Reflexões
(1) As Escrituras
São
Paulo, quando escreve a Timóteo, nos lembra a importância das Escrituras
sagradas. Elas são “úteis para exortar e admoestar, enquanto nos ensinam o
caminho da sabedoria” (2Tm 3,14-17). A sabedoria, de fato é a condição de
perfeição à qual chega a nossa vida de “filhos de Deus em Jesus Cristo” (Ef 1,5)
quando respondemos à ação do Espírito Santo que quer promover em nós a nossa
configuração a Cristo, Sacerdote, Profeta e Rei, que estampou em nós quando nos
ungiu no momento do nosso Batismo: “Que ele te consagre com esse óleo para que,
como membro de Cristo, Sacerdote, Profeta e Rei...”. O instrumento que
corresponde ao dom do entendimento é a Palavra. São Paulo nos diz que ela deve
“habitar em nós abundantemente” (Cl 3,16), porque, nos diz São João, ela nos
fortalece contra o Mal (1Jo 2,14c). De fato, ela é o sacramento do Espírito,
porque é revelação do Verdadeiro. Por isso tudo, compreendemos de que forma o
espírito de entendimento promove o espírito de fortaleza, condição para nos
tornarmos capazes de dar testemunho de Jesus Cristo. O entendimento, na
verdade, é o dom do Espírito que promove o espírito de conselho. É este que
desenvolve em nós a capacidade de ver claramente qual é a vontade de Deus,
condição necessária para discernir com precisão a verdade que queremos
testemunhar com a nossa vida.
Quando
a vida cristã é potencializada pelo desenvolvimento dos dons do entendimento,
conselho e fortaleza, ela se abre a “toda ciência”, isto é àcompreensão
global do Mistério de Deus, condição para viver a liturgia segundo o espírito
de piedade. É então que o “louvor dos nossos lábios” sobe até Deus como o
perfume de um sacrifício de uma vítima que exala um suave odor. O sacrifício
oferecido, que une o testemunho da vida ao louvor dos nossos lábios, torna-se
condição de uma verdadeira benção porque Deus vê que o nosso coração não está
longe dele e que o nosso culto vai além de um louvor meramente formal.
(2) Religião verdadeira
Ainda não nos apercebemos que,
individualmente, estamos praticando uma religião que, longe de ser aquela que
amadurece à Luz divina da Revelação, é fruto de convicções pessoais. O mais
grave defeito da nossa prática religiosa tem sua origem no atrofiamento da
nossa compreensão dos mistérios de Deus. Ela está toda construída sobre um
mínimo de informação recebido em preparação à Primeira Comunhão. Aquilo que foi
suficiente para que nos aproximássemos da Eucaristia quando ainda éramos
crianças, pelo desgaste do tempo e pelo amadurecimento da nossa compreensão,
tornou-se um terreno arenoso, onde temos construído a nossa casa, que “os
ventos e as chuvas fazem facilmente desabar” (Mt 7,27).
Quando adultos, é essa pretensa religião que nos leva a comportamentos
absurdos, sobretudo após termos tentado nos instruirmos um pouco mais
frequentando um ou outro curso na condição de ouvintes.
Falta-nos
captar o espírito da Revelação que está na Palavra que Deus nos dirigiu pelos
profetas, pela reflexão dos sábios e, sobretudo pelo “Evangelho de Deus que diz
respeito ao seu Filho” (Rm 1,1.3). A Igreja Apostólica nos deu essa herança,
fruto da sua reflexão assistida pelo Espírito Santo, o Espírito da Verdade,
capaz de conduzir a toda verdade (Jo 14,17.26). Temos a
sorte de Evangelistas termo-nos transmitido, com seus escritos, a reflexão
sapiencial dos Apóstolos, que, até, nos permite interpretar a Pessoa divina de
Cristo Jesus, à luz de tudo aquilo que o próprio Deus nos “pré-evangelizou
pelos profetas nas Escrituras”(Rm 1,2). Ela diz respeito ao Filho, constituído
por Deus, Senhor da igreja, com poder, tornado de “alma vivente, Espírito
vivificador” (Rm 1,4; 1Cor 15,45).
(3) O Ano Litúrgico
O Ano
Litúrgico é o tempo que Deus criou, a partir do momento em que o seu Filho nos
visitou. Transportados das trevas para a luz, é nossa preocupação vivermos
segundo os valores do Espírito. Eles promovem em nós a vida imortal que Deus nos
concedeu pela mediação do homem Cristo Jesus “que se deu em resgate por todos”
(1Tm 2,5).
Lembrados
da escravidão a que nos reduz o pecado, somos exortados por Paulo a resistir à
gula, à embriaguez, à devassidão e à luxuria, à malícia e à maldade (Rm 13,13).
Encontramos a motivação para isso, quando refletimos sobre os mistérios de
Cristo, que é exatamente, o que Ano Litúrgico nos propõe.
Pelo Tempo do Advento, nos
preparamos para a contemplação dos mistérios da Encarnação.
No Tempo do Natal relembramos o
início da vida de Jesus que fez resplandecer “uma grande Luz aos que jaziam nas
sombras da morte” (Mt 4,16). A Palavra criadora que, em si, é Vida eterna, nos
beneficiou com a sua graça e a sua verdade. A festa da Epifania, que conclui o
Tempo do Natal, nos lembra a universalidade da salvação, pela figura da estrela
que ilumina para os magos o caminho até Jesus, apresentado por Maria.
