada na vocação de Israel para uma aliança com Deus e na sua história. Disso tudo, resulta a visão teológica que o redator final tem da história da salvação: em virtude de um Redentor que Deus promete e que contempla como Cordeiro imolado desde antes a criação do mundo (1Pd 1,18-20), não obstante o homem mereça ser destruído porque é só carne, será objeto da misericórdia dele. Pela descendência de Sem, Abrão continuará a pré-figuração da Descendência, prometida à Mulher, segundo a linhagem de Abel, Set, Enoc, Noé.

Um comentário:

  1. Padre, o que quer dizer essa parte? "4Contudo, não deveis comer carne com sangue, que é sua vida."

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