Com a
Festa do Batismo do Senhor no Rio Jordão, vemos Jesus Cristo nos ensinar com
autoridade o Caminho da nossa realização, para que, tornados filhos de Deus por
adoção, participemos da sua Glória (Jo 17,24). Nisto, Jesus se apresenta como
nosso Modelo, atuando em si, por primeiro, as Bem-Aventuranças que abrem o seu
discurso programático.
A
Páscoa nos convida a celebrar os mistérios da nossa redenção que a Eucaristia,
instituída na Quinta-feira Santa, nos relembra continuamente: Morte Redentora,
Ressurreição gloriosa, dom do Espírito que torna possível realizarmos em nós os
ideais aos quais Deus chama todo e cada homem. Pelo entendimento das
Escrituras, nos familiarizamos com a revelação que Deus nos faz de si, o que
nos motiva a resistir ao pecado. De fato, nos é dado, então, compreender quanto
as concupiscências da carne, a idolatria do ouro e a ambição desmedida nos
podem prejudicar, ao fazerem cessar em nós a vida de Deus.
Ao
longo do resto do Ano Litúrgico, através do cultivo da nossa fé, enquanto
refletimos sobre os ensinamentos de Jesus nosso Mestre e Guia, desenvolvemos o
dom do discernimento, que nos permite entender qual é a vontade de Deus na
nossa vida. Promovemos, então, o espírito de fortaleza que impede que nos
tornemos caniços agitados pelo vento, enquanto nos torna capazes do testemunho
de Cristo. Com esses dons, chegamos à compreensão global do Desígnio de Deus
que, por livre determinação de sua vontade, quis que em Cristo nos tornássemos
herdeiros do Reino.
Dessa
forma, o Ano Litúrgico nos abre as perspectivas da nossa vocação gloriosa,
enquanto nos faz apreciar sempre mais a preciosidade da vida divina que
possuímos desde o nosso Batismo, momento em que “Ressurgimos para uma vida
nova”.
Viver o
Ano Litúrgico é, realmente, a condição para viver a nossa imortalidade para a
qual Deus nos criou quando disse: “Façamos o homem a nossa imagem e semelhança”
(Gn 1,26) e nos comunicou pelo seu Cristo.
(4) Revelação
No dia
da Epifania lemos, em Ef 2, uma solene declaração de Paulo acerca do Mistério
que, por peculiar inspiração, foi dado aos Apóstolos e profetas conhecer e
proclamar: a Redenção não é somente para Israel; ela está destinada a todos os povos.
Paulo a considera uma revelação privilegiada, fruto da ação do Espírito, agindo
de forma extraordinária.
Para
quem estuda o prefácio da Bíblia (Gn 1-11), adverte, todavia, que o Espírito
agiu de forma extraordinária, também, no seu autor . Este, ao compilar o seu
manual teológico, dentro de uma moldura cronológica, que o levava a partir, na
sua exposição, da criação, quando chega a apresentar a condição em que o homem
caiu, através da alegoria de Gn 3, utilizando de forma paradigmática a história
de Israel, ali retratada através de uma parênese catequético-sinagogal
pós-exílica, intui que é toda a humanidade que precisa de salvação. Coloca,
então, na boca de Deus, enquanto este se dirige à Serpente, as seguintes
palavras: “Ódio porei entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela.
Ela te esmagará a cabeça e tu, em vão, tentarás morder-lhe o calcanhar” (Gn
3,15). Esse conceito é desenvolvido quando apresenta o salvador da humanidade
com a figura de Noé, o “Justo que encontra graça aos olhos de Deus”. Diante do
sacrifício que Noé oferece, Deus estabelece uma aliança eterna e, por
juramento, declara que, ao ver no céu o arco na nuvem, sempre se absterá de
mandar novamente o dilúvio sobre a terra.
Movido por essa convicção, o
compilador da Bíblia, liga, então, o povo da escolha, através do artifício
literário da genealogia, ao Plano de Deus que deve se realizar. Para ele é claro que Israel foi chamado a ser o
povo da revelação, da Glória, da Lei, a quem pertencem os patriarcas e o
próprio Cristo, segundo a carne, em vista da salvação universal.
Pela observação
acima exposta podemos ver que, no AT, o Espírito falava através da reflexão
sapiencial. Ao lançar no mundo a sua doutrina, voltava a inspirar a reflexão
sapiencial da Igreja Apostólica que, de fato, era, em virtude de Jesus ter
constituído os doze Apóstolos nos que dariam continuidade à obra confiada a
Israel, o Novo Israel de Deus. Se, de fato, havia, no Apóstolo Paulo, uma surpresa,
ela era provocada por uma ação do Espírito que queria que os próprios Apóstolos
deixassem de pensar acerca de Israel segundo as interpretações de uma tradição
humana.
O
compilador da Bíblia agiu purificado pela provação do exílio e até favorecido
pelas condições adversas em que vivia o Israel de Deus, reduzido a uma tribo
que tinha tido a permissão de Ciro de voltar do desterro para a sua pátria onde
já não existia mais nem templo e nem muralhas em Jerusalém.
A
reflexão sapiencial inspirava os rabinos a falar nas suas catequeses sinagogais,
a refletir segundo o que tinham anunciado os profetas e a construir todo um
ensinamento moral, tomando como pano de fundo a peregrinação no deserto
empreendida pelas tribos que tinham saído do Egito.
Em Gn
1-11 há uma inspiração clara do Espírito que torna aqueles capítulos da Bíblia digno prefácio das Escrituras.
Em
virtude da inspiração que encontramos na compilação teológica que chamamos com
o termo de Bíblia e que está, ao mesmo tempo, nos textos escolhidos pelo
compilador da Bíblia, descobrimos que há, ao menos, dois caminhos para conhecer
a Deus: aquele que a formulação teológica da Bíblia nos oferece e aquele da
pedagogia segundo a qual Deus agiu para
se revelar ao “homem incapaz de encontrá-lo” e que os textos inspirados dos
livros que compõem as Escrituras nos oferecem. Os textos da Bíblia, todavia,
são um terceiro caminho para conhecer a Deus, enquanto apresentam um vasto
ensinamento moral dirigido ao homem a partir da revelação que Deus lhe faz
quanto à sua origem, à culpa que perpetra, à degeneração em que cai, à salvação
que lhe é oferecida em virtude da fidelidade daquele que é a Bondade, aos
mandamentos que lhe são ditados. Quando, enfim, chegamos a reconhecer, em
Jesus, o realizador da profecia e a descobrir, em virtude da sua ressurreição
dos mortos, a sua condição divina, e o NT se torna parte integrante da
compilação teológica, porque reflexão sapiencial da Igreja Apostólica sobre as
Escrituras Sagradas, descobrimos que a sua interpretação cristológica é
necessariamente um quarto caminho, o mais perfeito. Não podemos, todavia, nos
esquecer que os primeiros três devem ser integrados ao quarto porque a
cristologia está relacionada a tudo o que a Bíblia, os textos sapienciais
inspirados e os ensinamentos transmitidos por Deus pelos seus profetas nos
comunicam da Vontade e da Verdade de Deus.
(5) O homem
A narrativa do Éden (Gn 2)
nos coloca diante da realidade própria de cada homem, um ser animado que o
Criador suscita. Na sua infinita sabedoria, Deus, Princípio de todas as coisas,
o destina a reinar “sobre os peixes do mar, as aves do céu e os animais da
terra”. Gn 3, todavia, logo nos revela um destino mais complexo. O Criador,
diante do fracasso da sua criatura, engaja-se numa ação misericordiosa.
Determina-se a resgatar o homem da sua rebeldia, suscitando uma Descendência
que esmaga a cabeça do Maligno, representada pela metáfora da serpente. A
figura de Caim que mata Abel e da sua descendência, à qual são atribuídas a
opulência e as artes das cidades, como, também, a decadência moral da
humanidade, representada pelo violento Lamec com suas duas mulheres, resume em
si, a triste história que o livro do Apocalipse atribuirá à Cidade terrena, a
prostituta que se entregou à besta e bebeu do cálice do sangue dos mártires (Ap
17). O seu destino é a destruição. As águas indômitas dos mares a tragarão.
De fato, não é este o
destino que Deus quer para a humanidade, porque ele é um Deus fiel. Ele é
Misericórdia e sempre age segundo a sua Bondade. Movido pelo amor ele irá
glorificar a humanidade no “Resto” que guardará para si. A gratuidade da
salvação manifestar-se-á no Filho que ungirá com o seu Espírito, para que,
enviado cumpra a missão de reconciliar os homens que tiverem dado a sua adesão
a ele. Eles serão os seus que entregará ao Filho (Jo 17, ). Ninguém os
arrebatará das mãos do Pai porque o Filho é Um com o Pai (10,30).
A salvação que acontece na
plenitude dos tempos é preparada a partir da escolha que Deu faz de Israel para
que seja o povo que levará a luz do Verdadeiro a todas as nações mergulhadas
nas trevas da idolatria.
O processo pedagógico de
Deus acontece dentro da própria história da humanidade, sem que esta dele se
aperceba. Será dado a Israel começar a conhecê-lo depois dos anúncios
proféticos. O Deus da sua história torna-se-lhe sempre mais familiar a ponto
dele falar com segurança da sua condição de Criador (Gn 1) e de enumerar os
seus atributos através da contemplação das suas obras (criação, profetismo,
libertação). O máximo da compreensão de Deus ocorre através da ação de Jesus de
Nazaré que chega a ser reconhecido pelo Novo Israel, alicerçado sobre o
fundamento dos Apóstolos, como o Cristo (o Messias) de condição divina, o
Filho, “constituído com poder em espírito de santidade”.
Ele é a Cabeça da Igreja
que leva cada um dos seus membros até a estatura adulta, para que seja perfeito
na caridade. O processo encontra a sua ilustração na Escritura, como nos ensina
a Catequese Apostólica, que podemos deduzir seja dos resumos da pregação do
Evangelho às comunidades fundadas, como dos escritos ocasionais dos Apóstolos,
isto é, das suas cartas e do Apocalipse que, dos Evangelhos, desenvolvem a
escatologia.
(6) O homem
diante de Deus
Todo
ser, a partir do momento que é chamado pelo Criador à existência, subsiste e se
desenvolve em virtude do mesmo Criador que o sustenta . Não é somente a
condição de criatura que depende do Criador, como, também, todas as formas que
se manifestam enquanto a criatura desenvolve a sua condição embrional. O que
vem se manifestando é obra do Criador que no germe de cada criatura colocou o
programa do seu desenvolvimento e as potencialidades para que se realize.
A infinitude da sabedoria que se manifesta neste processo de
desenvolvimento, manifesta o Poder do Criador, em virtude das suas infinitas
virtualidades. De fato ele não é somente Poder e Sabedoria. Nele, a sua
essência é a sua própria condição de ser
“Aquele que é”.
A
Encarnação da Palavra da Vida e a divinização dos homens atuadas através de um
processo de humilhação que chega ao âmago da execução sumária, determinada por
um poder despótico instigado pela mais perversa maldade, revelam a
originalidade do processo que a Sabedoria divina determina. A sua forma de
atuar leva facilmente a pensar que é inútil para a criatura confiar em Deus. De
fato, ele não intervém e permite todo e qualquer abuso que o homem, na sua perversão,
possa perpetrar; dessa forma, a história acabando ditando as regras do sucesso
entre os homens: astúcia, calúnia, despotismo, esmagamento do adversário para
que deixe, duma vez, de ser uma ameaça.
Contra
a certeza do mundo está uma revelação cujo ensinamento se concretiza exatamente
na total ausência de Deus em defesa do justo levado à morte pelos seus
adversários. A esse respeito temos o comentário da execução perpetrada contra
Jesus, que se proclamava o “Filho de Deus”, no livro da Sabedoria que fala da
morte do justo. De fato, Deus permite que os homens ajam segundo o seu livre
arbítrio. O último julgamento, contudo, é o seu. Este trará a condenação
definitiva. Os sofrimentos do injustiçado terão consequências definitivas em
todos os pressupostos segmentos da sua obra, enquanto executada fielmente
segundo a vontade de Deus. É por isto que a morte de Cristo foi princípio de
glorificação para ele, enquanto reconciliadora para nós; princípio de uma nova
estirpe, causa de vitória definitiva sobre o Mal.
Na vida
do homem que “confia no Senhor”, o triunfo se repete porque é fruto de uma
imolação de quem “está crucificado com Jesus Cristo, uma vez que não é mais ele
que vive, mas é Cristo que vive nele, porque “vive na fé no Filho de Deus,
querendo corresponder ao seu amor que se manifestou no ato da sua entrega à
morte em favor dele” (Gl 2,20).
A
emoção do homem de fé é de gratidão, quando considera a iniciativa divina que
lhe comunica a graça do seu ser: “A minha alma engrandece o Senhor e todo o meu
ser seu santo Nome”. É de admiração, quando é surpreendido pela magnitude e magnificência
de tudo o que Deus pode operar em seu favor. É compenetração diante do amor com
que Deus age na fidelidade a si mesmo. Gratidão, admiração e compenetração,
quando continuamente cultivadas, sustentam a confiança na tribulação. São até
capazes de fazer desabrochar a alegria no fiel que se abriu a uma esperança
inquebrantável. Na espada, na morte, na tribulação ele vê a condição de poder
associar a sua sorte àquela que Cristo Jesus contemplou na sua Paixão: ele
caminhava ansioso para a glorificação que o sacrifício da sua vida, aceito em
obediência ao Pai, lhe propiciava.
(7) O homem no Plano de Deus
(reflexão motivada pelas leituras do 25º D TC A)
A
filosofia tende colocar o homem no centro do universo (Gr.: ánthropos metrón). De fato, segundo a
revelação, o homem é o objeto da atenção de Deus, enquanto sua criatura, situada
dentro dum universo. Ele é uma criatura, chamada, entre outras, a participar da
vida de Deus, enquanto nela há um princípio de divinização, que, nada impede
esteja em seres de outros sistemas solares, de outras galáxias, que vivem num
planeta ou simplesmente num satélite. São Paulo fala que, não somente o homem,
como, também toda a criação “geme se sofre como que as dores do parto, na
expectativa da manifestação gloriosa dos filhos de Deus” (Rm 8,22). Trata-se de uma
afirmação que diretamente diz respeito aos homens, mas que, indiretamente, pode
ser uma dica, quanto à existência de outros seres capazes de participar da vida
divina.
Esta
visão situa o homem diante de Deus, mostrando de forma clara a sua ínfima
condição de ser, saber e poder. É um habitante do planeta terra que tem em si
traços de entendimento. Na sua insignificância de ser, saber e poder, todavia,
está em condições de ser chamado por Deus para uma existência eterna, na
condição de criatura que passa da fé à visão, através de uma divinização,
gratuitamente participada. Este é o maravilhoso do Desígnio de Deus do qual nos
fala a Revelação, através de todo o processo histórico que a Bíblia expõe.
Trata-se de um processo maravilhoso porque atuado por Deus que revela a sua
onipotência na criação, o seu saber e a sua beleza na riqueza que os elementos
do seu plano revelam da sua Bondade. Ele é um Ser que tudo pode, infinito,
também, no seu saber, cuja amostra são as leis do universo em todos os seus
níveis, material, vegetal animal e espiritual. Revela ser a Bondade através da
história deste ser insignificante que habita o planeta terra, um grão de areia
na infinitude do universo, constituído por milhões de galáxias e bilhões de
sistemas solares.
O
salmista se admira diante do amor com que age a Bondade em relação ao homem,
que fez “um pouco menor que os anjos” e que encontrará a perfeita condição de
louvar o seu Criador, na medida em que reconhecer a sua pequenez, agradecido
pelas maravilhas que Deus nele opera (Lc 1,48; Mt 11,25; Sl 8). O autor da
Carta aos Hebreus (Hb 2) comenta a Pessoa divina de Jesus, utilizando
exatamente o Sl 8. Dessa forma, podemos constatar quanto Deus está em condições
de exaltar o homem se assumimos, como ponto de partida, o Adão da criação e a
figura paradigmática da sua descendência, Caim, e como figura da realização
final do Plano de Deus, o Homem Cristo Jesus, que Deus levou à perfeição pelo
sofrimento. Enquanto, em Jesus, se atua a perfeição da criatura, em virtude da
sua condição divina ele se torna Princípio de salvação para os que, pela sua
encarnação, se tornaram seus irmãos.
Quando
refletimos sobre estes pontos do Desígnio de Deus que, “por livre determinação
de sua vontade” nos destinou a sermos seus filhos adotivos em Jesus Cristo,
encontramos toda a motivação para viver à altura do Evangelho de Cristo (Fl
1,27a), segundo a recomendação de Paulo. Compreendemos como os seus pensamentos
estão acima dos nossos pensamentos (Is 55,9) e de que forma são frutos da sua
bondade. Ele é o Criador onipotente que,
por natureza, bondoso, sempre age no amor; que responde com misericórdia à rebeldia
, perversão, iniquidade e injustiça do homem, pelo Filho que aceita tornar-se
vítima de expiação para que recebamos a adoção filial (Gl 4,4-5).
É dessa
forma que a salvação impossível para o homem, se torna possível para Deus,
aquele que suscita em nós o querer e o operar (Fl 2,12-13), caso respondamos Àquele
“que nos amou por primeiro” (1Jo 4,10).
Quanto
ao seu destino, o homem assemelha-se aos outros seres animados, quando
considerado como membro de uma espécie. A sua maneira de se procriar é comum
àquela de muitas espécies animais. Um estímulo sexual é injetado na sua
corrente sanguínea, que o leva a se relacionar com o outro sexo. As
deformidades reveladas pelo homosexualismo ou pelo lesbianismo mostram como a
atração, de fato, é uma questão de momento que acaba sendo frustrada na sua
finalidade específica, tendo entre outras causas, a utilização, tecnicamente
imprópria, do estímulo sexual. Neste caso, é evidente que a moral deve intervir
para definir qual é o erro que, praticado pelo homem, provoca a sua degradação
moral. A exacerbação na declaração do pecado, todavia, não é a solução válida
que deva ser oferecida.
Como é o
caso de todos os outros males morais, a solução está na procura do sentido da
vida, que deve ser perseguido. Quanto mais o irmão desejoso que o outro se
corrija do desvio moral provocado por uma conduta imprópria, é capaz, a partir
da sua conduta santa, de admoestar na caridade, tanto mais se apresentará, por
si mesma, a solução do problema. Ambos, o irmão que deseja a salvação e o irmão
que deve ser salvos, devem procurar ambicionar as coisas do alto, “onde está
Cristo em Deus”. O cristianismo oferece a perspectiva de um desejo das coisas
espirituais. Neste caso propõe para quem é casado que continue casado, “mas
como se não o fosse”, sem, contudo, ser tomado por obsessão masoquista. Para quem
é tentado a viver seguindo relações impróprias, apresenta-se então o mesmo
ideal, valioso porque rico de uma grande perspectiva de realização. As quedas
que poderão se apresentar no caminho, estarão reduzidas a situações ocasionais
que poderão até se tornar oportunidades para refletir sobre a necessidade de uma mais
intensa dedicação na procura dos verdadeiros valores. De fato, eles poderão
prevalecer quanto à opção do homem tentado, na medida em que se tornarão
valores realmente preferíveis a todos os outros valores.
O homem
pode ser comparado a uma planta que o agricultor acompanha ao longo do seu
crescimento. Deus sabe esperar porque é capaz de prever o desfecho de todas as
situações, enquanto oferece condições que ajudarão a solucionar possíveis
problemas que possam se apresentar. A estrutura da Igreja que Deus criou, a
partir do Filho “que consagrou e enviou ao mundo”, por “sua graça e verdade”,
oferece as condições de regeneração, a partir do cultivo da fé (2Pd 1,5).
Enquanto
o fiel contempla em Cristo Jesus o Modelo segundo o qual deve andar, encontra a
motivação para viver segundo a virtude. Se cair em pecado, alcança o
arrependimento. Se tiver caído no vício, alcança a força da sua regeneração.
Tudo acontece na medida em que, a partir do cultivo da fé, nele prevalece a
graça do Espírito, princípio de renovação. Este é o fruto de uma santificação e
imolação de Jesus que atuou em si o Desígnio de Deus Pai de nos tornar “seus
filhos adotivos” no Amado, o Isaac imolado.
(8) Linguagem bíblica (I)
A
inteligência da linguagem bíblica é o ponto de partida para lermos os textos da
Escritura. A sua tradução não basta. Torna-se necessário captar o sentido
formal, não aquele simplesmente verbal, que o autor dava aos seus textos, às
suas narrativas. Quando detectamos os gêneros literários dos escritos da
Bíblia, já estamos dando um grande passo. Notamos, então, que um texto
profético é claramente diferente de um texto sapiencial ou de um salmo. Grande avanço,
também, é alcançado quando conseguimos distinguir entre um enredo histórico e
uma narrativa didática. Avançamos ainda mais quando detectamos o ensinamento
doutrinal atrás de uma narrativa ou, mais ainda, atrás de uma composição
literária qual o Prefácio da Bíblia: Gn 1-11. Outra composição literária é Gn
12-50, que podemos chamar: “Livro das origens de Israel”. O Êxodo é uma
compilação catequética dirigida aos judeus para que lembrem, para sempre, como
Deus libertou Israel da escravidão e como devem recordar esta ação poderosa de
Deus pela celebração da Páscoa. Foram salvos das grandes águas da Morte para se
tornar o povo da Aliança que peregrina no deserto sustentado pelo maná, tendo
presente o seu Deus na Tenda, em virtude de uma Aliança que não devem trair,
para isso cuidando observar os mandamentos do seu Deus. A interpretação do
Êxodo se torna ainda mais completa quando advertimos que o livro visa, também,
apresentar o Plano de Deus anunciado em Gn 3,15, que diz respeito a toda a
humanidade. Êxodo é, portanto, o manual que ensina de que forma Deus liberta a
humanidade da escravidão do Maligno e de que forma a assiste para conduzi-la ao
repouso que ele chega a prometer através de Jesus que realiza em si as figuras
de Moisés, o Enviado que “o Pai marcou com o seu selo”, que convida a crer nele
porque ele é o Verdadeiro que desce do Céu e dá a vida o mundo. “Quem vá até
ele para lhe dar a sua adesão de fé, nunca mais terá fome, quem crê nele, nunca
mais terá sede” (Jo 6,35). É dessa forma que o autor da Carta aos Hebreus
interpreta o Êxodo, enquanto exorta os seus companheiros de fé a superar o
desânimo provocado pelas provações.
O Livro
de Daniel se apresenta com um gênero literário característico, importante a ser
notado, porque volta a se apresentar, de forma extensa, nos textos do Novo
Testamento. Trata-se de Escatologia apresentada segundo a linguagem
apocalíptica. Ela é motivada pelas perseguições de Antíoco IV Epífanes
desencadeadas contra os judeus na primeira metade do 2º séc. a.C. A crença na
imortalidade da religião judaica é trazida a tona diante da necessidade do
judeu dar testemunho da sua fé, resistindo até à morte. O autor do Apocalipse
se inspirará em Daniel para falar das perseguições que ele atribui ao Demônio,
que descreve com a figura do Dragão. A imagem da Besta à qual o Dragão,
pretensamente, entrega o poder de perseguir os santos, é a estátua de
Nabucodonosor que quer para si um culto idolátrico. A simbologia numérica que
se encontra persistente em Ap 8-9, relativa a termo “um terço”, está
relacionada à figura do perseguidor que com a sua cauda chega a “derrubar até
um terço das estrelas do céu” (Dn 8,10; Ap 12,4).
Quando
chegamos aos textos do Novo Testamento, a nossa leitura será adequada somente
se advertirmos a natureza da linguagem dos autores dos seus livros. Somente a
compreensão dos sentidos dos termos como “origem”, dos recursos literários como
a genealogia, dos gêneros literários como o midrash, das figuras, a partir de
Adão, como Abel, Noé, Isaac, Moisés, poderão tornar compreensíveis os textos,
por exemplo, de Mt 1-2; Lc 1-2; Cl 1,18; Mt 3, (o Amado); Mt 5, (o novo Moisés)
. As narrativas do domínio de Jesus sobre às águas do mar e da multiplicação
dos pães possuem claras referências à narrativas catequético-midrashicas do AT.
A
interpretação que a Igreja Apostólica deu da Morte de Jesus Cristo, talvez, por
nossa sorte, seja a que mais compreendemos porque conseguimos acompanhar, quase
em tudo, a relação que os evangelistas estabelecem com as profecias do AT.
Isto não
acontece quando os evangelistas nos transmitem a catequese apostólica acerca da
ressurreição. Movidos pela animosidade apologética, uma vez que lemos o relato
de Mateus e Marcos, logo argumentamos com os nossos princípios, sem advertir
que eles são inadequados, uma vez que estamos lidando com uma novidade divina,
literalmente, total. Pensamos que ressurreição é animação de cadáver, como o
foi no caso de Lázaro. Não advertimos que os evangelistas não estão preocupados
em nos descrever as condições físicas de Jesus, e sim a sua condição nova de
Senhor, que Paulo desenvolve afirmando que Jesus se tornou, pela ressurreição,
o Novo Adão, isto é, adquiriu a condição das coisas novas. Deus glorificou a
sua humanidade. Ela se tornara “de alma vivente, Espírito vivificante” (1Cor
15,45). Jesus, pela ressurreição foi manifestado Senhor, isto é, Iahweh, o
Filho do Homem-Glória de Iahweh (Ez 1,26-28; cf. Ap 1,12-18).
É Lucas
que mistagogicamente se estende sobre a Ressurreição, citando Mt e Mc, quanto
às narrativas da ressurreição, para, depois, nos apresentar a narrativa dos
discípulos de Emaús, que, é, também, uma clara comprovação do despreparo dos
discípulos diante do fato novo anunciado por testemunhas, a princípio,
desclassificadas. A lembrança da aparição a Pedro, citada de passagem está em
Lc como um complemento para dar credibilidade aos dois discípulos de Emaús. A
aparição aos Apóstolos é uma exposição doutrinária através de quadros. Ela tem
claros elementos improvisados, de cunho catequético: o pedido de um pedaço de
peixe, a lembrança já feita aos discípulos de Emaús da doutrina sobre o Cristo
que devia sofrer, a esquiva de uma declaração aberta do dom do Espírito, tendo
Lucas em vista a narrativa do evento de Pentecostes.
É de
João, na verdade, a catequese longamente elaborada de uma tradição fundamentada
sobre a pregação do Apóstolo, que nos apresenta os elementos que devem nos
conduzir à formulação da doutrina sobre a Ressurreição.
O
“primeiro dia da semana” dissipa as trevas da mente quando fazemos uso da
Escritura que permite àquele que começou a conhecer Deus pelo amor chegar a
compreender que “Jesus devia ressuscitar dos mortos” (Jo 20,9). É a compreensão
de Jesus na condição de Servo de Iahweh, que é pelo sacrifício da sua alma que
conhece uma multidão de dias (Is 53,10), que nos faz entender a sua condição
gloriosa final. Ele viveu a condição perfeita do Adão verdadeiro na obediência
e no reconhecimento supremo da transcendência de Deus, pela imolação. Esmagado
pelo sofrimento, chegou, então, à perfeição, tornado, até, princípio de reconciliação
para os seus irmãos. Nestas condições, diz o Sl 22,23 celebra o seu triunfo no meio
da assembleia. Este é o triunfo da ressurreição, única maneira para falar
daquele que devia entrar na Glória.
As
aparições que realmente aconteceram distinguem-se pela sua finalidade, como
aquelas que as piedosas mulheres experimentaram para anunciar aos Apóstolos que
deviam se encontrar com Jesus no topo do Monte das Oliveiras, a Galileia. Poder-se-ia,
todavia, pensar que esta seria uma maneira para sublinhar a condição de Jesus
após sua ressurreição: ele tinha-se tornado a Glória de Iahweh que edificou o
seu templo no monte ao leste de Jerusalém (Ez 11,23).
Advertimos,
à essa altura, que a Igreja Apostólica se expressou segundo a linguagem da
tradição da reflexão sapiencial; que considerou esta linguagem a mais
condizente para falar da novidade da divindade que Jesus apresentou na sua
Pessoa.
Quando,
portanto, advertimos a propriedade desta linguagem, e, mistagogicamente, a necessidade da sua
aplicação à nossa catequese, nos é dado transmitir a Revelação que vem de Deus
com mais propriedade e na sua integridade.
(9)
Linguagem bíblica (II) Aprofundamento
De que queria falar o autor
de Gn 2 quando quis descrever de maneira detalhada a criação do homem? A sua
narrativa fundamentava-se sobre uma profunda intuição, qual aquela de
apresentar a natureza última da relação que o homem tem com o seu Criador. Adam é um nome coletivo. A personagem
descrita na narrativa, definida com o mesmo termo, representa o início de uma
espécie que, em tudo, depende de Deus. O homem terá o seu processo de
proliferação através de uma procriação, como acontece com muitas outras
espécies do reino animal. Lembrado, contudo, que a sua origem está na vontade
específica de Deus de lhe dar um corpo animado, terá que sempre se lembrar que
a ele deve submissão e serviço, segundo os mandamentos que lhe prescreve.
O
pensamento do autor tem a sua comprovação quando ele nos apresenta Eva a
exclamar, com o nascimento de Set: “Deus me concedeu outra descendência no
lugar da Abel, que Caim matou” (Gn 4,25). Na base desta sua convicção, o vemos
proclamar e cantar a benção que Deus efunde sobre a descendência dos
patriarcas, porque ela tem o seu princípio de realização no fato de que,
contrariamente àquilo que a descendência de Caim pratica, “invocará o nome de
Iahweh”. Isto é, reconhecerá sempre a sua condição diante de Deus através da
contemplação da sua Glória e o servirá.
Este conceito
teológico do autor do prefácio da Escritura é a apresentação das motivações das
quais o homem deve se inteirar para viver segundo a vocação pela qual foi
chamado por Deus para reinar, conceito exprimido em Gn 1. De fato, lá
encontramos o autor engajado em apresentar a relação necessária do homem com o
seu Deus. Guardar o repouso sabático deve ser a primeira preocupação moral para este preceito motivado pela criação que revela o Nome de Deus em toda a
sua grandiosidade de poder sabedoria, beleza e bondade. A motivação última da
observância dos mandamentos de Deus está no fato de que o homem dele teve sua
origem. Invocar o Nome de Iahweh é, portanto, para ele, condição de realização.
À luz
das profundas reflexões sapienciais de Gn 1-2, é possível ter a percepção plena
da importância que o autor de Gn 1-11 dá às modificações desastrosas que o homem
introduz no Desígnio de Deus a seu respeito, enquanto apresenta a originalidade
da ação com a qual Deus intervém. É anunciado um Plano sapientíssimo que, quando
realizado revelará a verdadeira dimensão da Bondade de Deus, que já se
apresentou grandiosa no gesto da criação. O recurso literário será a alegoria,
os fatos da vida humana, o quadro do Éden, que, embora seja simplesmente enredo construído com grande habilidade literária, de fato nos leva a
considerar os valores culturais que o autor possuía.
Chegamos
a apreciar em toda a sua importância os textos da Escritura quando conseguimos
relacionar adequadamente a contribuição do homem e a revelação divina que, por
ela, chega até nós.
(10)
Ssma.Trindade.
Diante
do dogma da Ssma. Trindade, devemos dizer que dele podemos falar somente à luz
da Revelação. De fato a sua possibilidade e, consequentemente, com maior razão,
a sua existência e a sua natureza podem ser por nós supostas e entendidas,
somente após que o próprio Deus dela nos fala. Devido à sua transcendência,
torna-se evidente que a linguagem segundo a qual Deus entendeu nos revelar a
sua condição mistérica, acaba sendo, necessariamente, uma linguagem adaptada à condição da
criatura. Notamos que isto acontece até quando Deus, simplesmente quer nos
revelar a sua existência e os seus atributos de Criador. Vemos, contudo, neste
caso, que o pensamento filosófico chegou a alcançar a sua condição de
existência, deduzindo-a da condição de dependência de toda criatura de um Ser
que fosse o seu Princípio não criado, isto é que não dependesse de outrem para
existir.
Em
relação à Vida Trinitária em Deus, o ponto de partida para dissertarmos sobre ela é a afirmação inquestionável
da sua existência que ouvimos de Jesus, segundo o relato da sua Ascensão ao
Céu: “Todo poder me foi dado no céu e na terra, ide pois, batizai em Nome do
Pai e do Filho e do Espírito Santo”. Até fosse este um pronunciamento inserido
dentro de uma dramatização do autor, certamente, no mínimo, reflete a fé que a
Igreja Apostólica nos transmitiu, enquanto ela professava a sua crença na
divindade de Jesus Cristo, o Ressuscitado. Segundo a sua fé, constatamos que
eles professam Cristo possuir o mesmo Poder do Pai. Do Pai e do Filho, o
Espírito, tem o mesmo poder enquanto a eles claramente associado, pelas
palavras relatadas por Mateus. É dessa forma que pelas palavras de Jesus no
momento da Ascensão deduzimos a condição divina das pessoas que constituem a
Ssma. Trindade.
Esta
realidade, que é própria da vida de Deus, tem a sua ilustração a partir das
formas segundo as quais o Deus único de Israel se revela. Poderíamos acompanhar
os momentos em que as formas se apresentam seguindo o esquema da teologia da
Bíblia. Teríamos, então, uma primeira forma ilustrativa, sempre, todavia, à luz
da revelação definitiva que se dá com os ensinamentos de Cristo Jesus, na
descrição da obra criadora. Estamos diante de uma linguagem antropomórfica. O
Deus criador age pela palavra que sai da sua boca, mediante o sopro de vida que
ela traz consigo. Nos Sl 32, temos disto a mais feliz forma descritiva: “Pela
sua palavra Deus criou os céu com o sopro da sua boca”.
A
narrativa da criação é, todavia, uma narrativa que depende, fundamentalmente,
de Isaias II, o profeta do fim do exílio de Babilônia que animou o Resto que
voltava para Judá com ensinamentos precisos acerca do Deus que se revelava,
“nos seus grandes julgamentos” (Ex 6,6), como se estivesse realizando uma “nova
criação”. Os termos que Isaias utiliza são até mais variados e precisos em relação
a Deus, que, na sua obra, está se revelando na condição de Iahweh. Aquele que
se define para Moisés como “heieh asher heieh”, é aquele que deve ser chamado a
partir de então: “Iahweh”. Uma forma enfática de “iheieh” que até poderia ser
interpretada segundo o modo “hiphil” e traduzido: “Aquele que é e que faz acontecer”.
A Bíblia, ilustra esta teologia através da narrativa do Êxodo, inspirada pela
libertação da escravidão de Babilônia em virtude de Ciro, o Servo que Deus
chamou de longe, para ser instrumento da sua vingança.
Isaias
40 ilustra com diversas metáforas a condição divina do Deus de Israel que
reconduz Judá de volta à sua terra, como um pastor cheio de ternura, que conduz
o seu rebanho, enquanto “tange as ovelhas mães”. Ele é o onipotente capaz de
medir as águas dos mares com a concha de sua mão, pesar as montanhas numa
balança, porque diante dele as nações não passam de um grão de areia. Os povos
são uma gota que cai de um balde, os reis da terra caules que, logo que
apresentam suas raízes, Deus seca com o sopro de sua boca. Este Deus eterno de
Israel é o Santo.
Quando
prestamos atenção a este título que Deus dá a si mesmo e que, na visão no
templo, Isaias vê repetidamente pronunciado pelos serafins, na sua adoração
diante do Deus eterno, vemos que dele podemos captar toda a sua significação
quando o relacionamos a Jesus. De fato, Marcos logo o aplica a Jesus, na
dramatização do quadro do exorcismo que abre a sua vida pública. Os demônios
chamam de Santo aquele que veio para perdê-los. Jesus é o Santo porque, como
nos explica Mt 1,18 é “concebido pelo Espírito Santo”. Isto nos indica, desde a
concepção no seio de Maria, sua mãe, que Jesus é de condição divina, uma
verdade que o próprio Mateus desenvolve enquanto narra o sonho de José: “Não
tenhas medo...”. O Santo que nasce de Maria, sua esposa é o Emanuel, segundo a
profecia de Is 7,14, que está necessariamente relacionada à profecia de Gn
3,15. Quando entendemos que dessa forma fica explicado Gn 3,15, torna-se
evidente que a Descendência é de natureza divina. Não fosse assim, o filho de
Maria nunca poderia realizar a redenção dos que se tornam seus irmãos pela sua
Encarnação. Santo é um título que tem a sua explicação quando considerado em
Cristo Jesus, o relaciona a Deus, enquanto considerado na condição de Espírito.
Santidade é a prerrogativa da divindade que o próprio Jesus diz ser o Espírito:
“Deus é Espírito” (Jo 4,24). O Espírito Santo, após a teofania do Batismo, em
que é visto descer, particularmente, por Jesus, sobre ele, se manifesta quando
impele o seu Ungido, o Messias, para o deserto. Jesus age com Ele e por Ele
quando estabelece o Reino do Pai (Mt 12,28). Nele exulta e, também, expressa o
desejo de ser batizado pelo sacrifício da sua vida.
A
relação pessoal de Jesus com o Pai e com o Espírito é particularmente
desenvolvida por João ao longo do discurso de Jesus, na última Ceia (Jo 14-17).
A
manifestação do Espírito em Jesus, que o título “Santo” a este aplicado, nos
sugeriu, nos permite uma consideração enriquecedora, quanto à compreensão da
Vida Trinitária. A santidade do Espírito, neste caso, pode ser vista
participada pelo Pai e pelo Filho que exercem as suas funções, na condição de
Pessoas divinas, enquanto comunicam com o Espírito da mesma santidade.
Evitar-se-ia, neste caso, a problemática da procedência do Espírito que surge
quando é acentuada, segundo o discurso que prioriza a relação entre o Pai e o
Filho, a linguagem antropomórfica. De fato, ela prevalece na própria forma da
revelação, porque sugerida pela tradição judaica, fundamentada na visão do rei
considerado ‘filho de Deus’. Uma vez, contudo, que, exatamente por causa disso,
não deve ser considerada linguagem exclusiva, a relação pessoal do Pai e do
Filho com o Espírito, enquanto participação de uma Santidade comum, supera os
limites da formulação feita em termos antropomórficos.
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